A última batalha de Mario Draghi. Vem aí um tiro de bazuca ou pólvora seca?

Ao fim de quase oito anos a combater os falcões, Draghi tem mais oposição à decisão anunciada de avançar com mais estímulos. Depois de vencer a guerra, poderá perder a última batalha?

A pouco mais de mês e meio de abandonar a presidência do Banco Central Europeu, Mario Draghi enfrenta uma resistência inédita que pode deitar por terra as promessas de estímulos adicionais feitas em junho em Sintra. O italiano ganhou a guerra contra Jens Weidmann durante praticamente todo seu mandato, mas numa das suas últimas batalhas, a bazuca de Mario Draghi poderá, pela primeira vez, acabar a disparar pólvora seca.

“Na ausência de melhorias, de tal forma que o regresso sustentado da inflação para a nossa meta é ameaçado, serão necessários estímulos adicionais“, anunciou Mario Draghi a 18 de junho durante o Fórum do BCE em Sintra.

Um mês depois, na conferência de imprensa após a reunião do Conselho de Governadores do BCE, Mario Draghi reforçou o aviso. “As perspetivas económicas estão cada vez piores”, disse, explicando que o Conselho de Governadores concordou de forma unânime que há mais riscos e que uma recuperação económica no segundo semestre do ano “é cada vez menos provável”. Neste cenário, “se as perspetivas para a inflação a médio prazo continuarem aquém do nosso objetivo, o Conselho de Governadores está determinado a agir”. Questionado sobre o que seria feito, o italiano disse que “nenhum instrumento está absolutamente excluído”.

Mas a intenção de Mario Draghi (e não só) está a esbarrar numa oposição alargada pouco comum durante o seu mandato. Depois de um período mais comedido nas críticas — quando estava na corrida à sucessão de Mario Draghi –, o presidente do Bundesbank, Jens Weidmann, voltou a expressar reservas sobre a estratégia, e tem do seu lado os governadores do Banco da Holanda, da Estónia e também da Áustria.

“A questão é se são necessárias novas medidas tendo em conta as perspetivas para a inflação, especialmente se aumentarem os efeitos colaterais e a eficiência diminuir. (…) Sou especialmente cauteloso no que diz respeito à compra de dívida soberana”, disse Jens Weidmann, numa entrevista a 25 de agosto ao jornal alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung.

"A questão é se são necessárias novas medidas tendo em conta as perspetivas para a inflação, especialmente se os efeitos colaterais aumentarem e a eficiência diminuir. (…) Sou especialmente cauteloso no que diz respeito à compra de dívida soberana”

Jens Weidmann

Governador do Banco da Alemanha

Klaas Knot, governador do Banco da Holanda, defende o fim do programa de compra de ativos do BCE desde, pelo menos, janeiro de 2018, e voltou a não fugir à mensagem: “Se os riscos de deflação ressurgirem, então o programa de compra de ativos será um instrumento apropriado para ativar, mas não há necessidade [de o fazer nesta altura] da leitura que faço das perspetivas da inflação”, disse numa entrevista dada a um jornal holandês no final de agosto.

O governador do Banco da Áustria, Robert Holzmann, também demonstrou ceticismo em relação às sugestões de Mario Draghi: “Serei mais critico em relação a mais propostas para maiores estímulos monetários”.

"Serei mais critico em relação a mais propostas para maiores estímulos monetários.”

Robert Holzmann

Governador do Banco da Áustria

Durante grande parte do seu mandato, Mario Draghi teve de lidar com a oposição da ala mais conservadora de governadores dos bancos centrais do euro, oposição essa liderada por Jens Weidmann. Mesmo com essa oposição, o italiano conseguiu convencer os governadores a avançar com várias medidas de estímulo monetário, como cortes nos juros praticados pelo BCE nos empréstimos aos bancos, taxas de juros negativas nos depósitos, empréstimos de longo prazo aos bancos e vários programas de compra de ativos.

No entanto, numa altura em que o seu mandato se aproxima do fim, a relação de forças está a mudar, e Mario Draghi pode ter ganho um opositor de peso aos seus planos: o governador do Banco de França, François Villeroy de Galhau.

Numa entrevista ao jornal suíço L’Agefi, publicada no início deste mês, François Villeroy de Galhay questionou a necessidade de avançar já com mais compras de dívida e defendeu que as medidas que estão em prática estão a funcionar.

“A compra de ativos vai continuar a ser um instrumento essencial da política monetária. Está a funcionar de forma robusta: o BCE detém no seu balanço quase 2,6 biliões de euros [de ativos] e vai manter este nível elevado durante vários anos. (…) Temos a opção de aumentar as compras a qualquer momento. Será que é necessário fazê-lo agora? É algo que tem de ser discutido”, disse.

"Temos a opção de aumentar as compras a qualquer momento. Será que é necessário fazê-lo agora? É algo que tem de ser discutido.”

François Villeroy de Galhau

Governador do Banco de França

Para o francês, a prioridade deve ser ancorar de forma mais clara quais são as expectativas para a inflação da parte do BCE, sugerindo uma clarificação do ‘forward guidance’ — a orientação dada sobre a evolução no tempo das taxas de juro diretoras — para as taxas de juro de curto prazo.

A oposição a Mario Draghi não vem apenas dos governadores. Também na sua própria comissão executiva há quem esteja contra. Sabine Lautenschläger, um dos quatros membros da comissão executiva além do presidente e do vice-presidente, defendeu que “é demasiado cedo para um grande pacote [de estímulos]“.

“Ainda estou convencida que o Programa de Compra de Ativos é um último recurso, e deve ser usado apenas se houver risco de deflação. E não há qualquer sinal de risco de deflação”, disse.

"É demasiado cedo para um grande pacote [de estímulos]. (…) Ainda estou convencida que o Programa de Compra de Ativos é um último recurso, e deve ser usado apenas se houver risco de deflação. E não há qualquer sinal de risco de deflação.”

Sabine Lautenschläger

Membro da comissão executiva do BCE

Já é tempo de agir?

A guerra comercial entre Estados Unidos e China, União Europeia, Canadá, México e vários países asiáticos, como a Coreia do Sul e o Japão, já está a ter consequências nas principais economias mundiais. A economia europeia cresceu apenas 0,2% no segundo trimestre do ano, com a Alemanha e o Reino Unido em contração e, com a data do Brexit a aproximar-se — e a possibilidade de um acordo cada vez mais longe –, a incerteza tem aumentado sobre o futuro próximo do bloco europeu.

A este crescimento anémico junta-se a diminuição da taxa de inflação que, apesar de todas as medidas colocadas em prática pelo BCE, caiu para 1% em julho e agosto. Com as perspetivas económicas na zona euro mais negras e a inflação cada vez mais longe do objetivo de perto, mas abaixo, de 2% estabelecido no mandato do BCE, Mario Draghi decidiu que era hora de recarregar a bazuca e fez uso do peso que as suas palavras ainda têm no mercado.

Se em outros momentos, bastou Mario Draghi dizer que o BCE estava disponível e preparado para agir — como foi o caso quando criou o OMT, um instrumento nunca usado mas que permitiu reduzir as taxas de juro –, a situação não é tão clara agora.

Stefan Gerlach, economista-chefe do banco suíço EFG e antigo vice-governador do Banco da Irlanda, defendeu numa coluna publicada no Project Syndicate que “a eficácia de quaisquer estímulos adicionais é questionável” porque as taxas de juro já não podem descer muito mais e é difícil conseguir fazer descer ainda mais a taxas de juro de longo prazo, num cenário em que muitos dos países da Zona Euro já não se conseguem financiar a taxas de juro negativas.

“Infelizmente, o BCE está numa situação complicada. Alimentou de tal forma as expectativas de mais estímulos que as taxas de juro das obrigações de longo prazo vão aumentar se não avançar com algum estímulo a 12 de setembro. Mas o BCE faria melhor se não avançasse com compras de dívida em grande escala. Nesta altura, qualquer pacote de estímulos significativo parece prematuro”, defendeu.

O economista indiano Ahsoka Mody, antigo diretor-adjunto do Departamento Europeu do Fundo Monetário Internacional e chefe de missão para a Alemanha, Irlanda, Suíça e Hungria, também acredita que os riscos associados a mais estímulos são maiores do que os benefícios que poderiam ser retirados da implementação de novas medidas.

O antigo responsável do FMI argumenta que “Mario Draghi arrisca-se a agravar os problemas da Zona Euro” nas semanas finais do seu mandato, uma vez que tem uma margem muito reduzida para cortar nas taxas de juro, o que teria um impacto muito limitado na economia, mas colocaria uma pressão ainda maior sobre os bancos europeus.

Com as taxas de juro dos depósitos em terreno negativo e a economia a desacelerar na Zona Euro, os ativos dos bancos têm perdido valor e os seus lucros já são muito baixos, argumenta. Mais estímulos só colocariam ainda mais pressão sobre a banca europeia, defende.

Os responsáveis do BCE e do FMI têm insistido que a política monetária não pode ser a única a agir quando a economia se encontra em dificuldades e, numa altura em que as taxas de juro da dívida pública estão em terreno negativo, os países poderiam estimular a economia investindo mais. Mas os orçamentos dos vários países que agora começam a ser discutidos não parecem trazer grandes mudanças, especialmente na Alemanha, o país com maior margem orçamental. Apesar de estar em contração e das necessidades de investimento identificadas, o Governo alemão prometeu mais investimento, mas em dose comedida e sem abdicar de um orçamento equilibrado, mesmo depois da pressão francesa.

As armas à disposição de Draghi

Mario Draghi abandona a presidência do BCE no final de outubro. Até lá tem apenas duas reuniões para agir, a desta quinta-feira e a última no dia 24 de outubro, antes de Christine Lagarde assumir as rédeas da instituição. A oposição a grandes mudanças já nesta reunião é grande. Os quatro governadores que se insurgiram publicamente contra novos estímulos representam quase 40% da chave de capital do BCE.

Mas o italiano está longe de estar de mãos atadas. A sua palavra ainda tem muito peso dentro do Conselho de Governadores do BCE e nos mercados, e tem pelo menos dois aliados declarados em torno do plano de voltar a agir: os governadores do Banco da Finlândia e do Banco de Espanha.

Mario Draghi pode também forçar uma votação, algo pouco comum num Conselho de Governadores que toma sempre as suas decisões por unanimidade, mesmo sabendo-se da oposição habitual de algumas fações. Nesse cenário, o presidente do BCE teria a vantagem de, ao abrigo do sistema de votação rotativo, o governador do Banco de França ser um dos que não tem poder de voto nesta reunião, apesar de continuar a participar.

Entre as armas à disposição de Draghi estão um novo corte na taxa de juro dos depósitos (atualmente em -0,4%) com algumas medidas para mitigar o impacto nos bancos, mudar a composição do cabaz de dívida que pode comprar, aumentar o nível das compras e ainda definir um limite temporal para o Forward Guidance (a orientação dada ao mercado sobre a evolução das taxas de juro).

Mario Draghi pode ainda adiar qualquer decisão para as próximas reuniões, fazendo depender as novas medidas da evolução dos indicadores económicos — tal como fez a Reserva Federal na sua reunião de julho, e deixar a decisão para Christine Lagarde. Seja qual for a decisão, o mercado vai reagir às palavras de Mario Draghi. Resta saber se com entusiasmo ou deceção.

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