Como é que o negócio da Tranquilidade com a Liberty muda o mercado em Portugal
O negócio segurador do ano produz novas lideranças em Portugal, inquieta sindicato e vai reorganizar de novo a Tranquilidade/Generali com a integração da Liberty. Saiba o que muda com este negócio.
A compra da unidade europeia da Liberty pela Generali está a levantar interrogações sobre o futuro do mercado português e sobre a forma como a Tranquilidade, a marca da seguradora italiana em Portugal, e a Liberty, se vão orientar e posicionar no mercado a partir de agora.
Para começar, a soma aritmética da produção e quotas de mercado com base em dados relativos a 2022 da Associação Portuguesa de Seguros (APS) indica que, neste momento, a Tranquilidade/Generali reforça a terceira posição no ranking português, estando mais próxima do Grupo Ageas Portugal.
Todo o negócio da compra da Liberty Europa terminou com o sucesso da Generali pelo valor de 2,3 mil milhões de euros, significando ter sido fechado muito acima dos mil milhões inicialmente previstos. Com 1,2 mil milhões de prémios emitidos, pouco mais de 200 milhões de euros de resultados líquidos, considerados contabilisticamente, mas legalmente empolados, parece um valor elevado, tanto que a sua carteira europeia é essencialmente automóvel e habitação, setores que atravessam uma conjuntura pouco favorável, com a inflação a causar aumentos invulgares nos custos com sinistros.
As justificações para este valor, para o negócio, são apenas lidos nos comunicados da Liberty Seguros, a empresa europeia da Liberty Mutual que foi agora vendida e que centralizava em Madrid as operações da Portugal, Espanha, Irlanda e Irlanda do Norte, e da Generali que afirma que “a transação gera economias de escala adicionais em todo o Grupo Generali, graças à redução de custos, à otimização de TI e à venda cruzada de produtos”.
Acrescenta-se que a Liberty Seguros está fortemente capitalizada, apresentava um rácio de solvabilidade de 330% no final de 2022, mais do triplo dos 100% que os reguladores consideram o limite abaixo do qual os fatores de solvência de uma seguradora precisam ser corrigidos. No balanço da Generali, o impacto da operação na solvência será negativa em -9,7%, pouco significativo, já que em março deste ano a seguradora italiana contava com 227% neste indicador.
Com esta aquisição, a Generali passa a ser a quarta maior seguradora Não Vida em Espanha, reforça nesse segmento o seu segundo lugar em Portugal com uma quota de 22,3% e entra diretamente para o top 10 irlandês. O preço elevado acaba por resultar igualmente de uma competição pelo negócio entre grupos financeiramente poderosos, a Allianz, a Axa e a Grupo Catalana Occidente. Encarado como investimento de longo prazo, fontes próximas da Generali identificam a compra como estratégica em ramos que, acreditam, no médio prazo voltarão a um equilíbrio técnico.
Apesar destas explicações, o preço final acabou sempre por ser surpresa, até por que ao longo das negociações pouco se foi sabendo. O Bank Of America, nomeado para a condução da venda, foi várias vezes solicitado a prestar declarações a ECOseguros, e a todas respondeu que não comentava. O secretismo também valeu para os advogados da Liberty, o escritório Skadden, Arps, Slate, Meagher & Flom. Também do lado italiano nada transpareceu. O Citigroup e o Credit Suisse foram consultores financeiros, a Clifford Chance, a Morais Leitão e a Matheson atuaram como consultores jurídicos da transação. Liberty e Generali remeteram para os comunicados oficiais detalhes sobre o negócio.
Ainda do ponto de vista legal, a operação precisa da aprovação dos reguladores de todos os países envolvidos, ou seja, dos Estados Unidos, Itália, Irlanda, Espanha e Portugal, embora não se vislumbrem problemas de concorrência.
Depois, ainda há a eventual separação dos ativos e negócios da Liberty por cada um dos três mercados. A Generali está a estudar diversos cenários de organização legal mas, para já, a aquisição foi realizada pela casa-mãe Assicurazioni Generali SpA à holding europeia da Liberty Mutual.
Outra vez um processo de integração para colaboradores
A Liberty em Portugal é um negócio de 253 milhões de euros por ano, 833 mil clientes e conta – segundo dados da empresa – com 533 colaboradores, distribuídos entre a sede, em Lisboa, o Polo Técnico no Porto, e nas principais cidades do continente e ilhas. Tem ainda mais de 1550 agentes profissionais de seguros que funcionam como parceiros de negócio sendo o canal preferencial de distribuição da seguradora.
Também a Tranquilidade tem uma distribuição baseada em agentes, informando que conta com 2.500 pontos de venda – 80 Corretores, 2100 Agentes multimarca e 350 Agentes exclusivos e anuncia quase 2 milhões de clientes. Tem um negócio de 1,2 mil milhões de prémios por ano, cerca de 1.100 trabalhadores diretos e quase 2 mil pessoas no total, considerando a Advance Care e a Europ Assistance como parte integrante do grupo Generali em Portugal.
Tendo o grupo terminado em 2019, um processo de incorporação da Tranquilidade na Generali, avizinha-se um novo episódio de integração. José António Sousa, que liderou a Liberty Portugal até 2018, altura em que se deu a centralização em Madrid da operação europeia da mutualista, escreveu no Twitter uma recomendação a Pedro Carvalho. Disse-lhe para escolher “the best talent to get the job done” (o melhor para fazer o trabalho), que permita uma avaliação justa e meritocrática para todas as posições em que haja redundâncias, e não o método “Gengis Khan” com que habitualmente os compradores tratam os comprados”, conclui.
Patrícia Caixinha, presidente da Direção do STAS – Sindicato dos Trabalhadores da Atividade Seguradora, o mais representativo dos seguros e afeto à UGT, confirma que já foram efetuadas comunicações referentes a este processo quer aos colaboradores/trabalhadores, tanto na Liberty, como na Generali, e também aos sindicatos e demais estruturas representativas dos trabalhadores.
“Não posso deixar de expressar algumas emoções relativas a esta venda”, referiu Patrícia Caixinha a ECOseguros, acrescentando que “enquanto sindicato mais representativo do setor estamos, obviamente, preocupados com os trabalhadores/as da Liberty, mas também como os da Generali, que têm vindo a sofrer os efeitos de sucessivos processos de fusões, que nem sempre são geridos da melhor forma”. A presidente do STAS comenta: “bem sabemos, que por ora não se fala em fusão, e sim mudança de acionista, mas como se costuma dizer, em bom português, gato escaldado de água fria tem medo”.
Reconhecendo a postura quer da Liberty, quer da Generali, que “prontamente se disponibilizaram para, em conjunto com os sindicatos, levarem este processo de aquisição da forma mais serena possível e acautelando os direitos dos trabalhadores de ambas as partes envolvidas”, a sindicalista lembra que a Liberty é, neste momento, a única empresa de seguros a operar em Portugal em regime exclusivo de teletrabalho, o que pressupõe que possa existir uma integração menos evasiva deste negócio. Já quanto à Generali, refere que “as reservas são maiores até pelo histórico decorrente das já sucessivas fusões, que as pessoas desta empresa têm vivenciado nos últimos tempos, apesar da boa vontade manifestada pela administração”, conclui.
Em relação aos recursos humanos, ECOseguros conseguiu apurar que as situações serão hoje mais favoráveis. A Liberty já tinha funções centrais espalhadas por Espanha, Portugal e Irlanda, a Tranquilidade acabou de passar por um processo de fusão. Na área tecnológica a Liberty tem valor real nas áreas do CRM (software de relação com clientes) e em Inteligência Artificial e os talentos destas áreas são para manter.
Marcas, agentes e quotas de mercado
A Liberty, enquanto marca, vai desaparecer dos três mercados, a Génesis talvez não, comenta uma fonte conhecedora do negócio. É normal que a Liberty Mutual queira conservar as suas marcas, é de resto normal isso acontecer. A própria Generali, quando em 2021 comprou a filial da AXA na Grécia, tornando-se a segunda maior seguradora do país a seguir à Allianz, dispôs de poucos meses para fazer desaparecer toda a imagem do grupo francês.
E, se a Generali portuguesa conseguiu convencer Trieste (cidade onde fica a sede) a conservar as marcas Tranquilidade em Portugal – e Açoreana no arquipélago – mais óbvio é substituir toda a imagem Liberty rapidamente. A autonomia da companhia portuguesa é, segundo a mesma fonte, muito respeitada e as relações com o grupo não passam necessariamente por Espanha, vão diretamente para as diferentes unidades na Europa. “A deslocalização não está mesmo no horizonte”, conclui.
A gestão das duas redes já existentes e aproveitar para assegurar uma distribuição geograficamente mais completa do país será um dos desafios de Pedro Carvalho, CEO da Tranquilidade. Outro ponto importante e complementar é o facto de a Liberty não ter privilegiado relações com corretores, ao contrário da marca da Generali.
Característica comum à Tranquilidade e Liberty é igualmente uma presença pouco relevante no ramo Vida, que representa metade do valor do mercado nacional, e uma forte presença nos segmentos Acidentes de Trabalho e Automóvel.
Entre os 10 maiores grupos ou seguradoras únicas em 2022, apenas a Generali e Liberty, em conjunto, contam com 7% das suas vendas através de seguros de Vida. Este segmento é essencialmente alimentado pelo canal bancassurance, em que a Tranquilidade está agora a dar os primeiros passos pós-BES, depois de ter tomado capital no Banco CTT e assinado um acordo igualmente com os Correios para começar a vender produtos poupança.
Com a fusão com a Liberty, a Tranquilidade passa a ser a líder de mercado nos ramos acidentes de trabalho e automóvel, mantendo-se a Fidelidade como a maior seguradora em todos os outros ramos. No entanto, é uma liderança que será disputada nesses segmentos. Já no conjunto dos seguros multirriscos, a Tranquilidade distancia-se do Grupo Ageas Portugal.
Para o mercado português, esta nova realidade significa menos opção para agentes, corretores, prestadores de serviços. Esta fusão mantém os passos de consolidação geral do mercado das companhias, numa fase em que são as distribuidoras que procuram dimensão para poder debater condições e negócios num mesmo plano de igualdade.
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