Há vidas “em suspenso” por causa de um acórdão
Dia 6 de dezembro o Parlamento discute projetos de lei dos partidos sobre a procriação medicamente assistida e a gestação de substituição. Em causa o acórdão do TC que chumbou o anonimato dos dadores.
Quando o Tribunal Constitucional chumbou a lei que protegia o anonimato de dadores de gâmetas, em abril deste ano, ficaram interrompidos tratamentos de centenas de beneficiários. O vazio legal deste acórdão levou a campanha “Vidas Congeladas” a agir. Entre outros profissionais, junta juristas e médicos e quer levar a apreciação do caso a legisladores e partidos. PSD e BE já propuseram uma norma transitória. Vai ser discutida esta quinta-feira, dia 6 de dezembro, no Parlamento, juntamente com outras propostas do PS, CDS-PP e PCP.
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Desde 2006 que, com a Lei da Procriação Medicamente Assistida (LPMA), o anonimato dos dadores de esperma, ovócitos ou embriões estava protegido. Mas em 2017 alguns deputados do PSD e o CDS pediram a fiscalização constitucional desta lei, depois de ter sido introduzida na PMA a gestação de substituição — conhecida como barriga de aluguer –, e o alargamento de tratamentos de fertilidade a todas as mulheres, independentemente do seu estado civil. Em causa estava a garantia dos direitos à identidade pessoal e genética das pessoas nascidas através destas técnicas.
A 24 de abril de 2018, o Tribunal Constitucional (TC) reviu a lei e publicou um acórdão em que considerou que a regra do anonimato dos dadores e das gestantes de substituição merecia “censura constitucional”, já que impunha “uma restrição desnecessária aos direitos à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade das pessoas nascidas” através deste método. Isto é, as crianças não tinham direito a saber quem são os seus progenitores biológicos.
O artigo relativo ao anonimato estava dividido em quatro pontos, mas apenas dois foram considerados inconstitucionais. A norma já tinha sido avaliada pelo TC em 2009 e foi considerada constitucional pelos juízes nessa altura. Esta recente alteração criou, contudo, um impasse: o que fazer ao material doado, para diferentes técnicas de procriação, quando o anonimato dos dadores ainda era constitucional?
Há “vidas congeladas”
Joana Silveira Botelho, advogada da Cuatrecasas e membro da “Vidas Congeladas” — uma campanha da Associação Portuguesa de Fertilidade com o apoio da Sociedade Portuguesa de Medicina de Reprodução que visa combater a suspensão das centenas de tratamentos de PMA em curso –, conta que, depois da decisão, os centros de PMA contactaram os dadores para os questionar sobre se autorizavam a utilização das suas dádivas em tratamentos iminentes após o fim do anonimato.
Só dessa maneira seria possível usar o material já criopreservado, de doações feitas antes desta alteração. “No caso de a resposta ser positiva o processo poderia retomar, mas caso não fosse os centros de PMA não continuaram com o processo e estes casais têm então de esperar pela alteração legislativa nesta matéria”.
“Esta questão foi recebida com muita apreensão por todo o universo de pessoas ligadas à área da medicina da reprodução”, conta Pedro Xavier, Presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina e Reprodução (SPMR) e outro membro desta iniciativa.
Estima-se que a decisão do TC teve um efeito junto de 2.000 famílias e que existem cerca de 5.000 embriões congelados cujo destino ainda está por decidir tendo em conta a aceitação ou não por parte dos respetivos dadores do fim do seu anonimato.
“No entanto, os beneficiários dos tratamentos de fertilidade, nomeadamente dos que envolvem dádivas de óvulos e espermatozoides, constituíram claramente o grupo onde a angústia foi maior. Temos que nos lembrar que a maior parte destes beneficiários são casais que esgotaram todas as possibilidades de ter um filho usando os seus próprios gâmetas, muitas vezes com um longo historial de tratamentos de fertilidade, e que vêm nestas dádivas a última esperança de concretizar o seu sonho”, continua o médico.
E ao nível de números, quantas pessoas ficaram afetadas? A jurista conta que esta decisão do TC teve, em estimativa, “um efeito junto de 2.000 famílias e que existem cerca de 5.000 embriões congelados cujo destino ainda está por decidir tendo em conta a aceitação ou não por parte dos respetivos dadores do fim do seu anonimato”.
Além de a autorização para se retirar o anonimato estar a deixar centenas de processos pendentes, espera-se que o número de dadores também venha a diminuir com a alteração. “Aqui chegados, o mais importante é que o legislador atue — em conformidade com o TC — para acabar com a atual situação de incerteza e insegurança jurídica”, refere a advogada da Cuatrecasas.
“Num primeiro momento é natural e expectável que o número de doações diminua, tendo em conta que o nosso sistema protegia o anonimato do dador. No entanto, e tendo em conta também a experiência noutros países, creio que essa tendência será invertida”, remata.
A campanha “Vidas Congeladas”, que arrancou em julho, lançou uma petição que visa a criação de medidas legislativas que preencham o vazio legal deixado pelo acórdão. Conta já com pouco mais de 3.000 assinaturas.
Bloco de Esquerda e PSD propõem norma transitória
O Bloco de Esquerda e o PSD já propuseram projetos de lei em que seja assegurada uma norma transitória, na qual fique garantida a confidencialidade da identidade do dador aquando da utilização de material genético doado, em data anterior a 24 de abril de 2018, e desde que utilizados num prazo máximo de cinco anos após a publicação da presente lei. Excetuam-se os casos em que os próprios autorizem de forma expressa a levantar esse anonimato.
No próximo dia 6 de dezembro, o parlamento vai discutir estes e outros projetos de lei e de resolução sobre a procriação medicamente assistida e a gestação de substituição. Além dos projetos de lei do BE e do PSD, estão em cima da mesa propostas do PS, CDS-PP e PCP.
Temos de ultrapassar o impasse e indefinição que se gerou na atividade de PMA em Portugal e que poderia levar à destruição de gâmetas e embriões, o que seria inadmissível. Espero agora, um amplo consenso parlamentar em torno de uma solução equilibrada e justa que respeite os direitos de todos.
“Estes projetos demonstram desde logo um interesse e uma sensibilidade especial para o que está aqui em causa, que é por um lado respeitar o acórdão do TC no sentido do fim do anonimato da pessoa que doa gâmetas, e por outro respeitar o princípio da segurança jurídica e da confiança dos cidadãos na lei, protegendo os direitos das pessoas que doaram em regime de anonimato, mas também protegendo os direitos dos beneficiários e das pessoas nascidas na vigência desse anonimato”, explica Carla Rodrigues, presidente do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA), à Advocatus.
A advogada, da JPAB, participou recentemente na preparação do relatório “O anonimato dos dadores – encontrar o equilíbrio entre os direitos dos pais, dos dadores e das crianças”, que está a ser elaborado no Conselho da Europa. Um relatório que tem como propósito contribuir para a resolução deste problema, dando orientações aos Estados-membros para futuras iniciativas legislativas.
“São projetos muito equilibrados, com ligeiras diferenças, mas muito próximos no essencial que é ultrapassar esta contradição sistémica que permanece na lei fruto da declaração de inconstitucionalidade de algumas normas da lei da PMA e ultrapassar o impasse e indefinição que se gerou na atividade de PMA em Portugal e que poderia levar à destruição de gâmetas e embriões, o que seria inadmissível. Espero agora, um amplo consenso parlamentar em torno de uma solução equilibrada e justa que respeite os direitos de todos”, conclui a jurista.
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