Paulo de Almeida Sande e Rita Leandro Vasconcelos, sócios da Cruz Vilaça Advogados, falaram de temas como as incursões da UE nas Big Techs e a importância do direito europeu no atual contexto.
A Advocatus esteve à conversa com Paulo de Almeida Sande e Rita Leandro Vasconcelos, sócios da Cruz Vilaça Advogados, em que foram abordados temas como as “incursões da UE” em matérias digitais, nomeadamente a sua intenção de regular diretamente as BIG TECHS, o Direito Europeu e sua importância no atual momento critico e em setores como o energético, gás e digital.
Quais serão as implicações reais do Regulamento dos Serviços Digitais (DSA) e do Regulamento dos Mercados Digitais (DMA)?
O DSA e o DMA têm objetivos diferentes. O DSA aplica-se ao setor em geral. O DMA aplica-se aos gatekeepers (em português, controladores de acesso), que são as grandes tecnológicas e plataformas.
O DSA pretende criar um espaço digital mais seguro e transparente para proteção das pessoas, nomeadamente de menores. Por isso, impõem-se, entre outras, obrigações como: a adoção de mecanismos de sinalização de conteúdos ilegais (e mesmo a suspensão de contas que os promovam com frequência); a adoção de mecanismos de verificação de vendedores em mercados virtuais; a prestação de informações sobre políticas de moderação de conteúdos. As grandes empresas vão ter ainda mais obrigações, como a adoção de medidas proativas de mitigação de riscos.
Já o DMA visa questões como a interoperabilidade, os dados e as relações comerciais entre prestadores de serviço. O objetivo é manter os mercados contestáveis ou abertos, i.e., garantir que há concorrência no mercado e permitir que as empresas cheguem aos utilizadores. Pode até obrigar as empresas afetadas a ter de alterar o seu modelo de negócio. Por exemplo, vai ser possível fazer download de apps de lojas de aplicações concorrentes e pagar através de diversos meios de pagamento.
No entanto, o impacto pode vir a ser menor do que o esperado. Primeiro, algumas das regras são vagas e sujeitas a interpretações divergentes.
Segundo, outras dependem da vontade de terceiros, nomeadamente dos utilizadores. É o caso da obrigação de assegurar a interoperabilidade com sistemas de mensagens instantâneas concorrentes, que depende do acordo dos utilizadores.
Terceiro, entendendo-se que a qualidade das pesquisas online depende do acesso a dados de pesquisas anteriores, o DMA consagra uma obrigação de acesso para os gatekeepers. Ora a concessão do acesso não é assim tão simples, pois os dados têm de ser anonimizados, o que, naturalmente, prejudica a sua qualidade. Para além disso, o acesso não tem de ser gratuito. Haverá certamente discussão sobre o que são termos razoáveis a aplicar.
Por fim, poderá ainda questionar-se a própria legalidade do DMA, Regulamento adotado como um instrumento legislativo de mercado interno que parece conter regras que parecem ter mais a ver com questões de concorrência, o que poderá levar a que seja questionada a sua base jurídica.
Consideram que estas regras são uma incursão da União Europeia em matéria que devia ser apenas dos reguladores?
A maioria da regulação setorial que conhecemos vem do legislador da União Europeia (UE). A questão não é tanto uma incursão da UE em matéria de regulação, mas sim a confusão entre regras de concorrência e normas regulatórias e a assunção, por parte da Comissão, de competências de autoridade reguladora que não lhe sejam conferidas pelos Tratados.
O que acontece (em especial com o DMA) é que estão a criar-se proibições de atuação per se, inspiradas em situações que, normalmente, levariam a uma análise da legalidade da situação pelas autoridades de concorrência, mas não seriam proibidas sem essa análise. Aliás, até é possível que algumas dessas proibições sejam contrárias ao direito da concorrência, como é o caso da obrigação de assegurar a interoperabilidade do sistema de mensagens instantâneas do gatekeeper com o de terceiros.
A justificação para a consagração destas regras é a de que as autoridades têm observado o mercado e verificado que esses comportamentos existem e que um processo de concorrência não é suficientemente rápido para pôr termo à infração.
Não está muito clara a forma de organização da atividade entre as autoridades nacionais e a Comissão; é certo que já há experiência de coordenação na Rede Europeia de Concorrência, mas não será exatamente a mesma coisa. E como se coordenam estas regras e poderes com a aplicação do direito da concorrência – este fica só para os casos que não constam do DMA?
O objetivo destas novas leis será o de regular, em concreto, as grandes tecnológicas?
No caso do DMA, sem dúvida. Aliás, as proibições constantes do DMA são inspiradas em processos da Comissão Europeia contra empresas como Google, Microsoft, Apple ou Amazon, por exemplo.
O DMA estabelece obrigações para os gatekeepers que só podem ser impostas a outras empresas depois de um processo de infração às regras de concorrência. Em certas circunstâncias podem, até, ser impedidas fusões e aquisições durante algum tempo, para travar as chamadas “killer acquisitions”. No entanto, de acordo com as regras gerais, nem todas as fusões e aquisições têm de ser comunicadas às autoridades. Será que proibições tão abrangentes são proporcionais?
Até ao nível das coimas o DMA é inovador. Em alguns casos, podem ir até 20% do volume de negócios das empresas.
Como se pode tentar que um dos gigantes da tecnologia tenha o mesmo tratamento que uma pequena ou média empresa deste setor?
O que se está a fazer é, precisamente, dar tratamento diferente às Big Tech. Os decisores aperceberam-se de que os drivers dos negócios digitais são diferentes. Estas empresas estão empenhadas em controlar o consumo. Isto é diferente de modelos de negócio tradicionais em que as empresas se concentram essencialmente na produção.
Mas não nos podemos esquecer que o DSA e o DMA são normas que acrescem às que já existem. É preciso encontrar um equilíbrio para atingir os objetivos pretendidos pela legislação, sem que a regulação se transforme num ónus desproporcionado para as empresas. Caso contrário, o resultado pode ser mais prejudicial do que benéfico, designadamente do ponto de vista da eficiência e da inovação.
Há uma arbitrariedade nas regras de funcionamento por parte dos gigantes da tecnologia? As empresas menores e start-ups não estão a conseguir competir com esses concorrentes muito grandes?
Parece-nos que está a prevalecer uma ideia de big is bad. Mas isso não é necessariamente verdade. Grandes empresas e mercados concentrados também podem trazer benefícios para o consumidor, em particular no campo da inovação. Para além disso, certas regras, como a abertura à interoperabilidade, podem causar dificuldade nas operações, nomeadamente, em questões de cibersegurança.
Ora, o que é que se pretende proteger? Os consumidores ou as empresas mais pequenas, que até podem nem ser suficientemente eficientes? Não nos devemos esquecer que o processo de concorrência deve ser baseado no mérito (empresas inovadoras, eficientes, que baixam o preço ao consumidor) e não subsidiado por lei.
Aceitamos que há interesses legítimos a proteger com o DSA e o DMA, mas é necessário encontrar um equilíbrio entre a proteção dos direitos das pessoas e a liberdade empresarial, que origina inovação em benefício dessas mesmas pessoas.
Claro que algumas das chamadas “big tech”, considerando a sua dimensão e presença global, acabam por ter um poder de mercado que é suscetível de desvirtuar o seu funcionamento, podendo, no final, prejudicar os consumidores. Por isso insistimos na importância do equilíbrio e da proporcionalidade na defesa dos interesses em jogo.
Neste contexto de guerra na Europa, que papel decisivo poderá ter o direito europeu e da concorrência?
Os tempos vividos na Europa, e na verdade no mundo em geral, são desafiantes, para não dizer ameaçadores, para o esforço de regulação, dentro do continente e para além dele. Isto é tão verdadeiro no que respeita ao direito europeu em geral, com o ênfase colocado na transição digital como nas regras relativas à sustentabilidade, seja no plano financeiro seja nos planos industrial e comercial, como, mais especificamente, no direito da concorrência. A existência de regras comuns, sobretudo em matérias tão estruturantes como essas, é cada vez mais necessária, mas existe, e com peso crescente, um risco real de fragmentação regulatória, sob pressão das novas ideologias anti mercado global, das chamadas “guerras culturais” e políticas respetivas (“political culture wars”), dos nacionalismos e da pressão dos reguladores nacionais com diferentes culturas. As regras da concorrência da União Europeia, uma política exclusiva para o conjunto da União que existe desde o Tratado de Roma, de 1957, são essenciais para a realização do mercado interno e o seu funcionamento sem distorções. A pressão da guerra, mais do que nunca, pode resultar no reforço da tendência para a nacionalização dessas regras, fragmentando-as e tornando inviável o comércio livre e equilibrado no seio da União – e isso seria o pior que podia acontecer à Europa num período tão difícil como aquele que vivemos.
Em concreto: será o direito europeu crucial na regulação de áreas como energia e gás?
A estratégia para uma União Europeia da Energia existe desde 2015 – foi delineada numa comunicação da Comissão, sob presidência de Jean Claude-Juncker, com a referência COM/2015/080. O seu objetivo é o de garantir aos consumidores e cidadãos europeus, às empresas, às famílias, às pessoas, acesso a uma energia acessível, segura e sustentável. A regulação dessa União, assente em objetivos energéticos e climáticos bem determinados, assenta num regulamento de 2018, o qual definiu um mecanismo de governação baseado em planos nacionais integrados para o período 2021 a 2030. Nunca como hoje, com os desafios já referidos e, em particular, as consequências da guerra na Ucrânia e da situação económica criada por ela, foi tão importante essa governação conjunta e europeia, em matéria energética – desde logo no que respeita ao gás, mas também ao petróleo e ao carvão. Sem essa regulação e cooperação, os objetivos da União Europeia da Energia serão inalcançáveis e muito elevados os seus custos para os cidadãos europeus.
Os vossos clientes são mais empresas ou privados?
A CVA – nos curtos dois anos de existência já vividos desde que, em 2019, o seu fundador José Luís da Cruz Vilaça decidiu apostar na criação de um escritório altamente especializado em direito da União Europeia, da concorrência, no digital e noutras áreas do direito internacional e nacional – tem já dezenas de clientes, pessoas individuais, empresas privadas ou entidades públicas. Trabalhamos igualmente com associações de setores específicos, alguns de grande sensibilidade. Fazemos em muitos casos a ponte, no plano jurídico, entre os clientes que nos procuram e as instituições europeias, não apenas o Tribunal de Justiça, mas também a Comissão e o Parlamento Europeu, bem como organizações internacionais distintas da União Europeia, como o Conselho da Europa e o seu Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Somos solicitados por escritórios nacionais e estrangeiros a colaborar em matérias relacionadas com as nossas áreas preferenciais de especialização. Mas atuamos, também, no interesse dos nossos clientes, em processos de natureza contenciosa e administrativa, em Portugal como na União Europeia.
Internacionais ou nacionais?
Cerca de metade dos nossos clientes, numa estimativa aproximada, são empresas e grupos internacionais. Já prestámos assessoria ou consultoria a empresas dos setores ambiental, tecnológico (incluindo “big tech”), dos transportes, farmacêutico, do consumo, do setor alimentar, da saúde, dos serviços de pagamento, da energia, dos tabacos, entre outros. Já agimos junto do Tribunal de Justiça da União Europeia em matérias institucionais muito relevantes relacionadas com órgãos europeus. Recebemos e continuamos a receber semanalmente pedidos de apoio e assistência jurídica provindos um pouco de todo o lado. E isso é, naturalmente, um motivo de grande satisfação, considerando sobretudo o tempo de vida ainda curto da CVA.
De que forma a Cruz Vilaça é uma mais-valia na oferta de serviços desta área?
O ecossistema jurídico nacional – na verdade, uma de várias jurisdições nacionais na União Europeia – tende a subestimar e, por vezes até a ignorar, as regras e os procedimentos europeus. Apenas a título de exemplo (já que são inúmeras as situações em que isso acontece), abundam os direitos constituídos na esfera jurídica das pessoas – singulares ou coletivas – que decorrem do direito da União Europeia e não são invocados (logo, defendidos) em Portugal por desconhecimento puro e simples. Mecanismos como o reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia, visando uma interpretação autêntica das regras (europeias, logo nacionais) aplicáveis a determinados casos, não são com muita frequência acionados ou reconhecidos pelos tribunais, seja por desconhecimento seja por falta de hábito de manuseamento da legislação e da jurisprudência europeia e internacional. Por outro lado, é frequentemente negligenciada a relação com a Comissão Europeia e o recurso a denúncias sobre políticas nacionais eventualmente contrárias a princípios e normas europeias. O mesmo quanto ao Parlamento Europeu, seja junto de deputados e das estruturas administrativas, seja através da Provedoria de Justiça Europeia. São áreas onde nos movemos à vontade dadas as funções que exercemos e a experiência que acumulámos ao longo dos anos, nos planos europeu e internacional. E os dois anos de prática efetiva desenvolvida comprovaram já essa mais-valia – de que muito nos orgulhamos.
Como avalia a multa a que a CML foi alvo, no âmbito do Russiagate, de mais de um milhão de euros?
Foi uma decisão da Comissão Nacional de Proteção de Dados, sobre a qual, naturalmente, não nos pronunciamos. Importa apenas salientar a relevância crescente das matérias relacionadas com a proteção de dados pessoais, a qual obriga todas as pessoas coletivas, sejam empresas sejam entidades públicas. No plano europeu, a proteção da privacidade é uma preocupação permanente da União Europeia, como bem o demonstra o muito conhecido Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD) e os recentes Regulamentos relativos ao mundo digital a que acima aludimos.
Recentemente, uma Investigação da Concorrência concluiu que o Modelo Continente, Pingo Doce, Auchan, E. Leclerc e Unilever praticavam um ‘alinhamento’ de preços, o que resultou numa multa de 132 milhões de euros. Concordam com esta decisão?
A este respeito, não deixamos de salientar a que nos parece ser a ilação a tirar: independentemente da bondade de uma decisão destas, as empresas estão perante autoridades da concorrência – seja a AdC, seja a Comissão Europeia – assertivas, tecnicamente apetrechadas e dotadas de espírito inventivo na deteção e sanção de alegadas infrações. Por isso, as empresas necessitam de estar cada vez mais alerta nos passos que dão, de maneira a salvaguardar a sua posição e a sua boa-fé em matéria de aplicação das regras de concorrência. Em todo o caso, é importante sublinhar que as decisões da AdC são sempre passíveis de recurso junto dos tribunais competentes, como tem sucedido nestes casos, pelo que qualquer juízo sobre o comportamento das empresas – e sobre a decisão em concreto – é prematuro. Por todas essas razões, e dada a complexidade da matéria, desenvolvemos rigorosos programas de “compliance”, isto é, de observância das regras da concorrência (e de outras, como a proteção de dados), que visam reconhecer os riscos e reforçar as condições para os evitar.
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“O que se está a fazer é dar tratamento diferente às Big Tech”, dizem sócios da CVA
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