Governo quer que seja mais fácil às empresas recusarem teletrabalho

Quando um trabalhador propõe teletrabalho, se as funções forem compatíveis, hoje o empregador só pode recusar com fundamento. Mas o Governo quer revogar essa condição, facilitando a rejeição.

Se a proposta do Governo for aprovada, vai ser mais fácil às empresas negar teletrabalho aos seus empregados. Hoje, quando as funções são compatíveis com o teletrabalho, se o trabalhador propuser um acordo, o empregador só pode recusá-lo com a indicação de um fundamento. Mas o anteprojeto da reforma da lei laboral elimina esse requisito.

Há vários anos que o teletrabalho está regulado no Código do Trabalho, mas em 2022, depois de milhões de portugueses terem sido obrigados a testar esse modelo por causa da crise pandémica, o Parlamento densificou-o.

Uma das alterações feitas, nessa altura, à legislação foi a introdução do princípio de que uma proposta de acordo de teletrabalho feita pelo trabalhador “só pode ser recusada pelo empregador por escrito e com indicação do fundamento da recusa”, no caso de as funções serem compatíveis com o exercício à distância (“pela forma como se inserem no funcionamento da empresa e tendo em conta os recursos de que esta dispõe”).

Ou seja, procurou-se, com esta norma, evitar que o teletrabalho pudesse ser “negado injustamente”, explica a advogada Inês Arruda, sócia da Pérez-Llorca, responsável da área de prática de Trabalho.

O Governo de Luís Montenegro quer, contudo, eliminar nesse princípio, no âmbito da reforma da lei do trabalho em curso. E, segundo os advogados ouvidos pelo ECO, tal significa que será mais fácil ao empregador recusar teletrabalho a um empregado.

“À pergunta se esta alteração torna mais fácil ao empregador recusar o teletrabalho, a resposta é afirmativa. Deixa de existir, fora dos casos especialmente protegidos, um ‘quase-direito’ do trabalhador à prestação remota“, explica Inês Arruda.

Deixa de existir, fora dos casos especialmente protegidos, um ‘quase-direito’ do trabalhador à prestação remota.

Inês Arruda

Sócia da Pérez-Llorca

Caso a proposta do Governo seja aprovada, a recusa de um acordo de teletrabalho proposto pelo trabalhador passará, assim, “a ser livre, desde que não assente em fundamento discriminatório“, salienta a mesma.

Em declarações ao ECO, Inês Arruda acrescenta que a revogação desta norma “traz ganhos de clareza e segurança jurídica, evitando litígios sobre o que constitui ou não uma ‘justificação suficiente'”, uma vez que a exigência hoje prevista na lei “criava zonas de incerteza e impunha formalismo difíceis de compatibilizar com muitas decisões legítimas, mas pouco objetáveis, como a rotação de equipas, a manutenção da cultura organizacional ou estratégias comerciais internas”.

Também o advogado Gonçalo Pinto Ferreira, sócio coordenador da área de Trabalho e Segurança Social da TELLES, adianta que hoje “nem sempre se apresenta fácil” para a empresa preencher os requisitos necessários para recusar a proposta de teletrabalho do trabalhador.

Assim, esta proposta de revogação poderá, efetivamente, ter um impacto prático mais significativo“, realça o advogado, que também concorda que, com esta mudança, o processo de recusa de parte da empresa sairá facilitado.

Creio que esta alteração poderá ser geradora de conflitos e tensões, em particular se as decisões de recusa não tiverem um substrato objetivo e comprovável.

Gonçalo Pinto Ferreira

Sócio da Telles

No entanto, Gonçalo Pinto Ferreira considera “que esta alteração poderá ser geradora de conflitos e tensões, em particular se as decisões de recusa não tiverem um substrato objetivo e comprovável“, avisa.

“Importa salientar que a revogação desta norma não eliminará os especiais deveres do empregador, designadamente em matéria de não discriminação, pelo que considero que continuará a ser importante, também numa perspetiva de boa gestão de recursos humanos, que existam fundamentos objetivos que suportem a recusa do teletrabalho”, aconselha o advogado.

De notar que, regra geral, o teletrabalho depende de acordo entre o empregador e o trabalhador, mas há situações em que o empregado pode exercer as suas funções à distância, sem que a empresa se possa opor, desde que as funções sejam compatíveis.

São os tais casos “especialmente protegidos”, referidos acima pela advogada Inês Arruda. Em causa estão os trabalhadores que sejam vítimas de violência doméstica, os trabalhadores com filhos até três anos (ou até aos oito anos, nos casos em que ambos os progenitores exerçam teletrabalho em períodos sucessivos) e os trabalhadores a quem tenha sido reconhecido o estatuto de cuidador informal não principal.

E se for o trabalhador a negar teletrabalho?

A lei que entrou em vigor em 2022 não regulou apenas os casos em que o empregador tem direito a negar o teletrabalho. Também definiu as regras a aplicar nas situações em que o trabalhador rejeita exercer as suas funções remotamente.

Assim, desde essa altura que está estipulado que, quando a proposta de acordo de teletrabalho parte do empregador, “a oposição do trabalhador não tem de ser fundamentada“.

Ora, no âmbito da reforma da lei do trabalho que está a ser negociada, o Governo de Luís Montenegro também quer eliminar esse princípio.

“Embora não decorra necessariamente desta revogação a obrigatoriedade de o trabalhador fundamentar a recusa, é expectável que muitas empresas interpretem essa alteração no sentido de exigir ao trabalhador que justifique por que razão não aceita o regime de teletrabalho“, avisa Gonçalo Pinto Ferreira, que considera que a recusa por parte do trabalhador pode ficar, assim, mais difícil.

É expectável que muitas empresas interpretem essa alteração no sentido de exigir ao trabalhador que justifique por que razão não aceita o regime de teletrabalho.

Gonçalo Pinto Ferreira

Sócio da Telles

Por isso, o advogado vinca que esta mudança “poderá potencialmente criar tensões adicionais na relação entre empresa e trabalhador”, especialmente quando o argumento apresentado pelo trabalhador não é do agrado do empregador.

Importa notar que, hoje, a lei do trabalho deixa também claro que a recusa de teletrabalho por parte do trabalhador não pode “constituir causa de despedimento ou fundamento de aplicação de qualquer sanção“. E essa norma também desaparecerá, se a proposta do Governo for aprovada.

Esta segunda-feira, em declarações ao Público, o socialista Miguel Cabrita (que era secretário de Estado do Trabalho quando as regras do teletrabalho foram densificadas) alertava que, sem essa salvaguarda, “as pessoas podem ser pressionadas a aceitar teletrabalho, quando é do interesse das empresas e não delas“.

Os advogados ouvidos pelo ECO garantem, porém, que mesmo sem esse princípio estabelecido na lei, não há riscos para os trabalhadores, uma vez que esse eventual despedimento seria considerado ilícito.

A recusa de uma proposta não constitui qualquer ilícito disciplinar ou causa de despedimento. Por isso, de nada vale dizer ‘não podendo a recusa constituir causa de despedimento ou fundamento da aplicação de qualquer sanção’.

David Carvalho Martins

Sócio da Littler Portugal

“A recusa de uma proposta não constitui qualquer ilícito disciplinar ou causa de despedimento. Por isso, de nada vale dizer ‘não podendo a recusa constituir causa de despedimento ou fundamento da aplicação de qualquer sanção’. A atual solução legal tem apenas um conteúdo programático ou de propaganda“, atira o advogado David Carvalho Martins, sócio diretor da Littler Portugal.

“Mesmo não existindo tal norma, na minha opinião, dificilmente se poderá despedir um trabalhador ou sancioná-lo disciplinarmente apenas porque não aceita uma proposta de acordo de teletrabalho“, entende o sócio da TELLES.

Também Inês Arruda faz essa previsão. Questionada, a advogada assinala que o trabalhador continuará a poder recusar o regime remoto, até porque o teletrabalho continuará a depender de acordo entre as partes. “A proteção contra sanções discriminatórias ou injustas continua assegurada pela Constituição e pelo Código do Trabalho“, acrescenta.

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