O patrão Estado paga melhores salários. Porquê?

Os trabalhadores da Administração Pública ganhavam em média mais 51,2% do que no setor privado em 2021. Os economistas ouvidos pelo ECO Trabalho ajudam a perceber porquê.

Os trabalhadores da Administração Pública (AP) ganhavam em média mais 51,2% do que os do setor privado em 2021, com uma remuneração bruta mensal média de 2.019 euros face aos 1.335 euros no privado, mostravam os dados Instituto Nacional de Estatística (INE). Mesmo para trabalhadores com o mesmo grau de ensino, o Estado era o melhor ‘patrão’. Qualificações mais elevadas, idades mais avançadas, menor fosso salarial entre homens e mulheres, menor peso de setores com salários mais baixos, benefícios extra salariais e ainda a força sindical são alguns dos fatores que podem ajudar a explicar esta disparidade salarial, apontam os economistas ouvidos pelo ECO Trabalho.

Estamos a falar de populações de trabalhadores muito diferentes. Por exemplo, em 2021, 55% dos trabalhadores da Administração Pública tinham ensino superior, enquanto 45% dos trabalhadores do setor privado tinham, no máximo, o 9.º ano de escolaridade“, começa por explicar Fernando Alexandre, docente na Universidade do Minho.

Mas não só. O fator idade também explica esta diferença salarial entre público e privado. “Analisando a estrutura etária das duas populações de trabalhadores em 2021, 66% dos trabalhadores da Função Pública tinham mais de 45 anos, enquanto no setor privado apenas 40% dos trabalhadores tinham mais de 45 anos. Dado que a mais escolaridade e mais idade, e experiência, estão associados salários mais elevados, não surpreende que os salários médios no setor público sejam muito mais elevados“, continua.

Apesar de mais metade dos trabalhadores da Administração Pública terem, em 2021, o ensino superior — contra 22,7% dos trabalhadores com este grau académico no privado — as diferenças salariais entre os dois setores mantém-se, independentemente do nível de escolaridade. Em termos médios, trabalhadores com ensino superior na Função Pública (FP) têm uma remuneração bruta média de 2.957 euros e no privado de 2.263 euros, ou seja, quase 700 euros (30,7%) de diferença. Embora, no topo da distribuição, a diferença seja apenas de 180 euros (+3,3%).

Os trabalhadores que entraram no mercado de trabalho (durante a crise financeira), a grande maioria para o setor privado, fizeram-no com salários mais baixos. Nesta medida, os trabalhadores que já estavam na Função Pública até 2007, a grande maioria, apesar de terem perdido poder de compra em termos reais, ficou protegida de cortes salariais nominais.

Fernando Alexandre

Economista

Esta primeira explicação, que poderia ser a mais óbvia, requer, por isso mesmo, mais explicações. “Para além da escolaridade e de uma estrutura etária muito diferentes entre a Função Pública e o privado, sabemos que, desde a crise financeira, os salários dos mais qualificados foram muito penalizados, estando em 2020 num nível nominal inferior ao de 2006. Os trabalhadores que entraram no mercado de trabalho nesse período, a grande maioria para o setor privado, fizeram-no com salários mais baixos. Nesta medida, os trabalhadores que já estavam na Função Pública até 2007, a grande maioria, apesar de terem perdido poder de compra em termos reais, ficou protegida de cortes salariais nominais (com a exceção do período de vigência do Programa de Assistência Económica e Financeira 2011-2014)”, refere Fernando Alexandre, doutorado em Birkbeck, Universidade de Londres.

Do gap salarial, composição setorial e benefícios…

O economista João Cerejeira acrescenta ainda outros fatores à explicação: um “menor gap salarial entre homens e mulheres na Função Pública que no privado, uma vez que os vencimentos da FP resultam menos do mercado e mais da negociação coletiva” e um “menor peso de setores de baixos salários, como a restauração ou comércio a retalho, na FP do que no privado”.

Para o também docente na Universidade do Minho, podemos estar perante aquilo que considera ser o “efeito combinado” de três razões: idade, gender gap e composição setorial. E associa estes fatores ainda ao “facto de a componente variável e dos fringe benefits — automóvel, seguro de saúde, cartão de refeição, etc. — serem mais relevantes no privado do que no público”.

… à força sindical

Existe ainda outro tema que João Cerejeira considera que vale a pena destacar: a força sindical na negociação de salários. “A força dos sindicatos depende do grau de ‘pulverização’ das entidades patronais, entre outros fatores. Em setores com uma presença muito significativa de PME [Pequenas e Médias Empresas], a negociação tende a ser muito descentralizada, em que o papel do sindicato é mais reduzido. Os setores com uma maior concentração empresarial (exemplo da banca, energia, transportes) beneficiam a negociação salarial, uma vez que os meios de pressão (como a greve) são mais eficazes”, explica João Cerejeira.

No caso da FP temos um ‘patrão’ único, daí que a negociação (com os Sindicatos) seja, muitas vezes, de um para um, aliada ao facto do Estado ser um agente que, quase por definição, não pode falir em resultado de uma greve. Assim, o poder dos sindicatos na FP é maior.

João Cerejeira

Economista

“No caso da FP temos um ‘patrão’ único, daí que a negociação seja, muitas vezes, de um para um, aliada ao facto de o Estado ser um agente que, quase por definição, não pode falir em resultado de uma greve. Assim, o poder dos sindicatos na FP é maior, embora o dano da greve não seja refletido no ‘lucro’ do acionista Estado, mas sim na prestação do serviço ao público em geral (a consequência da greve, para o Governo, tende a ser mais política que económica)”, completa.

Argumentos à parte, há contudo uma questão que fica a pairar. Apesar de salários mais elevados, “a verdade é que os mais qualificados não veem na Função Pública uma possibilidade de carreira e continuam a emigrar. Os médicos preferem o privado. E sabemos que há muito a profissão de professor deixou de ser atrativa“, conclui Fernando Alexandre.

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