O que pode fazer agora o Governo de gestão? Constitucionalistas explicam

Até à tomada de posse do novo Executivo, o Governo vai ficar apenas com poderes de gestão, à excepção dos dossiers que tenham "estrita necessidade", explicam os constitucionalistas.

Depois da tarde parlamentar – de quase cinco horas e com registos kafkianos – que Portugal assistiu esta terça-feira e que ditou a queda do Governo de Luís Montenegro – inicia-se agora a fase de gestão deste Governo AD que resultou de eleições que tiveram lugar há apenas um ano e dois dias.

Assim sendo, e até à tomada de posse do novo Executivo, a equipa de Luís Montenegro vai ficar apenas com poderes de gestão, muito limitados. E, tal como já aconteceu noutras ocasiões da nossa democracia, há processos que podem ficar suspensos.

Tal como o ECO já tinha avançado, disto são exemplos a escolha do governador do Banco de Portugal, uma vez que o mandato de Mário Centeno acaba em julho, o lançamento de repetição de concurso para novo troço do TGV ou a aplicação dos fundos do PRR. Ou ainda o plano para as matérias-primas críticas em Portugal que prevê o lançamento de concursos para a prospeção destas matérias-primas, que vão do cobre ao lítio, e que deveriam ter lugar em 2025.

No caso da reprivatização da TAP – que era outro dos dossiers ‘quentes’ – o ministro da Presidência, António Leitão Amaro, já avisou esta segunda-feira que um Governo de gestão não pode avançar com esta decisão. “Quando se trata de processos com complexidade que precisam de atos iniciais legislativos, naturalmente o Governo em gestão está limitado para as fazer“, disse o ministro da Presidência.

Mas, afinal, o que é um Governo de gestão?

É um governo que, por não estar investido na plenitude das suas funções, exerce o poder executivo de forma limitada, tendo o papel de assegurar a continuidade do Estado e manter o status quo enquanto não é empossado um novo.

Na lei, está previsto no artigo 186 da Constituição da República Portuguesa (CRP), que escreve: “antes da apreciação do seu programa pela Assembleia da República, ou após a sua demissão, o Governo limitar-se-á à prática dos atos estritamente necessários para assegurar a gestão dos negócios públicos”. Um artigo que não é claro e objetivo e que, talvez por isso, a doutrina diverge. Quem fiscaliza o que pode ou não um governo a prazo fazer é o Presidente da República, através de requerimento ao Tribunal de Contas, o Tribunal Constitucional, que poderá apreciar a constitucionalidade dos atos de natureza normativa (regulamentos ou leis) e os tribunais administrativos, no que se refira a atos de natureza não normativa.

Luis Montenegro

O que dizem os especialistas em direito público e constitucional?

Jane Kirkby, sócia da Antas da Cunha Ecija e especialista em direito público, diz que a questão passa mesmo por : “o que deve entender-se por atos estritamente necessários para assegurar a gestão dos negócios públicos?”. Em primeiro lugar, “importa não confundir este conceito com os de atos de gestão corrente. Um governo demissionário não tem a sua atuação limitada a atos de gestão corrente, podendo praticar atos de qualquer natureza, mesmo legislativa”.

A atuação do governo é definida pela “urgência de tomar decisões que envolvem interesses significativos e cujo adiamento prejudicaria de forma relevante os interesses públicos e causaria graves prejuízos. Ou seja, em teoria, um governo demissionário pode tomar decisões importantes/estruturantes, mas para tal terá de demonstrar que a urgência e a relevância da decisão são tais que a sua não execução comprometeria o interesse público e causaria graves prejuízos, não sendo possível aguardar a formação de um novo governo. São, naturalmente, decisões de caráter excecional”.

A advogada explica que, a este propósito já o Tribunal de Contas se pronunciou por diversas vezes, tendo reforçado que um governo em gestão “não está sujeito a restrições quanto à natureza dos atos que pode praticar, desde que consiga justificar a estrita necessidade da sua prática”. Uma necessidade que deve ser “imperiosa”. Claro que, ainda assim, “existe uma margem de subjetividade”.

Tese que é partilhada por Miguel Nogueira de Brito, sócio da Morais Leitão da equipa de administrativo e direito público. “A definição constitucional do âmbito dos poderes de um Governo demitido não resulta nenhuma limitação em função da natureza dos atos admissíveis, frisando que o critério decisivo para o efeito é antes o da estrita necessidade da sua prática”.

Assim sendo, cabe ao tribunal analisar o significado “do critério considerado decisivo, isto é, o da estrita necessidade, fazendo-o corresponder, também na linha da jurisprudência anterior, à ideia de inadiabilidade ou urgência“. Com base em duas orientações: a da inadiabilidade e proporcionalidade (no sentido de necessidade). Não devendo o Governo de gestão praticar “atos de inovação política fundamental ou que comportem uma limitação significativa dos poderes de decisão do futuro Governo”.

Indo ao caso concreto, a nomeação do próximo governador do BdP, para um mandato de cinco anos, “em princípio não deverá ser feita por um Governo de gestão, dado o condicionamento do ulterior Governo”. Já o lançamento de repetição de concurso para novo troço do TGV, sim, “pressupondo a continuidade de uma decisão já tomada anteriormente”, bem como a aplicação (continuada) do PRR.

Indo ao caso concreto, a nomeação do próximo governador do BdP, para um mandato de cinco anos, “em princípio não deverá ser feita por um Governo de gestão, dado o condicionamento do ulterior Governo”. Já o lançamento de repetição de concurso para novo troço do TGV, sim, “pressupondo a continuidade de uma decisão já tomada anteriormente”, bem como a aplicação (continuada) do PRR”

Miguel Nogueira de Brito, sócio da Morais Leitão

Ricardo Branco, consultor da Abreu Advogados e Professor de Constitucional na Faculdade de Direito de Lisboa defende que “saber-se o que é a prática dos atos estritamente necessários para assegurar a gestão dos negócios públicos, à falta de concretização constitucional, depende dos órgãos constitucionais que podem controlar a atuação do Governo. No caso dos atos legislativos, cabe seguramente ao Presidente da República e ao Tribunal Constitucional controlarem se o Governo está a extravasar ou não das suas competências quando legisla”, explica o advogado.

O Tribunal Constitucional tem ainda reforçado a necessidade de uma “circunstanciada fundamentação, sob pena de, quem os pode vetar ou julgar inconstitucionais, não poder presumir a estrita necessidade”.

Por conseguinte, decisões sobre grandes obras públicas, “que já estejam inicialmente tomadas, concursadas e que, ainda por cima, dependam de fundos europeus cuja oportunidade de utilização se possa perder a prazo, parecem, apesar do constrangimento que acarretam para o Governo seguinte, poderem ser tomadas por um governo de gestão, atendendo a que já decorrem de decisões políticas estruturantes tomadas anteriormente e a que a sua não tomada se pode revestir de enormes prejuízos”.

Resumindo, o advogado considera que “sendo a ideia geral de limitação da atuação dos Governos que estão a prazo a uma atuação que não limite a liberdade de posteriores Governos em maior plenitude de funções, a verdade é que, mesmo com as diretrizes firmadas por sucessivos Presidentes da República e pelo Tribunal Constitucional, não só a análise que se faz é uma análise caso a caso, como, por força disso mesmo, a questão se mantém sempre em aberto”.

Decisões sobre grandes obras públicas, “que já estejam inicialmente tomadas, concursadas e que, ainda por cima, dependam de fundos europeus cuja oportunidade de utilização se possa perder a prazo, parecem, apesar do constrangimento que acarretam para o Governo seguinte, poderem ser tomadas por um Governo de Gestão, atendendo a que já decorrem de decisões políticas estruturantes tomadas anteriormente e a que a sua não tomada se pode revestir de enormes prejuízos”.

Ricardo Branco, consultor da Abreu Advogados

Pedro Matias Pereira, advogado na TELLES especializado em direito administrativo e constitucional explica que um Governo demitido, na sequência de uma rejeição de uma moção de confiança, ganha uma “deslegitimação”, invocando um acórdão do Constitucional. Assim, “quanto ao conteúdo das iniciativas do Governo, a fórmula constitucional, intencionalmente aberta, é passível de diferentes interpretações”. Colocando também o foco na “inadiabilidade da atuação do Governo”, mas também a respetiva proporcionalidade. “Está em causa, essencialmente, um juízo de necessidade.

No âmbito da atuação administrativa do Governo “há, no entanto, algumas normas que estabelecem limites mais concretos, como é o caso de nomeações para certos cargos dirigentes ou para reguladores, incluindo no que diz respeito à nomeação do Governador (e membros do CA do BdP – artigo 27.º/5 da Lei Orgânica do BdP)”.

O advogado concluiu ainda que “excluindo, no entanto, os referidos casos (de limitação expressa), a fiscalização da atuação do Governo de Gestão (pelo Presidente da República e pelo Tribunal Constitucional) deve observar alguma deferência para com o Governo de Gestão, seja porque a fórmula constitucional é aberta, seja porque se trata de um controlo exercido sobre o poder executivo por outros poderes constitucionais. Por outro lado, e atenta a sua legitimidade diminuída, um Governo de Gestão deve observar, de forma especial, um dever de cooperação, seja com a Assembleia da República, seja com o PR”.

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