Delação premiada permite chegar mais longe na investigação
A propósito do lançamento do primeiro livro em Portugal com estudos jurídicos sobre Compliance e o lançamento do II Curso de Pós-Graduação da FDL, a Advocatus foi falar com três dos autores.
A propósito do lançamento do primeiro livro em Portugal com estudos jurídicos sobre Compliance e o lançamento do II Curso de Pós-Graduação da FDL — “Estudos sobre Law Enforcement, Compliance e Direito Penal” lançado recentemente– a Advocatus foi falar com três dos autores: Paulo Sousa Mendes, Tiago Geraldo e David Silva Ramalho. Uma entrevista a três.
Alguns países têm criado novos mecanismos no combate ao crime económico e financeiro, como a colaboração premiada. Apesar de os atores judiciários não concordarem, Portugal deve seguir o mesmo caminho?
Não é certo que haja um consenso negativo por parte dos diferentes atores judiciários sobre esta matéria, nem é aliás seguro que exista acordo num determinado sentido entre procuradores, advogados e juízes, e o mesmo poderá dizer-se no meio académico. O diagnóstico das vantagens e dos riscos de um sistema dito de delação ou colaboração premiada só está feito em abstrato, e sobre essa matéria é aliás dedicada uma das sessões deste II Curso de Law Enforcement, Compliance e Direito Penal.
Do lado das vantagens fala-se da eficácia da investigação, da capacidade de chegar mais longe e escalar o processo com menos recursos e sobretudo em menos tempo. Mas também estão identificados riscos e perversões potenciais no plano dos princípios e das garantias e da sua compatibilização com o risco moral associado à delação, sobretudo nas variantes mais extremas, em que o prémio e os benefícios concedidos ao delator chegam a estar indexados à medida da pena ou ao tipo de medidas de coação que são aplicadas aos delatados. O que em última instância pode comprometer a eficácia e a robustez da investigação, na perspetiva da consistência da prova que alimenta e orienta o processo.
Não é, portanto, uma questão que se possa colocar e decidir em termos de sim ou não. A resposta equilibrada está no depende: depende de como se faz, depende de quem promove, depende das “contrapartidas” disponíveis para quem colabora e dos seus limites, depende de quem controla e fiscaliza, depende das garantias a montante e a jusante, etc.
Já existe alguma proposta concreta nesse sentido?
A Ordem dos Advogados propôs-se recentemente elaborar um projeto legislativo, fixando as condições mínimas de uma colaboração processual premiada, para entregar ao Governo. São iniciativas que podem ajudar a legislar melhor, com mais ponderação, e conhecendo melhor a realidade material e a do processo, projetando e antecipando consequências e perigos. Mas há também o risco de projetos antecipatórios, que apostam na antecipação de iniciativas legislativas, darem a entender que há algum sentido de urgência no acolhimento entre nós de um sistema de colaboração premiada, o que não é certo, nem porventura o mais indicado. O essencial seria promover para já uma discussão informada entre os operadores de justiça sobre a experiência da colaboração premiada no Brasil, cujo balanço ainda hoje está longe de suscitar um consenso mínimo sobre as suas vantagens e desvantagens.
Que impacto teria um reenquadramento do law enforcement e compliance na prevenção, por exemplo, da corrupção, do branqueamento de capitais, dos ilícitos económicos e financeiros, dos crimes ambientais?
Há especificidades relevantes e autonomia entre esses diferentes domínios, refletindo, de resto, a especialização acentuada e crescente da atividade económica. Continua por isso a fazer sentido que o acompanhamento do compliance das empresas que atuam em sectores regulados seja feito por supervisores especialmente qualificados, beneficiando do lastro de conhecimento acumulado sobre o sector em causa, as suas dinâmicas, os seus riscos, as suas fragilidades, etc.
Sobram, claro, problemas e fenómenos transversais à atividade económica, como a corrupção e o branqueamento, e a esse propósito poder-se-ia ponderar e discutir uma reforma de âmbito mais vasto.
O combate ao branqueamento de capitais é cada vez mais visto como uma prioridade dos Estados. Como torná-lo mais eficaz?
Não se pode depositar grandes esperanças na eficácia do combate penal ao branqueamento de capitais como meio de o Estado fazer suas as vantagens do crime, seguindo a velha lógica de que o crime não compensa. A perda alargada é mais eficaz como método de recuperação de ativos do que a repressão penal do branqueamento de capitais.
Nunca é de mais frisar que a reação penal tem estado centrada na sanção a aplicar ao acusado, esquecendo-se a perda dos instrumentos e vantagens originadas pela atividade criminosa como aspeto decisivo da perseguição às formas de criminalidade organizada, o que é importante corrigir no futuro.
Qual o papel das pessoas e entidades obrigadas aos deveres de prevenção do branqueamento?
Essa deve ser a prioridade: recentrar a política criminal na prevenção administrativa do branqueamento de capitais. A prevenção que atua sobre as fontes de risco poderia ser igualmente eficaz mesmo se o branqueamento de capitais não fosse crime. A prevenção administrativa do branqueamento passa por impor deveres preventivos, sob cominação de sanções em caso de incumprimento.
Naturalmente, essa prevenção implica uma atitude proativa das autoridades administrativas e o concurso das pessoas e entidades obrigadas. A aplicação efetiva do direito não se pode basear apenas no exercício dos poderes das autoridades; é sempre fundamental uma atitude voluntária por parte dos destinatários do dever.
Nenhuma prevenção administrativa do branqueamento de capitais é eficaz se for implementada contra a vontade e o interesse das pessoas obrigadas, mas também nenhuma prevenção administrativa é eficaz se contar só com a eventual boa vontade das pessoas obrigadas. E aqui entra a questão da articulação entre o law enforcement e o compliance, que é central ao nosso II Curso.
A nova lei de prevenção do branqueamento é suficiente? Qual o impacto previsível?
Seria prematuro fazer já essa avaliação e esse balanço, até porque muitas vezes há diferenças profundas entre a lei nos livros e a lei em ação. Há ainda assim alguns indicadores positivos, como a avaliação recente do Grupo de Ação Financeira (GAFI) a Portugal, que colocou o nosso País na linha da frente em matéria de prevenção do branqueamento de capitais.
Mas depois há o lado prático, de implementação concreta e de cumprimento diário da nova lei, e nesse plano têm sido sinalizados diversos perigos e dúvidas relevantes na interpretação e conjugação entre as diferentes normas e diplomas do pacote legislativo aprovado no verão de 2017. Houve e há sobretudo um certo receio, talvez até uma certa perplexidade e alarme, perante o gigantismo do novo regime, a que se junta a perceção, que vai fazendo caminho em diferentes sectores, no sentido de que as novas leis foram pensadas mais à medida dos reguladores do que para os operadores económicos que terão de aplicá-las no dia-a-dia. Mais uma vez, a aplicação do novo regime implicará uma articulação entre reguladores e operadores económicos.
Por exemplo, a inspeção dos sistemas de controlo interno deveria passar pela realização de reuniões entre os inspetores e os responsáveis dos departamentos de compliance ou estruturas similares nas pessoas obrigadas. Só dessa forma se conseguirá aperfeiçoar os sistemas de controlo interno e os mecanismos de reporte de operações suspeitas às autoridades de supervisão (comunicações automáticas, triagem de falsos positivos, etc.).
Qual é a prestação dos bancos portugueses nesse domínio?
São conhecidas de todos as dificuldades que os bancos portugueses experimentaram na sequência da crise de 2007/2008, depois agravadas pelo resgate financeiro de 2011.
Essas dificuldades e as causas dessas dificuldades não desapareceram de um dia para o outro, mas as instituições tiveram de saber viver com elas e sobretudo encontrar forma de tentar superá-las. Nesse trajeto, e além das preocupações óbvias em torno da solidez financeira, houve uma aposta significativa nos mecanismos de compliance e prevenção do branqueamento, até pela consciência da interligação potencial entre situações de rutura e de crise para as instituições e falhas no seu sistema de prevenção. Aliás, as estatísticas do Banco de Portugal demonstram que o o sector bancário se tem empenhado na colaboração com as autoridades na comunicação de operações suspeitas.
Até onde vai o dever de denúncia? Quais os limites?
Ao contrário do que acontece noutros países, a nossa lei não prevê um dever de denúncia generalizado. Por regra, só têm dever de denunciar um crime, ou indícios de crime, as autoridades policiais, por razões óbvias, e os funcionários públicos, na aceção muito lata do Código Penal, relativamente a crimes que lhes cheguem ao conhecimento no exercício das funções.
Com a nova lei de prevenção do branqueamento, o panorama altera-se drasticamente. Passa a recair sobre todas as entidades obrigadas — que vão desde os bancos a sociedades gestoras de fundos de investimento, passando por advogados, solicitadores, notários, promotores imobiliários e qualquer comerciante que transacione em numerário — um dever geral de comunicação às autoridades competentes (o DCIAP e a UIF da PJ) de operações suspeitas, isto é, de operações em que estejam presentes fatores de risco de branqueamento. E isto sob pena de essas entidades poderem ser punidas com coima se não comunicarem.
Também aqui pode haver problemas sensíveis, desde logo na perspetiva do elo de confiança que está pressuposto em qualquer relação comercial, com especial incidência nas atividades e profissões sujeitas a regras apertadas de sigilo, como acontece com os bancos e em particular com os advogados, que a nova lei, ainda que sem alterar significativamente o que vinha da anterior, pretende transformar numa espécie de longa manus das autoridades de investigação criminal. São perigos e dúvidas que só o teste prático e judicial da nova lei poderá ajudar a mitigar e clarificar.
As infrações regulatórias no âmbito bancário, financeiro e económico são normalmente tratadas como contraordenações, tal como as infrações de trânsito. É previsível ou desejável uma reforma ou uma diferenciação desse regime?
Esta é uma das grandes questões do direito sancionador atual, que entre nós é fundamentalmente contraordenacional. As contraordenações foram inicialmente pensadas como infrações bagatelares, mas rapidamente chegaram aos sectores regulados e com sanções avultadas, como sucede na concorrência, no sector energético, nas telecomunicações, entre outros.
Alguns desses regimes preveem hoje sanções pecuniárias largamente superiores a qualquer multa criminal, e ainda sanções acessórias por vezes iguais às que são aplicáveis aos crimes, sendo aplicadas por autoridades administrativas com amplos poderes de supervisão e de sancionamento, que em certos casos podem até fazer buscas domiciliárias. Essas autoridades administrativas supervisionam, investigam, acusam e condenam.
Muito se tem discutido sobre as garantias deste modelo, sendo consensual que, no mínimo, os visados têm de contar com o direito irrestrito de impugnação das decisões condenatórias proferidas pelas autoridades administrativas para um tribunal de jurisdição plena, que possa sindicar plenamente os factos que justificaram a condenação. Resta saber, e essa é uma discussão muito atual, desde logo no Tribunal Constitucional, se a generalização das regras do efeito meramente devolutivo da impugnação e do afastamento da proibição de reformatio in pejus não põem em causa esse consenso.
Qual o balanço da atividade do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, que lida exclusivamente com litígios regulatórios, criado há já mais de cinco anos?
O balanço geral é francamente positivo. Para além da celeridade na condução e conclusão dos processos, o Tribunal tem-se distinguido pelo elevado nível de preparação e qualidade técnicas, propiciadas pela sua especialização. E tem-no feito com pendência de processos muito volumosos e confrontando-se muitas vezes com questões novas e complexas do ponto de vista factual e jurídico, trazidas ao processo por intervenientes altamente especializados e qualificados.
Faz então sentido manter um regime ‘geral’ das contraordenações?
A convivência sob um chapéu comum de contraordenações bagatelares (as do Código da Estrada, por exemplo) e grandes contraordenações torna cada vez mais difícil pensar que haja um regime ou quadro jurídico unitário. Mas é certo que uma e outra realidade não podem ser confundidas. Independentemente do enquadramento comum e da designação formal das infrações, a proteção jurídica e as garantias têm de ser proporcionais à gravidade potencial das sanções.
Há autores que defendem um regime contraordenacional a diferentes velocidades, distinguindo entre meras contravenções (o tal ilícito de mera ordenação social) e as grandes contraordenações. A discussão tem sido feita em diferentes colóquios e conferências, e também o será neste II Curso, mas não parece ser para já uma prioridade do legislador.
Entra em vigor em maio o novo Regulamento europeu de proteção de dados, que prevê multas muito significativas. As empresas portuguesas estão preparadas para responder às novas exigências do Regulamento?
Em geral, as empresas portuguesas começaram a preparar-se tarde para as novas exigências do RGPD. Aliás, em rigor, à exceção de alguns sectores onde o tema estava mais difundido, grande parte das empresas não cumpria sequer as velhas exigências da lei de proteção de dados pessoais, o que redobra o esforço de adaptação. As preocupações de privacidade não estão enraizadas na cultura de parte muito significativa das empresas portuguesas e isso gerou um contexto de incumprimento generalizado que é difícil reverter em tão pouco tempo.
Mas esse atraso não se limita às empresas: o setor público enfrenta dificuldades sérias na adaptação ao RGPD. Sinal disso mesmo é a opção, de resto discutível, introduzida pelo Governo português na Proposta de Lei n.º 120/XIII no sentido de isentar as entidades públicas da aplicação de coimas, pelo menos nos primeiros 3 anos.
Já vamos tarde na questão de defesa e proteção de dados pessoais, independentemente da ‘obrigação’ comunitária?
Não vamos tarde no sentido em que ainda é útil fazê-lo. Mas vamos atrasados, vamos devagar e vamos contra a corrente. Vamos atrasados porque serão poucas as empresas que estão ou conseguirão estar em compliance total com o RGPD no dia 25 de maio. Vamos devagar porque antes de nos adaptarmos para o futuro temos de corrigir o que já vem mal do passado e isso leva tempo. E vamos contra a corrente porque temos de contrapor à tendência de maximização da informação tratada pelas empresas a cultura de minimização dos dados que o RGPD pretende promover, o que contraria tendências recentes. Nos últimos anos, a política das empresas, impulsionada pela evolução do setor tecnológico, tem sido a de armazenar toda a informação “pelo sim, pelo não” em back-ups eternos, em sistemas informáticos pessoais, na cloud ou simplesmente em arquivos mortos sem grandes preocupações com a necessidade, a segurança ou a localização dos dados. Tudo isso terá de mudar. Não apenas no dia 25 de maio, mas nos meses e nos anos desafiantes que se seguem.
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