“O despacho do bar aberto” e outros atropelos com que Galamba, Lacerda Machado e Escária beneficiaram o centro de dados de Sines

Na descrição que o Ministério Público faz dos bastidores do caso Influencer, referem-se pressões para avançar aprovações ambientais e diplomas legais, procurando facilitar o projeto da Start Campus.

João Galamba, ministro das Infraestruturas, Diogo Lacerda Machado, “melhor amigo” de António Costa e Vítor Escária, chefe de gabinete do primeiro-ministro fizeram alegadamente pressão sobre vários decisores para favorecer o Start Campus, a pedido dos administradores do centro de dados de Sines. O alegado tráfico de influências e corrupção passiva e ativa permitiu obter autorizações ambientais decisivas para o projeto e despachos à medida, revela o despacho de indiciação do Ministério Público, a que o ECO teve acesso.

Acabámos de emitir a decisão de dispensa de avaliação de impacto ambiental, pelo menos neste primeiro módulo”, informou Nuno Lacasta, presidente da Agência Portuguesa do Ambiente desde 2012, em conversa telefónica com o também arguido Rui Oliveira Neves, administrador da Start Campus, ainda em dezembro de 2021. Só que isso não chegava, porque a área requerida para a expansão do projeto era muito maior e incluía um parque fotovoltaico.

Rui Oliveira Neves terá pedido um encontro para “falar da envolvente ambiental toda”, ao qual Lacasta acedeu. O consultor da Start Campus indicou que “15 megawatts é para arrancar e começar”, mas que seria necessário começar a trabalhar na “next stop” (próximo passo). Depois de ter sido tomada a decisão de dispensa de AIA, Afonso Salema, CEO da Start Campus, e Rui Oliveira Neves terão iniciado a elaboração de Estudo de Impacte Ambiental, visando o restante campus do centro de dados.

Neste processo, indicam os procuradores, os arguidos Salema e Neves encetaram contactos junto de João Galamba e Lacasta, “por forma a garantir que o procedimento de Avaliação Impacte Ambiental (AIA) prosseguiria em termos favoráveis à Start Campus”. Também são descritos encontros entre Salema e Cordeiro, desde jantares “até copos”, em junho de 2022.

Entre os “obstáculos” ao projeto da Start Campus estaria o entendimento da APA de que “a Start Campus devia apresentar Estudo de Impacto Ambiental do centro de dados e do parque [solar] em conjunto e ao mesmo tempo”. Já Duarte Cordeiro e Galamba entendiam que a Start Campus pode funcionar sem parque solar, pelo que este componente podia ficar de fora do Estudo de Impacte Ambiental, o que “facilitava todo o procedimento de AIA”.

A PGR entende que “por influência” de Galamba sobre Lacasta, o solar foi autonomizado do procedimento de AIA. “Em outubro de 2023, o projeto relativo ao parque solar foi aprovado por parte da DGEG com dispensa de EIA, por forma a não ser necessário parecer do ICNF”.

“A guerra das ZEC”

As Zonas Especiais de Conservação (ZEC) foram outro dos entraves ambientais que se interpôs ao projeto, mas que acabou por ser afastado.

Aqui, segundo a PGR, Duarte Cordeiro defendia a posição do ICNF, que inicialmente considerava as ZEC “intocáveis”, mas “o ministro da Economia [Pedro Siza Vieira], o das Infraestruturas [Pedro Nuno Santos] e o primeiro-ministro [António Costa] aprovaram a desclassificação daquilo”, terá comunicado Salema a Oliveira Neves, em junho de 2022, com base no que lhe foi transmitido numa reunião com Filipe Costa, da Aicep Global Parques.

O ministro da Economia [Pedro Siza Vieira], o das Infraestruturas [Pedro Nuno Santos] e o primeiro-ministro [António Costa] aprovaram a desclassificação daquilo [terreno do Start Campus em Zona Especial de Conservação].

Afonso Salema

CEO do Start Campus

Neste âmbito, foi convocada uma reunião a 26 de maio de 2022 para “compatibilizar” a questão dos ZEC com o projeto do centro de dados. Os procuradores registam uma chamada entre Lacasta e Nuno Banza, responsável pelo Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) nesta data.

Na chamada, Nuno Banza aponta que o projeto interfere com espécies prioritárias e habitats prioritários, e que, neste caso não há compensações possíveis (em resposta a uma sugestão de Lacasta neste sentido). “O terreno do centro de dados é todo ZEC”, alerta.

Na sequência, Lacasta informa que “já isentou” o primeiro pavilhão, o que surpreende Banza. “Como?”, pergunta, “não está dentro da ZEC?”. Lacasta é perentório: “Não sei, não deve estar. Mas eu sei que já foi isentado e foi um não assunto”. Nuno Banza remata que vai ter de avançar com um parecer desfavorável. “Se eles quiserem avançar com aquilo tem que fazer aquele processo de declarar o edifício… de utilidade pública”.

No mesmo dia, após a reunião, a Procuradoria cita outra conversa telefónica, desta vez entre Galamba e Banza. Galamba indica que o pedido da AICEP Global Parques é desclassificar a zona em torno da central. Banza insiste que “estão a pedir para desclassificar uma zona na qual estão identificados habitats”, e defende que não é necessário. “A solução não é eu ir perguntar nada a Bruxelas. A solução é eu fazer o processo de avaliação de impacto ambiental, (…) se houver necessidade (…), propor as medidas compensatórias, fechar o processo, licenciá-lo e deixar lá estar a ZEC na maior”.

Apesar de inicialmente ter entendido que não eram admissíveis medidas compensatórias quanto aos habitats afetados, o ICNF inverteu a sua posição.

Despacho do Ministério Público

Assim, “e apesar de inicialmente ter entendido que não eram admissíveis medidas compensatórias quanto aos habitats afetados, o ICNF inverteu a sua posição”, afere a PGR.

Numa reunião em 22 de dezembro de 2022, continua o despacho do Ministério Público, Vitor Escária assegurou aos arguidos Afonso Salema e Diogo Lacerda Machado que o AIA teria decisão favorável.

“A Declaração de Impacto Ambiental favorável, sem oposição do ICNF, foi emitida em agosto de 2023, sem oposição do ICNF, com vista à construção das restantes fases do projeto”, concluem os procuradores. Para este resultado, diz a PGR, contribuíram “diversas pressões” por parte de João Galamba, Vitor Escária e Nuno Lacasta junto das entidades envolvidas, e a “influência” exercida por Lacerda Machado, Salema e Oliveira Neves.

O “despacho do bar aberto”

A 13 de dezembro de 2022, Afonso Salema e Rui Neves Oliveira discutiam outro senão: a capacidade de injeção na rede elétrica, que não estava assegurada. Para resolver esta questão entenderam que deviam falar diretamente com o primeiro-ministro, e procurar “promover” este encontro através de Diogo Lacerda Machado, com o conhecimento de João Galamba.

Na conversa com Machado, o CEO do Start Campus pediu “ajuda para uma audiência diretamente com o primeiro-ministro” para “fazer um ponto de situação do projeto”. Parâmetros urbanísticos e a capacidade estavam em causa. “Nós sabemos que há fórmulas fáceis mas que é preciso que venha de cima ordem a dizer: meus amigos resolvam isto”, apelou Salema. Diogo Lacerda acedeu: “deixe-me gerir isto com o Escária e depois com o António”.

Deixe-me gerir isto com o [Vítor] Escária e depois com o António [Costa].

Diogo Lacerda Machado

Advogado

Reuniram-se os três, Escária, Salema e Lacerda, a 22 de dezembro de 2022. António Costa “queria aparecer”, relatou Salema a Oliveira Neves mais tarde, mas “não conseguiu”. Neste encontro, Escária terá disponibilizado “o apoio que fosse necessário para ultrapassar obstáculos” e “conferir maior celeridade” aos procedimentos. No que dizia respeito ao plano urbanístico, antecipou-se a necessidade de intervenção, pelo que Escária ficou de contactar o presidente da Câmara de Sines, Nuno Mascarenhas, também arguido.

No início de janeiro, Ana Foutoura Gouveia assumiu as rédeas da secretaria de Estado da Energia. E isto não foram boas notícias para os gestores da Start Campus. Salema e Oliveira Neves foram confrontados com “resistência” ou “menor celeridade” no que toca à regulamentação do reforço da capacidade elétrica “para satisfazer as necessidades” do centro de dados.

Lacerda Machado foi novamente chamado a intervir, e a contactar “direta ou indiretamente” o primeiro-ministro, “com vista a pressionar a referida secretária de Estado”. Em março, Lacerda dizia a Salema que Fontoura Gouveia estaria “devidamente instruída”, “ciente do que tinha de fazer” e “à procura da fundamentação da urgência, para ser inatacável a atribuição da capacidade de injeção”.

Pelo meio, no dia 31 de janeiro de 2023, Lacerda Machado já havia reunido com Escária e pedido que Rodrigo Costa, CEO da REN, fosse chamado para explicar o plano de assegurar uma capacidade de 5,2 gigawatts em Sines até 2026, tendo em conta a inexistência de capacidade de 800 megawatts que servisse o centro de dados.

Lacerda reuniu ainda com Duarte Cordeiro em junho de 2023. Salema chegou a fazer um briefing com Diogo Machado dos temas que deveriam ser abordados naquele encontro, mais concretamente o procedimento de avaliação de impacto ambiental e “o atraso significativo na potência de injeção e da secretária de Estado, que é preciso tomar o pulso para não se perder”.

Entretanto tenho estado a ver se sai o despacho do bar aberto, ainda não saiu.

Afonso Salema

CEO da Start Campus

Em julho e agosto, os gestores da Start Campus mantêm as queixas de falta de celeridade. “Entretanto tenho estado a ver se sai o despacho do bar aberto, ainda não saiu”, queixa-se Afonso Salema a Rui Oliveira Neves, referindo-se a um documento relacionado com aumentos de potência. Os procuradores indicam que “tal diploma” foi aprovado em conselho de ministros em julho de 2023, assinado por Fontoura Gouveia e Maria Vieira da Silva, ministra da presidência, “e dele resulta um expresso favorecimento a projetos com estatuto de Potencial Interesse Nacional (PIN), bem como o estabelecimento de procedimento excecional quanto à área territorial de Sines”.

O diploma foi publicado a 6 de setembro. Na semana seguinte, REN e DGEG abriram uma consulta pública para a atribuição de capacidade de ligação à rede elétrica na zona de Sines.

“Verifica-se assim que os contactos encetados por Diogo Lacerda Machado junto de Vitor Escária e do primeiro-ministro visaram – e lograram – que o referido decreto-lei fosse aprovado e publicado o mais rapidamente possível, e com o conteúdo normativo favorável aos interesses da Start”, conclui o despacho da PGR.

A Afonso Salema, Rui Oliveira Neves, Diogo Lacerda Machado, Vítor Escária e Nuno Mascarenhas são imputados um total de 28 crimes: prevaricação, tráfico de influência, corrupção ativa e passiva – quanto a titular de cargo político, agravada – e recebimento indevido de vantagens quanto a titular de cargo público, agravado. Na lista de imputação, no final do despacho, não estão referidos os crimes relativos a João Galamba, Nuno Lacasta e João Tiago Silveira.

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