Dessalinização. Será a solução para a seca em Portugal à base de água salgada?
Com 900 quilómetros de costa, transformar a água do mar em potável pode ser solução para mitigar a escassez de água. Central do Algarve está em desenvolvimento e Governo estuda hipótese no Alentejo.
A escassez de água vai continuar agravar-se no futuro e a dessalinização tem sido uma das formas levantadas para responder a esta carência. Transformar água do mar em água potável já é uma prática corrente em vários países, incluindo Espanha, e em Portugal poderão vir a existir, pelo menos, mais duas centrais de dessalinização. “As alterações climáticas indicam que, no futuro, o tema da seca prevalecerá na ordem do dia. Este é, portanto, o momento certo para se tomarem medidas concretas“, diz ao ECO/Capital Verde Jorge Antunes, diretor da Hitachi Vantara, uma consultora especializada na área da tecnologia.
Portugal enfrentou este ano o período de seca mais severo do último século. Em maio, o Instituto português do Mar e da Atmosfera (IPMA) dava conta que 97,1 % do território encontrava-se na classe de seca severa e 1,4 % na classe de seca extrema, e, no mês seguinte, marcado por temperaturas recorde, derivadas de uma onda de calor, o Governo alertou que isso teria impactos negativos na atividade agrícola. Desde então, a situação de seca desagravou-se, estando agora a maioria do território em situação de seca fraca.
Entre as soluções apresentadas para mitigar a seca, que no verão ameaçava o consumo o humano, apelava-se à eficiência hídrica e a um consumo doméstico mais responsável, tendo esta resultado numa ordem do Governo para a redução do consumo em empreendimentos turísticos, no Algarve, região fortemente afetada.
O Governo aparentou sempre alguma reserva quanto ao tema da dessalinização, embora já estivesse em curso o desenvolvimento da primeira central em Portugal Continental, no Algarve, no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) — um cenário muito diferente da vizinha Espanha, que acolhe 700 centrais de dessalinização. E tudo indica que este número deverá aumentar, depois de o país ter anunciado que serão investidos 200 milhões de euros para aumentar a capacidade do país de retirar o excesso de sal da água de forma a torna-la potável.
“Durante um período de seca, a solução da dessalinização surge como uma das melhores alternativas porque a capacidade de produção de água potável diminui drasticamente e é finita por definição, numa época de seca extrema”, explica o diretor da consultora. Para o responsável, a aposta nesta solução permitirá ter um “melhor controlo sobre o fornecimento de água às populações e à indústria, onde a agricultura aparece como um dos setores mais afetados” além de permitir serem desenvolvidas de “novas tecnologias”. Tudo isto, diz, teria“um impacto positivo para a economia nacional”.
Vai ser no Algarve que será inaugurada a primeira central em Portugal continental que transformará a água salgada em água potável, tratando-se de um investimento de 45 milhões de euros no âmbito do PRR – uma pequena parcela dos 200 milhões de euros alocados para as medidas eficiência hídrica destinadas àquela região. Ao ECO/Capital Verde, a Águas do Algarve revela que a obra servirá como complemento ao atual Sistema Multimunicipal de Abastecimento de Água para consumo humano na região e deverá ficar concluída em março de 2026. Para já, encontra-se em “fase de desenvolvimento dos estudos necessários para se poder colocar a empreitada a concurso”.
Para o diretor da Hitachi Vantara, a “limpeza” da água do mar para consumo humano será uma solução “fundamental” para a região do Algarve que, tendencialmente, “regista picos de atividade turística em época de seca”. “Aqui, a falta de água vai impactar-nos a um nível completamente transversal”, diz, uma vez que “grande parte da atividade económica depende da sua abundância”, isto sem esquecer os benefícios para a indústria, que permitiria “criar as bases para a continuação das atividades nos setores mais prejudicados”.
Depois do Algarve, a região litoral alentejana poderá ser a próxima. Segundo o ministro do Ambiente e da Ação Climática, a região foi identificada como uma “das mais afetadas pela seca” e, por isso, está a ser estudada a “possibilidade da existência de uma central dessalinizadora” para a região, que servirá para responder “às necessidades identificadas” e que se encontram, atualmente, pressionadas pelo setor do turismo e da produção industrial e agrícola.
Esta não é, no entanto, uma solução inédita no país: a ilha de Porto Santo, na Madeira, foi pioneira na dessalinização e já transforma água do mar em água potável há mais de 40 anos. A solução, inaugurada em 1980, permitiu mitigar a seca e escassez de água.
A ECO/Capital Verde, o presidente da autarquia ressalva que a estratégia permitiu assegura o desenvolvimento da ilha, sublinhando que a solução “revolucionou o nosso território”. “Sem a dessalinização nós hoje, provavelmente, não estaríamos a falar do desenvolvimento do Porto Santo”, garante Nuno Batista.
Na ilha, são “limpos” cerca de 6500 metros cúbicos de água por dia e distribuídos por toda a população para consumo humano. O processo é realizado através de osmose inversa, o oposto da osmose natural. Por outras palavras, através da aplicação de uma força mecânica nas bombas de alta pressão, a água flui através de uma membrana da central, passando de uma solução mais concentrada (água salgada) para uma menos concentrada, depois de membrana reter os sais e/ou impurezas.
Custos e impactos
Apesar de haver vantagens no recurso à água do mar, existem, também, riscos. Em declarações ao ECO/Capital Verde, Maria José Roxo, investigadora da Faculdade de Ciência Sociais e Humanas (FCSH), defende que seja “muito bem ponderada” a solução virada para as centrais, argumentando que deve ser analisado o custo-benefício destas infraestruturas.
“Penso que existem muitas outras medidas que devem ser pensadas. A questão da dessalinização deve ser ponderada, e muito bem ponderada, porque são conhecidos os efeitos negativos do processo”, nomeadamente, o gasto energético, diz. “No caso de projetos mais ambiciosos, poder-se-á caminhar para o uso da energia das ondas, concebendo assim um ecossistema praticamente fechado, onde se usa então a força do mar para tratar a água salgada, e se encaminha os subprodutos para um circuito industrial”, recomenda o diretor da Hitachi Vantara.
Mas os resíduos e subprodutos, maioritariamente, cobre e cloro, “que ficam da dessalinização” e que, muitas vezes, “são lançados novamente no oceano, e perturbam os ecossistemas das áreas onde existe esse processo”, são outro fator que teria um impacto ambiental, aponta a investigadora da FSCH.“Urge, assim, pensar desde logo sobre estes processos, por forma a não estarmos a limpar água e a poluir o meio ambiente como resultado”, recomenda o responsável da consultora.
Além dos impactos, devem ser tidos em conta os custos. Ao ECO/Capital Verde, o Ministério do Ambiente e da Ação Climática indica que cada metro cúbico de água “limpa” na central do Algarve poderia custar entre os 35 a 50 cêntimos por metro cúbico. “para a situação de disponibilidade máxima de exploração da futura estrutura e tendo por base estudos preliminares da infraestrutura a construir”. No entanto, ressalva que encontra-se em curso a Avaliação de Impacte Ambiental e que só depois será possível “calcular o custo mais exato de cada metro cúbico de água, dada a contabilização necessária de valores relacionados com custos energéticos, adução, elevação e distribuição”. Segundo Pedro Vaz, administrador das Águas de Portugal, o valor poderá ascender aos 90 cêntimos.
Em Porto Santo, estima-se que um metro cúbico de água dessalinizada custe 0,79 cêntimos, sendo que 0,50 cêntimos seja derivado do custo da eletricidade. “Mas para nós, mais importante ainda que o custo, é perceber o custo da vida. A sobrevivência não tem um custo”, afirma Nuno Batista.
Com a central do Algarve em fase de desenvolvimento e a do litoral alentejano em fase de “estudo” por parte do Governo, o diretor da consultora ressalva que a replicação para outras regiões não deve depender do facto de essas terem problemas ou risco de seca”, devendo servir, principalmente, “como um plano preventivo para não esgotar os aquíferos que consumimos desde sempre”.
Além disso, defende, a construção destas dessalinizadoras deve ir ao encontro, também da iniciativa privada, nomeadamente, os mais afetados por falta de acesso facilitado à água como a hotelaria, turismo ou grupos agrícolas. “Será importante deixá-las [às empresas] entrar este modelo de estações de dessalinização de água, por oposição à adoção destes projetos por parte de entidades públicas”.
Mas mesmo que as centrais possam ajudar a mitigar os efeitos da escassez de água, existe um problema de fundo que fica por resolver: “Existe um aspeto muito importante”, alerta Maria José Roxo. “É que, quanto mais água existir, mais será a tendência para gastar. E isso preocupa-me porque o nosso principal problema é não sabermos gerir os recursos hídricos que temos”, defende a investigadora.
No consumo doméstico, esse desperdício acontece, tendencialmente, em hábitos que se foram normalizando. Por exemplo, só na casa de banho, uma torneira ligada durante um minuto, enquanto lava os dentes ou faz a barba, pode gastar até 12 litros de água. Já por cada dois minutos no banho com a torneira aberta, são gastos cerca de 24 litros de água. “Estamos a desperdiçar uma brutalidade de água tratada que podia ser utilizada em várias funções e que não está a ser”, alerta a investigadora.
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