Como a crise Rússia-Ucrânia está a afetar os preços do gás na Europa

  • Joana Abrantes Gomes
  • 29 Janeiro 2022

A iminência de um conflito na fronteira da Rússia com a Ucrânia está a ter consequências sobre o fornecimento e os preços do gás na Europa, por ser largamente dependente do gás russo.

As tensões entre a Ucrânia e a Rússia – e, consequentemente, com o Ocidente – estão no seu ponto mais alto desde a anexação da Crimeia por Moscovo em 2014. Os EUA e os seus aliados da NATO acreditam que a Rússia mobilizou cerca de 100 mil tropas para preparar uma invasão militar do leste da Ucrânia e, nessa eventualidade, já avisaram que vão impor pesadas sanções. Mas Putin pode retaliar, encerrando os gasodutos que transportam gás russo para a Europa, o que terá consequências sobre os efeitos para o abastecimento e os preços do gás no continente europeu.

A Europa é muito dependente do gás russo?

Cerca de 35% do gás natural da Europa tem origem na Rússia. A maioria é fornecida através de gasodutos: o Yamal, que atravessa a Bielorrússia e a Polónia até chegar à Alemanha; o Nord Stream 1, que tem ligação direta à Alemanha; e outros gasodutos que atravessam território ucraniano.

Os mercados internos de gás do continente europeu estão ligados por uma rede de gasodutos interconectados. Nem todos os países são fornecidos diretamente pela Rússia, mas se países como a Alemanha, o maior consumidor de gás russo, recebem menos da Rússia, devem substituí-lo a partir de outros países – por exemplo, da Noruega, o segundo maior fornecedor de gás para a Europa.

E Portugal, também importa gás natural da Rússia?

No caso de Portugal, como não tem jazidas de gás natural, importa 100% do que consome, de acordo com a Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos. As estatísticas da Direção Geral de Energia e Geologia mostram que no ano passado o gás natural chegou a Portugal através de gasoduto (via Espanha e Argélia), camião (Espanha) e navio (GNL), até ao Porto de Sines, onde é armazenado.

O regulador explica também que esse aprovisionamento de gás natural é efetuado através de contratos “take-or-pay” de longo prazo, em que os principais países fornecedores foram, em 2021, a Nigéria, os EUA, a Rússia, Espanha e a Argélia. No passado, o gás argelino tinha um peso muito maior nas importações nacionais, mas entretanto deu lugar ao shale gas norte-americano e também aumentou a dependência do mercado português do gás russo, que surge já em terceiro na tabela das importações.

O que está a acontecer com o fornecimento de gás russo à Europa?

Em 2021, os fluxos através dos três principais gasodutos da Rússia para a Europa totalizaram 37.409 gigawatts-hora por dia (GWh/d), o que representa uma queda face a 2020 (41.263 GWh/d) e 2019 (49.431 GWh/d), segundo revelam dados do Refinitiv Eikon.

A diminuição do abastecimento de gás russo em 2020 deveu-se à redução da produção económica, uma vez que os confinamentos para impedir a propagação da Covid-19 levaram a uma quebra na procura. Porém, quando as economias dos países começaram a recuperar do impacto da pandemia no ano passado, os fornecimentos à Europa não conseguiram acompanhar o aumento do consumo, o que contribuiu para os preços recorde da energia no continente.

Além disso, o fornecimento de gás através do gasoduto Yamal, que normalmente abastece o oeste europeu, têm ocorrido em sentido inverso, com fluxos que vão da Alemanha para a Polónia.

Qual o argumento da Rússia?

Em outubro, o Presidente russo, Vladimir Putin, afirmou que a crise energética na Europa não é justificada apenas por perturbações no lado da produção, atribuindo responsabilidades à área política europeia. Na altura, o líder russo defendeu que os países europeus cometeram um “erro” ao contar com compras pontuais de gás natural em vez de assegurar contratos a longo prazo, sendo que a Rússia prefere contratos de gás de longo prazo, por serem uma forma de garantir que pode manter a sua quota de mercado e assegurar um preço consistente.

A Gazprom, o maior conglomerado russo de gás natural, afirmou entretanto que está a cumprir todos os seus contratos de longo prazo, enquanto várias empresas europeias contactadas pela Reuters confirmaram que as obrigações contratuais estão a ser cumpridas.

No entanto, a nacional energética russa decidiu este mês não reservar espaço extra no gasoduto para o abastecimento de gás natural à Europa através da Ucrânia, o que deixará o mercado no limite em fevereiro. Adicionalmente, não foram feitas reservas para o mesmo mês com destino à Alemanha, através da estação de Mallnow.

Qual o impacto que a crise na fronteira ucraniana com a Rússia está a ter nos preços do gás europeu?

A escalada da tensão entre as potências ocidentais, a Ucrânia e a Rússia está a provocar uma volatilidade nos preços do gás britânico e da Europa continental – embora apenas cerca de 5% do gás do Reino Unido provenha da Rússia -, pelo que um abastecimento global de gás mais baixo da Rússia à Europa significa que menos gás estará disponível da Noruega.

Essa volatilidade nos preços diários do gás na Europa pode agravar-se perante a iminência de mudanças significativas nas expectativas de fluxos através dos principais gasodutos da Rússia ou de declarações políticas do Kremlin, sobretudo relativas à tensão militar na fronteira com a Ucrânia, até porque já há menos gás russo disponível no mercado diário, o que está a acentuar a crise global de abastecimento na Europa.

Exemplo disso foram os preços europeus do gás de referência a 6 de outubro, dia em que atingiram um recorde de 155 euros por megawatt-hora (MWh), caindo a pique no mesmo dia após Putin ter anunciado o envio de mais gás para a Europa, fechando 26% abaixo da alta, a 114 euros/MWh.

O que acontece ao gasoduto Nord Stream 2?

Como parte de possíveis sanções caso a Rússia invada a Ucrânia, a chefe da diplomacia alemã já assinalou que pode suspender o novo gasoduto Nord Stream 2, que liga diretamente a Rússia à Alemanha. Este gasoduto foi projetado precisamente para aumentar as importações de gás para a Europa, mas sublinha, simultaneamente, a dependência energética do continente face a Moscovo.

A rota, que decorre em paralelo com o gasoduto existente Nord Stream 1, permitirá duplicar a capacidade de exportação anual para 110 mil milhões de metros cúbicos, cerca de metade do total das exportações de gás da Rússia para a Europa por ano. No entanto, embora a construção do Nord Stream 2 esteja concluída, ainda não recebeu “luz verde” das autoridades alemãs para começar a funcionar.

Assim, caso o gasoduto não avance por razões políticas, as preocupações sobre o fornecimento de gás na Europa para o longo prazo irão aumentar, o que torna necessário que o continente europeu procure outras fontes de abastecimento.

Há planos para encontrar outras fontes de fornecimento de gás?

Esta semana, os Estados Unidos iniciaram conversações com grandes países e empresas produtores de energia para assegurar um fluxo de gás ininterrupto para a Europa durante o resto do Inverno se a Rússia invadir a Ucrânia. “Temos estado a trabalhar para identificar volumes adicionais de gás natural não russo de várias áreas do mundo; do Norte de África, do Médio Oriente à Ásia e aos Estados Unidos”, afirmou um alto funcionário da administração norte-americana, citado pela Reuters sob condição de anonimato.

Contudo, o plano de Washington é complicado devido ao facto de os maiores produtores de gás natural liquefeito (GNL) já estarem a produzir o máximo que podem, pelo que há pouco disponível para substituir os grandes volumes de gás russo que abastecem a Europa, que, segundo o mesmo funcionário, ascendem a 40 mil milhões de metros cúbicos por ano, avançou ainda a Reuters. Ainda assim, está prevista para 7 de fevereiro uma reunião entres os responsáveis políticos com a pasta da Energia da UE e dos EUA.

“Para garantir que a Europa seja capaz de atravessar o Inverno e a Primavera, esperamos estar preparados para assegurar abastecimentos alternativos que cubram uma maioria significativa do potencial défice”, disse o funcionário. Nesse sentido, considera fulcral identificar as zonas “que seriam mais afetadas pelo corte de abastecimento russo e onde o armazenamento é inferior ao de outros locais na Europa“.

A Europa, em resposta ao abastecimento de gás russo inferior ao esperado, já começou a comprar GNL aos Estados Unidos por meio de navios-tanque originalmente destinados à Ásia. A notícia da compra de gás aos norte-americanos, na altura, causou uma descida nos preços de referência do gás natural europeu.

Quais as consequências para a Europa caso Putin encerre os gasodutos? E para a Rússia?

Uma das conclusões da mais recente simulação de cenários de catástrofe elaborada pela Rede Europeia de Operadores de Sistemas de Transmissão de Gás foi que “a infraestrutura europeia de gás proporciona flexibilidade suficiente para que os Estados-membros da UE […] assegurem a segurança do fornecimento de gás”, mas na altura do exercício, não foi considerado o atual cenário de tensão nas fronteiras de Leste da Europa com a Rússia.

Ainda assim, a revista The Economist fez algumas contas para o caso de a Rússia interromper o abastecimento de gás para a Europa. Um corte total custaria à Gazprom entre 203 e 228 milhões de dólares por dia, o equivalente a 20 mil milhões em três meses.

Não se sabe se a ameaça de sanções “sem precedentes” pelo Ocidente podem ser dissuasoras para Putin, sendo que Moscovo já se habituou a viver com elas sem grandes efeitos para a sua economia, mas é preciso notar que, a hoje, nunca envolveram o principal motor da sua economia: o setor energético. Quererá o Presidente russo envolver-se num novo conflito, que, além disso, custará muitas vidas?

Para a Europa, um conflito teria o efeito de acelerar os planos para reduzir a dependência energética da Rússia, que não têm saído do papel. A comissária europeia para a Energia, Kadri Simson, já disse que há gás suficiente para satisfazer as necessidades do bloco comunitário durante a época alta da procura no Inverno até ao final de março. Contudo, resta saber quanto terão de pagar por ele, sendo que vários Estados-membros têm gastado milhares de milhões de euros em medidas para proteger a população dos preços recorde do gás, o que, por sua vez, fez subir os custos da eletricidade.

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