Tribunal permitiu “golpada” de Berardo porque banca violou lei das associações

Alterações que os bancos fizeram em 2008 nos estatutos da Associação Coleção Berardo violaram "disposições imperativas" do regime das associações, defendeu tribunal, na sentença consultada pelo ECO.

Se o caso Berardo fosse um filme, poderíamos estar a falar de um plot twist em que de repente se invertem os papéis dos personagens e se acrescenta suspense até ao desfecho do enredo. Foi mais ou menos isto que aconteceu quando uma decisão do tribunal permitiu que o comendador pudesse retirar poder aos bancos na Associação Coleção Berardo e blindar as obras de arte. Por que razão o tribunal decidiu assim? Porque Caixa Geral de Depósitos (CGD), Novo Banco e BCP fizeram alterações aos estatutos da associação no final de 2008, aquando da tomada em penhor dos títulos de participação da instituição, que violavam a lei das associações.

O ECO teve acesso ao processo que está agora na mira do Ministério Público e que possibilitou que Joe Berardo pudesse ter dado aquilo a que muitos apelidam de “golpada” ao bancos. Mas para chegar até hoje é preciso recuar 11 anos na fita do filme, mais concretamente, ao final de 2008.

Foi em dezembro desse ano que a Associação Coleção Berardo promoveu alterações estatutárias na sequência de uma negociação entre Joe Berardo e os três bancos sobre o contrato de penhor que serviu para o comendador reforçar garantias para dívidas de 1.000 milhões de euros. Com essas mudanças, reconheceu-se que os bancos (como credores pignoratícios) mandavam na associação dona da Coleção Berardo — os bancos ficaram a deter 75% dos títulos de participação, e mais tarde, viriam a ficar com 100% dos títulos.

Mas o poder dos bancos na Associação Coleção Berardo já não será bem assim nos dias de hoje. E aqui entra o tal plot twist.

Audição do Comendador José Manuel Rodrigues Berardo perante a II COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO À RECAPITALIZAÇÃO DA CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS E À GESTÃO DO BANCO - 10MAI19
Joe Berardo na comissão parlamentar de inquérito à Caixa.Hugo Amaral/ECO

Banca violou leis “imperativas” das associações

A 18 de outubro de 2013, um anónimo (Augusto Joaquim Vieira de Sousa) deu entrada com uma ação contra a Associação Coleção Berardo no Tribunal da Comarca de Lisboa, pedindo a nulidade dos estatutos alterados em 2008. Três anos depois, a 6 de março de 2016, o tribunal julgou “a ação parcialmente procedente”, isto é, deu razão a este cidadão anónimo em algumas das suas reclamações.

Aparentemente, foi o suficiente para deixar os bancos de pés e mãos atadas na assembleia geral da associação, que tem o poder de decidir o destino a dar às obras de arte avaliadas em mais de 300 milhões de euros.

Na decisão judicial, consultada pelo ECO, o tribunal mandou substituir uma regra que dizia respeito à composição da assembleia geral. Quando os três bancos negociaram o contrato do penhor, há 11 anos, ficou plasmado nos estatutos da Associação Coleção Berardo que “a Assembleia Geral é constituída pelos Associados Instituidores que não renunciaram a essa qualidade e por todos os demais titulares de direitos de voto, incluindo os credores pignoratícios para quem esses direitos tenham sido transmitidos” (número um do artigo 14º).

No entanto, o tribunal deu ordem para que a associação repusesse o artigo original (antes de 2008), que apenas reconhece que “a assembleia é constituída pelos associados instituidores e titulares de títulos de participação com direito de voto”. Sem bancos à mistura.

Não foi a única decisão desfavorável aos bancos. O tribunal também mandou anular o número sete do artigo 11.º, que conferia aos títulos de participação dados como penhor os respetivos direitos de voto nas assembleias gerais. Dizia este número: “No caso de os títulos de participação serem onerados, designadamente através de penhor, é permitido ao respetivo titular conferir, durante o período de vigência do respetivo ónus, o direito de voto ao beneficiário do ónus, que poderá requerer o averbamento desse facto no livro existente na Associação”. Com a decisão do tribunal de anular esta disposição, os títulos penhorados e nas mãos dos bancos deixaram de representar direitos de voto.

Qual foi o argumento utilizado pelo tribunal para decidir anular estes estatutos? “No que tange à participação na Assembleia Geral da associação ora ré e ao exercício de voto, constata-se que o número SETE do artigo Décimo Primeiro e os números UM, e único, QUATRO alínea b) e SEIS do artigo Décimo Quarto dos Estatutos [alterados] estão feridos de nulidade por violarem disposições imperativas do apontado regime legal das associações“, justificou o juiz. Ou seja, os bancos fizeram alterações aos estatutos que em alguns casos vão contra a lei que rege as associações, considerou o tribunal.

Antes, na fundamentação que antecedeu a decisão, o tribunal deixava algumas considerações sobre o que diz o regime legal da associações. Relativamente à possibilidade de os credores pignoratícios exercerem o direito de voto, refere que “apenas os associados podem participar na assembleia geral, exercendo o direito de voto”.

“Acresce que o credor pignoratício é obrigado a não usar a coisa empenhada sem o conhecimento do auto de penhor, exceto se o uso for indispensável à conservação da coisa”, argumentou ainda o juiz.

No que tange à participação na Assembleia Geral da associação ora ré e ao exercício de voto, constata-se que o número SETE do artigo Décimo Primeiro e os números UM, e único, QUATRO alínea b) e SEIS do artigo Décimo Quarto dos Estatutos [alterados] estão feridos de nulidade por violarem disposições imperativas do apontado regime legal das associações.

Juízo Central Cível de Lisboa - Juiz 12

Foi já munido desta decisão do tribunal que, a 6 de maio de 2016, Joe Berardo convocou a assembleia geral da Associação Coleção Berardo para repor a “legalidade” dos estatutos.

Só mais tarde é que os bancos se aperceberam deste volte face. A 4 de outubro de 2016, ainda registaram no cartório os estatutos acordados em 2008. Porém, poucos dias depois, a 17 desse mês, foram repostos e declarados vigentes pelo cartório os estatutos à luz da decisão do tribunal.

Durante este processo, a Associação Coleção Berardo fez “aumentos de capital” que terão diluído a poder dos bancos. Embora os títulos de participação tenham sido recentemente executados pelas instituições financeiras, não se sabe exatamente qual o número de direitos de votos que passaram a deter diretamente, isto é, não se sabe se os bancos continuam ou não em maioria na assembleia geral. O que se sabe é que se os bancos quiserem vender estes títulos terão de ter luz verde da associação.

É no Museu Coleção Berardo onde estão expostos obras da associação.Wikimedia Commons

Associação pode dar lucro ao associado

A decisão judicial favoreceu Joe Berardo na medida em que este passou a controlar novamente a assembleia geral da Associação Coleção Berardo. Mas nem todas as reclamações do autor da ação contra a associação — cuja ligação ao comendador passa pelos advogados de ambos, que são primos — foram colhidas pelo tribunal.

Por exemplo, alegava Joaquim Vieira de Sousa que, com as alterações promovidas pelos bancos, a associação passou a ter um fim económico e os títulos a conferirem direito a proventos. Isto vai contra aquilo que estabelece o regime das associações. É “uma regra de ouro” e uma “ideia basilar”: “Uma associação pode praticar atos lucrativos, mas não visa a obtenção de lucro, nem a distribuição de proventos pelo associados”. E “é uma regra essencial sob pena de, sob uma máscara de associação, uma sociedade atuar encapotada no mercado, beneficiando de um regime que o legislador não previu nem quis este tipo de pessoa coletiva“, insistiu o autor na petição inicial com 27 páginas — o autor tinha como advogado Gonçalo Moreira Rato, primo do advogado de Joe Berardo, André Luiz Gomes.

Este argumento (como todos os outros) foi contestado pela defesa da Associação Coleção Berardo, que coube à sociedade de advogados Cuatrecasas e tinha o próprio André Luiz Gomes como mandatário.

O tribunal também rejeitou aquela tese. “Só existirá violação do princípio de especialidade se a autor se dedicasse com caráter habitual à prática de atos tendentes à obtenção do lucro, visando o benefício económico dos associados”, defendeu o juiz. Deste modo, ao contrário do que pedia o autor, manteve-se o número quatro do artigo 11.º, que abre a porta a que haja distribuição de proventos aos titulares dos títulos: “A titularidade de títulos de participação não confere direito a quaisquer proventos, salva deliberação da assembleia geral em sentido diferente”.

Eram várias as anulações que o autor da ação contra a associação pedia: mais de uma dezena de disposições nos estatutos. O tribunal só deu razão ao autor e mandou anular quatro disposições dos estatutos. No final, decidiu-se pela absolvição da ré Associação Coleção Berardo na parte restante e condenou o autor e a ré no pagamento das custas do processo, pouco mais de 600 euros, na proporção de 30% para o primeiro e 70% para a segunda.

Berardo foi além do que tribunal mandou

À boleia da decisão judicial, que deu parcial razão ao autor da ação, o comendador foi além do que o tribunal mandou anular e alterar nos estatutos. E aqui poderá ter entrado em contradição com o que afirmou no Parlamento no passado dia 10 de maio.

Por partes. Quando, em maio de 2016, Berardo repõe a “legalidade” dos estatutos com base na decisão do tribunal, também modificou a redação do número cinco e seis do artigo 11.º sobre os “Títulos de Participação”. Mas sobre este ponto o juiz nada mandou fazer, embora Augusto Joaquim Vieira de Sousa tenha pedido a nulidade também do número cinco em concreto.

Com a alteração (não pedida pelo tribunal), o empresário madeirense assegurou que os bancos só podem vender dos títulos de participação com o consentimento da assembleia geral — na anterior redação deste número, a transmissão dos títulos era “livre, não dependendo de qualquer dos órgãos sociais”. Assegurou ainda que “os associados instituidores não perdem a respetiva qualidade por transmissão da totalidade dos seus títulos de participação se assim for decidido pelo presidente da associação aquando do conhecimento da transmissão“. A associação tem Berardo como presidente vitalício.

Quando foi ao Parlamento no âmbito da comissão parlamentar de inquérito à recapitalização da CGD e aos atos de gestão do banco, Joe Berardo explicou que alterou esta regra para se defender dos “fundos abutres”, mas que o fez também por determinação do tribunal. Contradição ou lapso de memória?

Vale a pena recordar a interação do comendador com a deputada do CDS:

Cecília Meireles: “Nesta alteração que fez aos Estatutos, uma das coisas que modificou foi a possibilidade de transmissão dos títulos de participação e da posição de associado. Pode explicar-me porquê?”
Joe Berardo: “Porque estávamos com medo da situação que estava a acontecer nos bancos que vendiam tudo aos fundos…”
Cecília Meireles: Os fundos cobram com mais agilidade do que os bancos. Se calhar é isso, não?
Joe Berardo: Talvez, talvez.
(…)
Joe Berardo:O que estou a dizer é que o tribunal mandou fazer certa coisa, não tenho o direito…
Cecília Meireles:É o tribunal que tem medo dos fundos?
Joe Berardo:Sei lá, eu não sei! Não estou a dizer que seja o tribunal, estou a dizer que nós nos protegemos.
Cecília Meireles:Eu gostava de saber que ação foi essa e precisamente que tribunal foi esse e que data tem.”
Joe Berardo:Não a temos aqui mas podemos mandar amanhã“.

O empresário madeirense e a Associação Coleção Berardo nunca chegaram a enviar aos deputados informação sobre a decisão do tribunal (que agora é revelada pelo ECO) e sobre a “golpada”, o que levou a comissão de inquérito à Caixa a fazer queixa ao Ministério Público, invocando o crime de desobediência.

A sentença do Tribunal da Comarca de Lisboa, que é hoje divulgada pelo ECO, esteve indisponível nas últimas semanas porque foi requisitada pela PGR que está a investigar os contornos da “golpada” de Joe Berardo.

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