A dar a volta à Europa de comboio em 40 dias, professor de assuntos europeus pretende mostrar os principais problemas das ligações entre as fronteiras junto da Comissão Europeia.
Jon Worth embarcou na aventura de percorrer a Europa de comboio durante 40 dias – e a ajuda de uma bicicleta desmontável para atravessar alguns países. Britânico de origem mas atualmente a viver em Berlim, o professor de assuntos europeus quer denunciar as falhas na ligação entre as fronteiras dos vários países da União Europeia através do projeto Cross Border Rail.
“Quero evitar andar de avião e cheguei a uma situação em que quando atravessamos fronteiras na Europa de comboio há muitas coisas que não funcionam. Ninguém tem falado sobre isto de forma sistemática”, diz.
Na passagem por Portugal, o inglês considerou como “chocante” não haver um verdadeiro comboio internacional para Espanha e França. Em entrevista ao ECO, Jon Worth culpa os espanhóis pelo bloqueio português e defende que os políticos têm de tomar a iniciativa de resolver as falhas de ligação sobre carris.
Acabou de chegar ao Porto a partir de Vigo, através do comboio Celta. Como foi a experiência num comboio a diesel que circula numa linha eletrificada?
Isto é uma situação louca: a linha está totalmente eletrificada entre Vigo e Porto mas há uma tensão do lado português (25 mil volts) e outra do lado espanhol (3 mil volts). Mas nem a CP nem a Renfe têm comboios que possam circular dos dois lados. São situações como esta que encontramos nas ligações transfronteiriças. A linha foi eletrificada com fundos europeus mas não compraram comboios que pudessem circular entre as duas fronteiras.
Tecnicamente, a Renfe tem comboios que podem circular com os dois sistemas de tensão.
Mas os comboios da Renfe não têm o mesmo sistema de sinalização português. O comboio da CP não consegue circular nas linhas espanholas. De quem é a responsabilidade? Precisamos de vontade política para resolver esta situação: as autoridades regionais ou nacionais dos dois lados da fronteira devem sentar-se e trabalhar sobre como resolver um problema destes.
Portugal parece que aposta mais neste comboio do que Espanha, que parece não querer saber das ligações ferroviárias com Portugal. O comboio circulava com dois terços da ocupação, com diferentes perfis de passageiros. Havia alguns turistas internacionais, além dos portugueses e dos espanhóis. A linha é realmente muito bonita, com vistas incríveis. A minha principal preocupação é o ar: como o comboio é de 1981, a qualidade do ar no interior não era grande coisa. Além disso, não era possível abrir as janelas, o que tornava-se um pouco claustrofóbico. Os motores faziam muito barulho.
É muito urgente substituir este comboio. Para mim, a solução mais simples seria aproveitar o comboio interregional do Porto-Valença e estendê-lo até Vigo, com uma ligação a cada duas ou três horas. Isso melhoraria muito a ligação. Mas, para isso, seriam necessários novos comboios. Vejo aqui potencial mas a capacidade está limitada: a esmagadora maioria da linha é em via única e não há muitos pontos de cruzamento.
É comum na Europa uma situação como a do comboio Celta?
Há uma situação semelhante, nos comboios entre Hamburgo (Alemanha) e Copenhaga, onde põem um comboio diesel a circular porque há diferentes sistemas de tensão. Também acontece nos comboios entre França e Alemanha.
Quais são os maiores problemas nos comboios transfronteiriços?
Em primeiro lugar, é necessária vontade política dos dois lados da fronteira, mesmo antes de se falar com as transportadoras ferroviárias. Se os políticos quiserem os comboios, os problemas começarão a ser resolvidos. Depois, as transportadoras ferroviárias não costumam resolver este tipo de situações porque são ligações que não geram muitas receitas. Por causa disso, é preciso que a UE faça mais alguma coisa: estamos a enfrentar uma crise climática e as pessoas precisam de usar o comboio para se deslocarem.
Em junho, esteve em Lyon, num evento da Comissão Europeia sobre os transportes. Acha que há vontade política de resolver a situação?
É uma questão complicada: oficialmente, há vontade política e mostra que quer resolver o problema. Mas a UE apenas está focada na infraestrutura, como acontece em Portugal, com uma linha elétrica com co-financiamento europeu. Não querem saber da ausência do comboio certo para esta linha.
Outro exemplo: na fronteira entre a Croácia e a Hungria, os horários são inacreditáveis: o comboio chega à estação fronteiriça um minuto depois de o comboio partir do outro lado. A pessoa tem de esperar uma hora e 59 minutos para conseguir a ligação para Budapeste.
Na fronteira entre França e Espanha, ninguém sabe que há um comboio entre San Sebastián e Hendaye. Diria à UE que é necessária uma política ferroviária mais coerente e coesa: não é só na infraestrutura, como nos comboios, nos bilhetes, dos horários e da informação. Mesmo assim, têm existido alguns progressos, como os comboios entre Hungria e a Eslováquia passaram de um para sete por dia.
Sinto tanta pena dos portugueses. Portugal está completamente bloqueado por causa dos espanhóis. A Renfe odeia comboios noturnos.
Como deve ser definida uma verdadeira linha transfronteiriça?
Antes de mais, temos de perceber que tipo de passageiros estão a usar este comboio, se são regulares (viagens curtas) ou se são ocasionais (viagens longas). Na região de Genebra, por exemplo, há uma rede regional de comboios transfronteiriços, com seis ligações por hora até França. É um sistema perfeito para o seu propósito: passageiros regulares.
Se olharmos para uma ligação entre Viena e Budapeste, é uma deslocação de longa distância, de três horas, e tem partidas a cada duas horas. Isso também é bom. Sociologicamente, um comboio pode mudar os hábitos dos passageiros: há uma linha entre Copenhaga e Malmö (na Suécia), que faz com que as pessoas vivam em Malmö e trabalhem em Copenhaga; há mesmo gente na Dinamarca a ir ao dentista na Suécia.
O comboio Celta deve ser considerado um comboio internacional?
É um comboio internacional regional, com paragens a menos do que seria necessário para as vilas a meio do percurso, que gostariam de ficar mais próximas de Vigo. Deveria ser um comboio a cada duas horas com 10 paragens e uma ligação bi-diária com apenas quatro paragens.
Até à chegada da pandemia, associávamos os comboios internacionais sobretudo às ligações noturnas, com o Lusitânia (até Madrid) e o Sud Expresso (até Hendaia).
Sinto tanto pena dos portugueses. Portugal está completamente bloqueado por causa dos espanhóis. A Renfe odeia comboios noturnos: fiz um comboio de 11 horas, durante o dia, entre Saragoça e Vigo. Foram mais de 1.000 quilómetros num percurso montanhoso. Seria o percurso noturno perfeito.
Os comboios noturnos entre Lisboa e Paris também eram ótimos. Mas a CP não consegue retomar os comboios noturnos agora, sozinha. Precisa de uma locomotiva elétrica para funcionar do lado espanhol e do equipamento para o sistema de sinalização. No máximo, poderia alugar uma locomotiva de mercadorias. Mas é muito complicado. O mercado ferroviário está liberalizado mas as barreiras são muito grandes.
Há barreiras a mais para os comboios noturnos?
Sim, mas talvez também sejam justificáveis. Na Península Ibérica temos bitola diferente da europeia e há diferentes sistemas de sinalização. Encontrar uma solução tecnológica é bastante difícil. A UE diz que o mercado resolve. Mas o mercado não resolve nada, nem mesmo na Europa central, onde há menos dificuldades técnicas.
Nos comboios noturnos, a liberalização do mercado não está a dar resultado: não há carruagens modernizadas para estes comboios e as antigas foram encostadas. Se a CP quiser retomar os comboios noturnos, então terá de comprá-las e encontrar financiamento para isso. Só que há questões prioritárias, como a renovação das carruagens do Intercidades.
O problema dos comboios noturnos fica sempre para trás e ninguém o resolve. A solução seria um consórcio que juntasse pequenas transportadoras ferroviárias europeias, que desenhassem uma carruagem-padrão para os comboios noturnos e que funcionasse com diferentes bitolas. A CP poderia juntar-se aos belgas, dinamarqueses, húngaros e checos. Os suíços e os austríacos têm as próprias carruagens mas são demasiado sofisticadas e não têm um preço acessível para os passageiros.
Mas o preço não pode afastar as pessoas dos comboios em vez do avião?
Pode: é mais barato um voo da Ryanair e há países onde os autocarros não pagam portagens. Por isso é que as companhias ferroviárias têm de melhorar muito o serviço e a qualidade do serviço. Espanha tem uma ótima rede ferroviária mas as frequências são péssimas: a manutenção das linhas é muito cara e há lá poucos comboios.
A UE diz que o mercado resolve. Mas o mercado não resolve nada, nem mesmo na Europa central, onde há menos dificuldades técnicas. Nos comboios noturnos, a liberalização do mercado não está a dar resultado: não há carruagens modernizadas para estes comboios e as antigas foram encostadas.
Espanha abriu o mercado à concorrência.
Só que as empresas privadas apenas fazem comboios entre as grandes cidades. Temos de perguntar-nos o que queremos na nossa ferrovia: deve ser uma prioridade servir as pequenas e médias cidades também. Temos de pensar nas populações destas cidades. Por acaso, Portugal não tem um problema assim tão grande: o preço é razoável e o serviço é regular, apesar de velho e lento. É um pouco como na República Checa, em que o comboio é lento, a infraestrutura é velha mas funciona para muitas pessoas. Essa mentalidade morreu em Espanha e França.
Espanha e França puseram em causa o papel do comboio na coesão social?
Sim. Não nos podemos esquecer de que o comboio continua a ser melhor do que o autocarro: é mais silencioso, mais confortável, podemos sentar-nos e trabalhar, transportar uma bicicleta e o assento é reclinável. Nos Pirinéus tive de usar o autocarro para Canfranc e a experiência foi má porque o motorista não conduzia como deve ser pelas montanhas. Isto não pode ser. Por favor, quero o comboio.
Neste projeto questiono qual o máximo potencial do comboio. Portugal está muito próximo do potencial máximo: com um investimento muito baixo e comboios velhos faz o melhor que pode, como a República Checa. A Alemanha também é um bom exemplo, investindo muito dinheiro. Espanha é o exemplo contrário. O que mais detesto é ver investimento e os políticos não tirarem partido dele.
Acha que os quatro pacotes ferroviários da UE valeram a pena?
Em parte. Na República Checa, há três empresas ferroviárias, duas das quais privadas e que obrigaram a companhia estatal a melhorar o serviço. Os quatro pacotes também funcionaram bem na Áustria e em Itália. Na Suécia, tornou-se muito complicado planear uma viagem de comboio. Há bons e maus operadores ferroviários privados e do Estado. Mas se quisermos verdadeiramente liberalizar o mercado precisamos de boa informação, de saber se há obras na linha, se os comboios vão partir, se há autocarros de substituição.
Faria sentido uma plataforma ferroviária europeia?
Isso é a minha esperança mas a UE é muito lenta a lidar com dados. São necessários dados sobre horários, tarifários e informação em tempo real. Na Alemanha, o portal da Deutsche Bahn tem os horários de boa parte dos comboios em Portugal mas não tem quase nada de Espanha ou de Estónia. Seria muito radical e mandaria as empresas colocar todos os horários no sistema, o que não acontece atualmente e é muito frustrante. Falta um SkyScanner para os comboios por falta de dados e não por falta de vontade das empresas. Uma plataforma desse género ajudaria a baixar os preços. Os bilhetes de comboio também variam muito conforme a empresa que uso para pesquisar.
O que deve a UE fazer com os voos abaixo dos 500 e dos 1.000 quilómetros?
Não sou a favor de banir os voos de curta duração, o que parece um pouco estranho. A melhor maneira de reduzir as emissões de dióxido de carbono é combinar os bilhetes de comboio com os do avião, como faz a Lufthansa. Se garantirmos um muito bom serviço ferroviário, as pessoas não vão voar. Na Alemanha, a viagem de comboio entre Berlim e Frankfurt dura quatro horas, é bastante sólido e parte a todas a horas.
De Frankfurt a Paris são três horas e 45 minutos: o primeiro comboio parte demasiado tarde e o último parte demasiado cedo, antes da hora do jantar. As pessoas acabam por voar entre Frankfurt e Paris porque o comboio não é bom o suficiente. Não posso defender a proibição deste voo porque o comboio tem de ser melhor do que o avião.
Entre Lisboa e Madrid, então, é um escândalo! É o nono voo de curta distância internacional mais utilizado. De comboio, são necessários quatro comboios e demora todo o dia. De Oslo para Estocolmo o comboio é muito pior do que o avião e a distância é a mesma do que entre Gotemburgo e Estocolmo, uma viagem doméstica. Parece que as viagens internacionais são esquecidas.
Falta um SkyScanner para os comboios por falta de dados e não por falta de vontade das empresas. Uma plataforma desse género ajudaria a baixar os preços.
O que as transportadoras ferroviárias podem aprender com as companhias aéreas?
Há um exemplo interessante, embora não aprecie propriamente os comboios: a FlixTrain, na Alemanha. Utilizam locomotivas antigas, que foram reaproveitadas. São mais rápidos do que um autocarro e mais baratos do que o comboio da empresa do Estado, a Deutsche Bahn. A França está a encostar comboios TGV com 20 anos simplesmente porque não querem partilhar a tecnologia com os concorrentes. É protecionismo e é errado. Mesmo que não andem a 300 km/h, podem ser enviados para outros países.
Que balanço faz da viagem até agora?
Há quatro tipo de fronteiras ferroviárias bem percetíveis ao longo deste projeto: as linhas abandonadas; os locais com linhas mas sem comboios, como Vilar Formoso e também na fronteira de Itália com a Eslovénia; os horários de comboios que não estão combinados entre as fronteiras; a falta de informação ou problemas com a bilhética em comboios que realmente existem. O que vejo no terreno não é percecionado nos gabinetes da Comissão Europeia ou do Parlamento Europeu. Quero mostrar quais são as oportunidades dos comboios transfronteiriços. No final do projeto, vou fazer um top-5 ou top-10 dos problemas a resolver.
Todos os dias tem enviado postais à comissária europeia dos Transportes, Adina Vălean. O que tem escrito?
Escrevo as histórias de cada dia. Para a viagem Vigo-Porto vou destacar que tive uma vista do mar mas que não foi o melhor comboio, que devia ser elétrico – e não a diesel – e perguntar à comissária o que a UE pode fazer para financiar a compra de comboios que possam circular nesta linha.
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Jon Worth: “Portugal faz muito com pouco investimento nos comboios”
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