A falta de rigor uniformizada
Os únicos alojamentos locais que serão ilegais amanhã serão aqueles que, concretamente, por iniciativa do(s) proprietário(s) de alguma fração vizinha, um tribunal venha a decidir como tal.
Um recente Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, proferido pelo pleno das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça, veio incendiar a discussão pública relativa ao Alojamento Local, ao determinar que “no regime da propriedade horizontal, a indicação no título constitutivo, de que certa fração se destina a habitação, deve ser interpretada no sentido de nela não ser permitida a realização de alojamento local”.
O incêndio deflagra, desde logo, pelos muitos que atribuíram a este acórdão o poder de determinar “o fim do alojamento local” ou a “ilegalidade do alojamento local”, como amiúde fomos lendo na comunicação social.
Mas, será efetivamente assim?!
Para responder é preciso, antes de mais, procurar entender o que é um Acórdão de Uniformização de Jurisprudência. Trata-se de uma decisão, proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça, que tem o objetivo de, ao abrigo do princípio da igualdade e da segurança e certeza jurídicas, pôr fim às divergências, contradições e diferentes entendimentos que, ao abrigo da mesma legislação e sobre a mesma questão de direito, sejam patentes em decisões dos nossos tribunais. Em suma, visa evitar que situações iguais tenham soluções diferentes em tribunal.
O que significa, desde logo, que um acórdão de uniformização de jurisprudência não é apto a alterar a moldura legal existente para determinada matéria, nem a condicionar ou impor de forma automática a atuação de qualquer particular ou entidade administrativa (salvo das partes intervenientes no processo em que foi proferido), apenas relevando no estrito contexto judicial. E, mesmo aqui, diga-se, sem carácter vinculativo para os tribunais que venham a ser chamados a apreciar tal questão, embora tenha de reconhecer-se o caráter formador, persuasivo e orientador da jurisprudência uniforme nas decisões futuras.
Pelo que importa uma primeira conclusão: apenas poderão vir a ser considerados ilegais, à luz desta jurisprudência uniformizadora, os concretos alojamentos locais que sejam efetiva e diretamente colocados em crise em tribunal, no âmbito de um processo judicial autónomo e específico destinado a obter a sua proibição. Fora deste contexto, não só os existentes alojamentos locais não se tornaram, da noite para o dia, ilegais, como não é introduzida qualquer limitação formal ao nascimento e desenvolvimento de novos AL’s.
Da análise da decisão, importa retirar ainda uma conclusão: apenas estarão abrangidos por esta orientação do Supremo Tribunal os alojamentos situados em frações autónomas de prédios constituídos em regime de propriedade horizontal, ficando de fora todos os que não sejam aí situados (por exemplo, os que ocupam partes de prédios não submetidos a propriedade horizontal embora suscetíveis de utilização independente).
Acresce que a decisão uniformizadora, se bem que salvaguardando que não seria intrinsecamente diferente com base na legislação atual, tem na verdade por base a legislação anterior sobre esta matéria. Pelo que, não é impossível que a decisão possa encontrar alguma limitação à sua aplicação generalizada aos alojamentos nascidos ao abrigo da lei atual que tem previstos específicos mecanismos de reação contra os AL’s.
Pelo que se reitera: os únicos alojamentos locais que serão ilegais amanhã serão aqueles que, concretamente, por iniciativa do(s) proprietário(s) de alguma fração vizinha, um tribunal venha a decidir como tal.
Mas é verdade que não pode ignorar-se o dano desta decisão!
Ao ter reduzido a pó a alia quanto a decisões futuras, bem como a necessidade de alegar e provar efetivos e concretos danos, fazendo por isso depender apenas e só da vontade ou capricho dos contestatários o recurso a tribunal, não só esta uniformização provocará um acréscimo de litigância cujo resultado será, na prática, o fim dos alojamentos locais que sejam objeto de contestação concreta como, evidentemente, introduz fundados receios e travões em todos quantos pretendam investir na área.
Aqui chegados, competirá a outro poder, designadamente o legislativo, reanalisar a questão e, na ótica dos interesses em contenda, entre eles o do país, intervir de modo a, aí sim de forma geral e abstrata, salvar ou condenar o alojamento local, designadamente esclarecendo, por via de lei, se o alojamento local constitui ou não um “fim diverso de habitação”, nos termos das disposições que regulam a propriedade horizontal.
Se houver bom senso do legislador, talvez a uniformização tenha vida curta.
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