Estou de férias. Tenho direito a desligar?
Apesar de o dever da entidade patronal não contactar o trabalhador fora do seu horário ter sido introduzido com a explosão do teletrabalho, esse dever não se aplica apenas aos trabalhadores remotos.
Está de férias e acaba de receber um WhatsApp da sua chefia com questões de trabalho. Será que tem de responder? Sendo este um período de descanso, aplica-se aqui o direito a desligar? Os escritórios de advogados ouvidos pelo Trabalho by ECO não têm dúvidas que sim. Só mesmo em “situações de força maior” é que a entidade patronal pode contactar o colaborador em período de descanso.
Desde janeiro do ano passado que a lei portuguesa acrescentou, ao já previsto direito ao descanso do trabalhador, “o dever de abstenção de contacto pelo empregador, do trabalhador em período de descanso”, a não ser por motivos de força maior, com coimas a serem aplicadas às empresas em caso de incumprimento. Mas, apesar de o dever da entidade patronal não contactar o trabalhador fora do seu horário ter sido introduzido com a explosão do teletrabalho, esse dever não se aplica apenas aos trabalhadores remotos.
“Este dever de abstenção de contacto por parte do empregador quanto aos períodos de descanso do trabalhador, apesar de ter sido previsto na lei que alterou o regime do teletrabalho, aplica-se em termos gerais, a todos os trabalhadores, pelo que não é apenas aplicável às situações de teletrabalho, mas a todas as situações”, explica Maria Luís Guedes de Carvalho. Ou seja, “qualquer empregador deve abster-se de contactar os seus trabalhadores que estejam em período de descanso, salvo motivos de força maior. E quais são os períodos de descanso? Todos aqueles em que o trabalhador não esteja a prestar a sua atividade, desde dia de descanso semanal (obrigatório ou complementar), férias, licenças, etc.”, clarifica a associada sénior da área laboral da sociedade de advogados CCA.
Este dever de abstenção de contacto por parte do empregador quanto aos períodos de descanso do trabalhador, apesar de ter sido previsto na lei que alterou o regime do teletrabalho, aplica-se em termos gerais, a todos os trabalhadores, pelo que não é apenas aplicável às situações de teletrabalho, mas a todas as situações.
Susana Afonso, sócia de direito do trabalho & fundos de pensões da CMS, corrobora que “este dever de se abster de contactar deve ser cumprido mesmo nas férias, salvaguardadas as situações de força maior. No limite, e dependendo das situações em causa, poderá ser entendido que há uma violação do direito a férias, mas nestes casos é necessário que haja culpa do empregador”, resume a especialista.
Sendo que “contactar o trabalhador” é lido num sentido amplo. Entende-se como todo “o ato de estabelecer conexão com outrem, seja por via de correio eletrónico, telemóvel, pessoalmente, entre outros”, precisa Joana de Sá. “A opção legislativa foi a de se focar no ‘dever’ de abstenção de contacto e não no ‘direito’ ao desligamento. Assim, a tónica está do lado das organizações e não nos trabalhadores”, reforça a partner e head of labour department da PRA – Raposo, Sá Miranda & Associados.
Há, assim, do lado do empregador “um dever de abstenção de contacto, pelo que não podemos dizer que o trabalhador tenha ao seu dispor mecanismos para garantir que não é contactado”, reforça.
A responsável da PRA realça o facto de a Lei considerar “ação discriminatória” qualquer “tratamento menos favorável dado a trabalhador, designadamente em matéria de condições de trabalho e de progressão na carreira, pelo facto de exercer o direito ao período de descanso”, lembra.
Caso “o empregador não cumpra o dever de abstenção a que está obrigado, o trabalhador não é obrigado a responder (salvo casos de força maior) e poderá sempre comunicar a situação à Autoridade para as Condições do Trabalho, para que a mesma atue em conformidade”, refere ainda Maria Luís Guedes de Carvalho, da CCA.
A Lei considera “ação discriminatória” qualquer tratamento menos favorável dado a trabalhador, designadamente em matéria de condições de trabalho e de progressão na carreira, pelo facto de exercer o direito ao período de descanso.
A legislação estabelece como uma contraordenação grave o não cumprimento desse dever da parte do empregador, podendo ser objeto de coima. O Trabalho by ECO questionou a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) para averiguar sobre eventuais queixas do não cumprimento do direito a desligar, mas até ao fecho deste artigo não obteve resposta.
Apenas oito convenções coletivas preveem direito a desligar
Apesar de classificar a medida como “inovadora”, passado mais de um ano da sua entrada em vigor, Maria Luís Guedes de Carvalho considera que a medida introduzida não teve efeitos “palpáveis”. E explica porquê.
“Ainda que consigamos valorizar o esforço legislativo português, de tentar assegurar um direito (a desligar) que já existia, mas que sofreu metamorfoses devido aos problemas derivados da hiper conectividade tecnológica, associada à era digital, consideramos que as consequências práticas desta previsão legal ainda não são palpáveis, com exceção de algumas empresas mais preocupadas com as garantias dos direitos dos trabalhadores e que decidiram implementar medidas internas de garantia deste direito à desconexão / dever de abstenção de contacto”, defende a associada sénior da CCA.
Ao nível da contratação coletiva, o tema parece ainda não ter chegado em força à mesa de negociações entre sindicatos e patronato. Das 240 convenções publicadas no ano passado, 11,3% já têm previsto mecanismos de regulamentação do teletrabalho – uma subida de 2,9% face a 2021. Mas no que toca ao direito a desligar, este quase não tem expressão, constando apenas de 3,3% das convenções coletivas, revela o relatório anual sobre a evolução da negociação coletiva em 2022, divulgado em junho pelo Centro de Relações Laborais (CRL). Ou seja, apenas oito convenções coletivas têm previsto o direito a desligar, mais três do que em 2021.
Ainda assim, relatam os escritórios de advogados ouvidos pelo Trabalho by ECO, há empresas onde o tema já motivou medidas internas para acautelar uma melhor proteção do bem-estar dos trabalhadores.
O que têm feito as empresas?
“Do quanto me é possível acompanhar, no seio das empresas existe cada vez mais uma cultura genuína de respeito pela conciliação da vida profissional com a vida familiar. Indubitavelmente, o tempo de trabalho e a sua previsibilidade são essenciais para garantir a saúde e a segurança dos trabalhadores”, diagnostica Joana de Sá, partner da PRA.
Esta é um visão partilhada por Susana Afonso. “Há uma maior sensibilização para este tema por parte as empresas, que têm vindo a introduzir alguns mecanismos de gestão interna com a introdução deste direito em regulamentos internos, avisos em e-mails, não sendo hoje raro a introdução de um texto standard referindo de que apesar de mensagem / comunicação estar a ser enviada àquela hora que não é expectável uma resposta”, afirma a sócia da CMS.
Joana Sá diz mesmo já ter recebido “pedidos de muitas clientes [empresas] a solicitar ajuda para verificar se todos os seus procedimentos estavam conformes e pedidos de sensibilização às equipas de coordenação sobre o tema”. Nesses casos, a sociedade de advogados sugere sempre “a elaboração e publicitação de normas explicativas sobre o dever de abstenção de contacto; a promoção de ações de sensibilização acerca da sua essência, finalidade e forma de implementação; e a inclusão de disclaimers no envio de e-mails ou mensagens”, elenca.
Há uma maior sensibilização para este tema por parte as empresas, que têm vindo a introduzir alguns mecanismos de gestão interna com a introdução deste direito em regulamentos internos ou avisos em e-mails.
“Muitas vezes são adotadas circulares internas em que é dado a conhecer / relembrado à organização a importância do ‘direito a desligar / desconectar’, bem como da importância do período de descanso, sobretudo nas empresas com maior enfoque na prevenção da saúde mental e bem-estar das pessoas que aí trabalham”, descreve Susana Afonso.
Maria Luís Guedes de Carvalho relata um conjunto de procedimentos “diversificado” pelas empresas para garantir que a organização cumpre a lei. “Desde abordar o tema em sede de negociação coletiva e tentar implementá-lo em instrumentos de regulamentação coletiva (quando há filiação em associações de empregadores), mas essencialmente através de políticas / regulamentos internos que estabeleçam normas de conduta e boas práticas”, diz.
E dá vários exemplos de regras adotadas pelas organizações. “Que o empregador não deve contactar os trabalhadores no período de descanso, e que os próprios trabalhadores não devem considerar mensagens de correio eletrónico, SMS nem WhatsApp recebidas no seu período de descanso, isto porque no setor de atividades de cariz intelectual, torna-se mais difícil este controlo, mormente por parte de colegas / clientes com horários de trabalho distintos. Naquelas normas, as empresas também esclarecem que qualquer caso de força maior será comunicado por chamada telefónica”, descreve a associada da CCA.
“Existem ainda empresas que ‘bloqueiam’ as notificações de mensagens de correio eletrónico durante o período de descanso do trabalhador, sendo estas reativadas durante o horário de trabalho”, acrescenta.
Direito a desligar regressa ao debate na Europa
Portugal – juntamente com Espanha, França e a Bélgica – é um dos poucos países da Europa onde esta política já tem força de Lei. Na União Europeia (UE), o tema do ‘direito a desligar’ — num esforço de promover uma melhor conciliação entre a vida profissional e pessoal dos trabalhadores europeus — voltou a estar este mês na ordem do dia por iniciativa de uma iniciativa do Future Workforce Alliance, um fórum de políticos, líderes empresariais e académicos.
Mais de trinta legisladores da UE assinaram o documento, não vinculativo, que visa garantir o acesso a espaços de coworking, proibir a localização dos computadores dos trabalhadores remotos e protegê-los de terem de enviar ou responder a e-mails fora do horário de trabalho.
“O trabalho à distância, os modelos híbridos e as relações flexíveis entre a vida profissional e familiar são uma mais-valia para a nossa economia, para as empresas e para os trabalhadores”, diz Dragoș Pîslaru. “Estas relações não devem ser estabelecidas à custa dos nossos trabalhadores, que têm de enfrentar linhas ténues entre a vida pessoal e profissional, aumentando as taxas de burnout e a solidão”, defende o presidente da Comissão do Emprego e dos Assuntos Sociais do Parlamento Europeu e um dos signatários da Carta, citado pela Bloomberg.
A proposta baseia-se num antigo apelo na UE ao direito a desligar dos trabalhadores, apoiada por uma maioria do Parlamento Europeu e pode até poderá tornar-se lei da UE no final deste ano, de acordo com Ben Marks, cofundador da Future Workforce Alliance.
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