Portugal tem vindo a ser considerado um paraíso fiscal para quem investe neste tipo de ativos devido à ausência de normas de tributação. Mas o caminho pode estar a mudar com as regras do OE2023.
Nos últimos tempos a sigla NFT (non-fungible token) tem andado nas “bocas” do mundo. Só em 2021, a venda de NFTs, em português token não fungível, ascendeu a 10 mil milhões de euros, segundo o Art Market Report da Art Basel e do banco UBS, face aos 4,1 milhões em 2020.
Os NFTs são certificados digitais emitidos para registar a autenticidade ou propriedade de um ficheiro digital, utilizando a tecnologia blockchain. Ou seja, são transacionáveis devido às suas características únicas, por ser impossível de copiar ou piratear.
Segundo a Lei n.º 83/2017, de 18 de agosto (Lei do BCFT), estes ativos não fungíveis são “uma representação digital de valor que não esteja necessariamente ligada a uma moeda legalmente estabelecida e que não possua o estatuto jurídico de moeda fiduciária, mas que é aceite por pessoas singulares ou coletivas como meio de troca ou de investimento e que pode ser transferida, armazenada e comercializada por via eletrónica”.
À Advocatus, o associado da Rogério Alves & Associados, Pedro Farrim, referiu que estes tipos de ativos pertencem ao “domínio da esfera e autonomia privada dos respetivos titulares/detentores”, podendo configurar adequado objeto de relações jurídicas e ser livremente introduzidos no tráfego jurídico, ou seja, podendo celebrar-se negócios sobre os mesmos.
O advogado explicou a principal diferença entre os ativos virtuais “clássicos”, como a Bitcoin, e os NFTs. “Se uma unidade de Bitcoin será sempre idêntica a outra unidade de Bitcoin, o mesmo não acontece com NFTs que, por definição e de forma autoexplicativa, são, por comparação às outras unidades de NFTs da mesma “família”, únicos na sua individualidade e singularidade, não se substituindo entre si”, referiu.
Portugal tem vindo a ser considerado um paraíso fiscal para quem investe neste tipo de ativos. A principal razão prende-se com a ausência de normas de tributação, que torna o país atrativo para os investidores.
“A fiscalidade dos criptoativos vem surgindo na ordem do dia embebida na dicotomia característica: por um lado, a crítica desprestigiante inerente à consideração de Portugal como paraíso fiscal dos criptoativos, por outro, a frustração de expectativas decorrentes do regime competitivo de não tributação que vinha sendo fomentado”, sublinhou Bruno Magalhães, sócio da Valério, Figueiredo & Associados (VFA).
Alexandra Courela e Diogo Pereira Duarte, sócios da Abreu Advogados, explicaram que em matéria fiscal o que se verifica em Portugal é uma ausência de previsão expressa na lei dos criptoativos e que essa omissão aliada a uma informação vinculativa publicada pela Autoridade Tributária (AT) sobre a tributação da compra e venda de criptomoedas leva a que Portugal seja “publicitado” como um paraíso fiscal.
A sua importância [smart contract] reside sobretudo na automatização da execução do contrato, que reduz as hipóteses de incumprimento; e no caráter determinístico e auditável do protocolo que esteja programado, que transforma a blockchain numa espécie de agente fiduciário na execução do contrato.
Ainda assim, alertam que uma ausência de regulamentação fiscal não significa uma ausência de tributação. “Se estivermos a falar de investimentos em NFTs realizados por sociedades, haverá lugar a tributação em sede de IRC. Já na esfera das pessoas singulares, a resposta poderá não ser tão direta dado que, seguindo o racional avançado pela AT na informação vinculativa emitida quanto à compra e venda de criptomoedas, os eventuais ganhos não são tributados como mais-valias, nem como rendimentos de capitais, mas podem ser tributados como rendimentos empresariais e profissionais se obtidos no contexto do exercício de uma atividade profissional”, notaram.
Para o sócio da VFA, não se deveria considerar Portugal um paraíso fiscal, uma vez que em sede de IRC, todos os rendimentos devem ser “computados no lucro tributável da entidade e estar sujeitos a imposto, incluindo rendimentos decorrentes de investimentos em tokens digitais”.
Países como Espanha e França já possuem legislação específica e em Portugal o caminho pode estar a começar a delinear-se. A proposta de Orçamento de Estado para 2023 propõe um regime fiscal aplicável aos criptoativos, pelo que, a partir de 1 de janeiro de 2023, a situação poderá ser diferente em matéria de tributação.
Por forma modernizar tecnologicamente o comércio jurídico de bens reais, o maior desafio é precisamente o de criar o quadro legislativo suscetível de implementar o reconhecimento do registo da propriedade desses ativos, conforme subjacente à transmissão digital dos tokens que os representam.
Pedro Farrim explicou que segundo a proposta de Lei do Orçamento de Estado para 2023, quanto à tributação de rendimentos obtidos com recurso a ativos virtuais, deverá considerar-se criptoativo “toda a representação digital de valor ou direitos que possa ser transferida ou armazenada eletronicamente recorrendo à tecnologia de registo distribuído ou outro semelhante”.
“Ora, dentro desta categoria cabem todos os tipos de ativos virtuais, desde os clássicos ativos de investimento que não correspondem a valores mobiliários (chamemos-lhes ativos de investimento porque, tal como a Bitcoin ou o Ethereum, apresentam uma volatilidade significativa e respeitam métodos controlados e tendencialmente regressivos de produção [mineração] de novas unidades); a ativos de pagamento (chamemos-lhes ativos de pagamento porque, tal como a maioria das stablecoins, apresentam uma volatilidade reduzida e, em função disso, permitem a realização “despreocupada” de pagamentos, dado que estes ativos procuram preservar determinado valor e poder de compra por referência a uma outra realidade financeira, na maioria dos casos, replicando o valor de uma moeda com curso legal como o USD ou o EUR); e a NFTs”, sublinhou.
Ao nível da formulação geral do regime no que diz respeito às normas de incidência para tributação do rendimento obtido com recurso a criptoativos, o advogado considera que o governo “está de parabéns”, “dado que se antevia a este respeito, na sequência da consulta e recomendação legislativa da AT ao Governo, um cenário tributário diabólico, totalmente arbitrário, inverosímil, promotor da criação de cenários artificiais e de estruturas de ocultação destes ativos, afastando do nosso país investimento nesta área que nos é bastante útil, que diretamente cria “riqueza” no bolso dos residentes que detêm estes ativos, e que indiretamente beneficia todos aqueles expostos à economia envolvente e circundante, quer mediante um aumento da despesa interna em produtos e serviços, quer mediante o aumento de ofertas de trabalho qualificado para desenvolvimento de projetos relacionados com estes ativos”.
Face à proposta de OE2023, Bruno Magalhães defende então que um NFT inclui-se na definição de criptoativo a incluir no Código do IRS, e as mais-valias decorrentes da sua alienação onerosa estará sujeita a tributação.
Apesar da ausência de normas de tributação, existe um “mínimo” de regulação sobre estes ativos em Portugal, como a Lei do BCFT. Pedro Farrim explicou que o MiCA, um regulamento europeu relativo aos “mercados de criptoativos” que está previsto entrar em vigor em 2024, irá criar um regime comunitário consolidado e permitir um desenvolvimento mais sólido de toda a indústria segundo uma estrutura juridicamente mais segura e previsível. Ainda assim, os NFTs “em virtude das suas características intrínsecas serem contrárias ao caráter de fungibilidade, permanecerão de fora do escopo de atuação deste instrumento normativo”.
Os sócios da Abreu consideram que a qualificação deste tipo de instrumento é essencial para efeitos de enquadramento regulatório e admitem que tem sido objeto de análise pelos reguladores financeiros, quer a nível europeu como a nível nacional.
“Denotamos, em particular, a posição assumida pela FATF (Financial Action Task Force) em matéria de branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo, na revisão das suas orientações, no sentido de que os NFTs não deveriam ser considerados como ativos virtuais para este efeito e que, como tal, não estariam cobertas pelas referidas orientações”, sublinharam Alexandra Courela e Diogo Pereira Duarte.
Os advogados explicaram ainda que a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários tem-se debruçado sobre a qualificação dos criptoativos como valores mobiliários e o mesmo foi feito pelo Banco de Portugal a propósito da qualificação das criptomoedas como moeda eletrónica, referindo-se, sem prejuízo, aos criptoativos em geral e não aos NFTs em particular.
Se estivermos a falar de investimentos em NFTs realizados por sociedades, haverá lugar a tributação em sede de IRC
À Advocatus, os advogados apontaram quais deveriam ser os principais aspetos a serem legislados nesta matéria. Direito ao reembolso, tratamento fiscal e matérias de propriedade intelectual e proteção de dados foram alguns dos apontados.
“Por forma modernizar tecnologicamente o comércio jurídico de bens reais, parece-nos que o maior desafio é precisamente o de criar o quadro legislativo suscetível de implementar o reconhecimento do registo da propriedade desses ativos, conforme subjacente à transmissão digital dos tokens que os representam”, defendeu Bruno Magalhães.
Supervisão pode passar pela CMVM e BdP
Várias são as entidades apontadas com potencial competência de supervisão sobre a emissão deste tipo de ativos. Desde a CMVM até ao Banco de Portugal (BdP), os advogados admitem que os poderes são limitados.
Para Pedro Farrim, em abstrato, existem duas entidades com potencial competência de supervisão. “Caso os mesmos possam ser subsumidos ao conceito de valor mobiliário – circunstância pouco provável e que dependerá sempre da qualificação do ativo como tal em função das características que o mesmo apresenta – à CMVM deverá ser reconhecida a devida competência de supervisão”, enunciou. O outro organismo que o associado da Rogério Alves & Associados vê potencial competência é o BdP.
O comércio de obras de arte em geral, em virtude da dificuldade de fixação do preço da transação, ou do caráter mais ou menos subjetivo que determina a sua variação entre valores substancialmente elevados, é um ambiente propício ao branqueamento e à “transformação” inerente de elevadas somas de capital.
Caso os NFTs sejam considerados ativos virtuais para efeitos da Lei do BCFT, os sócios da Abreu Advogados admitem que fiquem sob a supervisão do BdP. Já se não forem considerados ativos virtuais, admitem que a entidade que presta serviços sobre os mesmos seja considerada uma entidade obrigada para efeitos do mesmo regime legal, sujeita à supervisão da Autoridade de Supervisão de Atividades Económicas, nomeadamente quando os NFTs digam respeito a obras de arte, antiguidades, metais preciosos, ou outros.
“Se um NFT for qualificado como moeda eletrónica, a sua emissão e a prestação de serviços sobre o mesmo estarão sujeitos ao Decreto-Lei n.º 91/2018, de 12 de novembro (Lei PS/EM), implicando que seja necessária uma licença como prestador de serviços de pagamento/emissor de moeda eletrónica, emitida pelo BdP, salvo a aplicação de alguma das isenções previstas no regime”, acrescentaram.
Alexandra Courela e Diogo Pereira Duarte referiram ainda que a posição atual do BdP é a de que os criptoativos podem qualificar-se como um valor monetário armazenado eletronicamente e podem ser aceites por outras entidades que não o emissor, porém “não representam em regra um crédito sobre o emitente que é emitido após o recebimento de fundos para realizar operações de pagamento, uma vez que esses criptoativos não são resgatáveis pelo titular, ou seja, não conferem o direito de que, a pedido do portador, o emitente venha a pagar, a qualquer momento, pelo seu valor nominal, o valor monetário do criptoativos detido”.
À Advocatus, Bruno Magalhães contou que existe uma investigação em curso, por parte da U. S. Securities and Exchange Commission, nos EUA, com vista a averiguar se os denominados NFT´s fraccionados, como imagens e outros produtos virtuais repartidos em milhares de pedaços por tecnologia blockchain de forma a responder à oferta, assumem natureza similar ou equivalente a valores mobiliários, sendo que, em caso afirmativo, deverão considerar-se sob a alçada da supervisora e assim sujeitos ao respetivo regime legal.
Sem uma supervisão estabelecida, vários podem ser os riscos jurídicos associados. Alexandra Courela e Diogo Pereira Duarte apontam a falta de regulamentação específica e adaptada à realidade. Os sócios da Abreu enunciaram ainda que a incerteza sobre o quadro jurídico aplicável, tanto na lei como nos tribunais, tem suscitado questões quanto aos termos de detenção e até de utilização dos ativos digitais.
Para Pedro Farrim, os riscos juridicamente mais relevantes prender-se-ão com litígios de natureza contratual, de defesa de direitos de imagem, de autor, ou de propriedade intelectual, e com a instauração de processos de natureza tributária, contraordenacional ou criminal.
Já o sócio da VFA, Bruno Magalhães, apontou o branqueamento de capitais, a fraude, e o negativo impacto ambiental associado ao elevado consumo energético da blockchain como alguns dos principais problemas associados à sua utilização.
“O comércio de obras de arte em geral, em virtude da dificuldade de fixação do preço da transação, ou do caráter mais ou menos subjetivo que determina a sua variação entre valores substancialmente elevados, é um ambiente propício ao branqueamento e à “transformação” inerente de elevadas somas de capital”, revelou o advogado.
Se as entidades competentes estiverem dotadas de conhecimento e ferramentas de análise adequadas tal risco de branqueamento será altamente mitigado pela facilidade de “desvendar” o puzzle do esquema ilícito, possível através das características e funcionalidades da respetiva blockchain.
Para Pedro Farrim, apesar de os NFTs poderem representar um risco elevado de branqueamento de capitais, dado que os respetivos preços podem ser inflacionados e transacionados de forma artificial por poucos sujeitos agindo em cooperação, o risco pode ser mitigado.
“Se as entidades competentes estiverem dotadas de conhecimento e ferramentas de análise adequadas, tais como programas informáticos de deteção de inflacionamento artificial dos preços de unidades de ativos virtuais, tal risco de branqueamento será altamente mitigado pela facilidade de “desvendar” o puzzle do esquema ilícito, possível através das características e funcionalidades da respetiva blockchain”, assegurou.
Segundo o associado da Rogério Alves & Associados, uma vez que as transferências destes ativos entre endereços (contas) encontram-se registadas na respetiva blockchain, “tal circunstância representa uma oportunidade para a descoberta de esquemas e de atos potencialmente criminosos, bastando para tal dotar as respetivas entidades de investigação criminal de competências técnicas para esse efeito”.
Os smart contracts e a sua utilidade
Num sentido jurídico, os smart contracts referem-se às programações de ações, numa blockchain, que exprimem acordos juridicamente relevantes. Ou seja, são contratos que definem e aplicam automaticamente as condições numa transação.
Pedro Farrim explicou à Advocatus, que este tipo de função consubstancia, mediante a configuração de um protocolo informático, a possibilidade de determinar a realização de uma consequência que materialmente pode ser acionada pelo sistema informático. “A título exemplificativo, poderá programar-se um smart contract para enviar o ativo X para a conta Y, na próxima vez que o USD e o EUR se cruzarem em paridade monetária [1:1=1]”, exemplificou.
“Sendo uma função conceptualizada para uma multiplicidade de usos, a sua importância residirá, certamente, nesta oportunidade múltipla de criação que apenas se encontra limitada pelos constrangimentos dos respetivos sistemas e pela criatividade dos programadores. O seu maior impacto, muito possivelmente, apenas será efetivamente conhecido num momento futuro, quando tal funcionalidade for utilizada de forma irrestrita nos mais variados campos tecnológicos que circundam, cada vez mais, a nossa existência”, acrescentou o advogado.
Caso os mesmos possam ser subsumidos ao conceito de valor mobiliário, à CMVM deverá ser reconhecida a devida competência de supervisão.
Alexandra Courela e Diogo Pereira Duarte explicaram também que os smart contracts têm duas características singulares: o “acordo formado não pode ser demonstrado pela exteriorização do mesmo em linguagem natural (isto é, entendível por serem humanos), como sucede quando o acordo é exteriorizado oralmente ou vertido num documento (ou seja, o seu “clausulado” consta apenas de linguagem informática, código, para ser entendida por autómatos); o acordo será executado de forma determinística, tal como foi programado, independentemente do que possa vir a ocorrer”.
Apesar do debate em sobre o reconhecimento legal dos smart contracts, os sócios da Abreu Advogados defendem que estes reúnem todos os elementos que são requeridos para poder ser qualificado como um contrato aos “olhos do sistema jurídico”.
“A sua importância reside sobretudo na automatização da execução do contrato, que reduz as hipóteses de incumprimento; e no caráter determinístico e auditável do protocolo que esteja programado, que transforma a blockchain numa espécie de agente fiduciário na execução do contrato. Esses aspetos reduzem o risco de contraparte e podem ser um importante fator de inclusão, por exemplo, nas atividades financeiras”, refiram
Para os sócios da Abreu Advogados, estes smart contracts também podem ter prejudicar a eficácia de importantes meios de defesa que tradicionalmente paralisam exigências de cumprimento injustificadas, como a exceção de não cumprimento, ou a resolução por incumprimento ou alteração de circunstâncias.
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