36 países, 2,2 mil milhões e quatro crimes. Isto é o que se sabe da maior fraude de IVA
Com origem em Portugal, está em investigação um dos maiores esquemas de fuga ao Fisco através de empresas fictícias. A "Admiral" envolve danos de 2,2 mil milhões. Veja o raio-x desta investigação.
O país e mundo pararam e os alarmes soaram quando davam conta da “megaoperação europeia” que resultou de uma investigação iniciada em Portugal. Apelidada como “Admiral”, a operação em curso investiga um dos maiores esquemas de sempre de fraude na Europa, envolvendo diversos países, e conta com a colaboração de várias autoridades europeias. 36 países, 2,2 mil milhões de prejuízos e quatro tipos de crimes em causa. Isto é o que se sabe, para já, da mega-fraude de IVA.
A fraude carrossel é a forma mais comum de fraude ao IVA e estima-se que cause aos Estados Membros da União Europeia (UE) uma perda anual de receitas de IVA de cerca de 50 mil milhões de euros, segundo a investigação Grand Theft Europe, um projeto europeu. Esta fraude ocorre nas operações intracomunitárias (transmissões de bens e prestações de serviços entre empresas de Estados Membros diferentes da UE), como por exemplo a venda de equipamentos expedidos de um país da UE com destino a outro país da UE.
Com origem em Portugal, neste caso concreto, em causa está um esquema de fuga aos impostos através da criação de empresas fictícias por parte de uma “complexa” organização europeia. A Procuradoria Europeia confirmou que é “um complexo esquema de fraude ao IVA baseado na venda de bens eletrónicos”. Ao todo, os danos estimados rondam os 2,2 mil milhões de euros. No caso de Portugal, os danos estão avaliados totalizam os 50 milhões de euros.
As suspeitas em causa apontam para crimes de associação criminosa, fraude fiscal, branqueamento de capitais e falsificação de documento. Mas vamos por partes e fazer um raio-x ao que se sabe, até ao momento, desta operação.
O ponto de partida do esquema fiscal
Tudo começou com um inquérito da Procuradoria Europeia que, face às suspeitas da Autoridade Tributária portuguesa, decidiu averiguar se havia ou não motivos para avançar com uma investigação oficial. Para tal, contou com a ajuda de autoridades de vários países, entre eles, as de Portugal.
Segundo explicou recentemente a Procuradoria, em abril de 2021, a Autoridade Tributária portuguesa em Coimbra já investigava uma empresa de venda de telemóveis, tablets, auscultadores e outros aparelhos eletrónicos, por suspeita de fraude ao IVA. Posteriormente, a AT comunicou ao organismo europeu.
Esta empresa tinha tudo em “ordem” do ponto de vista nacional, como a faturação e declarações fiscais, mas investigando mais a fundo, e com o auxílio internacional, chegaram à conclusão que existiam “ligações” entre esta empresa de Portugal e cerca de “9.000 outras entidades legais, e mais de 600 pessoas singulares localizadas em países diferentes”.
“Desde empresas que agem como fornecedores aparentemente limpos de dispositivos eletrónicos e que reclamam reembolsos de IVA junto das autoridades fiscais nacionais enquanto vendem estes dispositivos online a clientes individuais – e subsequentemente canalizam o produto dessas vendas para o estrangeiro, antes de desaparecerem – a empresas que branqueiam o produto dessa atividade criminosa”, lê-se no comunicado.
Ou seja, os suspeitos formaram uma “complexa cadeia de empresas em sucessão”, principalmente de venda de equipamentos informáticos em plataformas online, que na verdade “operavam executando os atos necessários para se locupletarem com as quantias de IVA recebidas da venda desses produtos a clientes finais, num esquema típico da Missing Trader Intra-Community (MTIC) Fraud, que lesa os cofres da União Europeia“.
Mas o que é, em concreto, uma “fraude carrossel” em questões de IVA? Ao ECO/Advocatus, a advogada Joana Cunha d’Almeida da Antas da Cunha Ecija, explicou que este tipo de crime ocorre quando uma empresa estabelecida num determinado Estado-Membro (EM), o “A”, faz uma transmissão de bens a uma empresa estabelecida noutro EM, o “B”, a qual adquire tais bens sem pagar IVA em virtude da isenção estabelecida nas transmissões intracomunitárias.
“Seguidamente, esta empresa vai transmitir estes mesmos bens a uma outra empresa no mesmo EM, o “C”, liquidando IVA nessa transmissão. Contudo, a empresa B não entrega o valor do IVA liquidado nessa operação ao Estado e extingue a sua atividade. A empresa C paga o IVA liquidado na operação com a empresa B e solicita um pedido de reembolso à administração fiscal por referência a esse mesmo IVA. A fraude verifica-se neste prejuízo suportado pelo Estado, ou seja, o montante do IVA reembolsado à empresa C e que nunca tinha sido entregue pela empresa B, entretanto extinta e desaparecida”, acrescentou.
Dado que este processo repete-se várias vezes, foi-lhe atribuído o nome de “fraude carrossel”. “O processo fraudulento repete-se quando a empresa C declara posteriormente uma nova transmissão intracomunitária, por exemplo, a empresa A, mantendo o esquema criminoso”, referiu a advogada.
“O modelo básico desta fraude envolve atividades organizadas de criação de estruturas de empresas em diferentes países da UE, com o objetivo de aproveitar abusivamente das regras do IVA”, explica a advogada Conceição Gamito, senior counsel da Vieira de Almeida. “Nos casos mais simples, a empresa responsável pela cobrança e entrega do IVA no país de destino dos equipamentos cobra este imposto aos seus clientes, mas, aproveitando-se abusivamente das regras/da mecânica de funcionamento do IVA, não entrega o IVA cobrado ao Estado, enriquecendo à custa das receitas fiscais”, explica.
“Nos casos mais complexos, os equipamentos vendidos a partir do país de expedição são adquiridos e vendidos no país de destino através de cadeia de empresas, antes de serem novamente vendidos com destino ao país de expedição. A primeira empresa da cadeia nacional (no país de destino) cobra o IVA aos seus clientes, mas não o entrega à autoridade fiscal. Por seu turno, as empresas vendedoras pedem e recebem o reembolso do IVA que nunca foi pago. Para dificultar a deteção da fraude pelas autoridades, as ligações entre as empresas participantes nestes esquemas são frequentemente disfarçadas, mediante a interposição de empresas tampão, que tanto podem ser empresas envolvidas no esquema de fraude, quanto empresas que participam normalmente no circuito económico sem terem consciência de que está a ser cometida uma fraude. Este esquema de fraude carrossel pode operar durante alguns meses, após os quais em regra as empresas responsáveis pelo esquema fraudulento desaparecem”, concluiu.
Conceição Gamito sublinha ainda que “após a fase de investigação, os próximos passos cabem às autoridades (tributárias, judiciárias) nacionais em termos que são idênticos aos aplicáveis a investigações levadas a cabo exclusivamente pelas autoridades nacionais. Ou seja, será às autoridades nacionais de cada um dos países envolvidos que competirá encetar os procedimentos necessários à cobrança, coerciva se necessária, do IVA em falta, acrescido de juros, à aplicação de medidas de coação, apreciação das condutas, aplicação de penas ou outras medidas”, acrescenta.
O “rebentar” da bolha
No dia 29 de novembro, quando a operação “rebentou” nos media, foram feitas cerca de 100 buscas, domiciliárias e não domiciliárias, em Portugal. Os concelhos envolvidos foram os de Braga, Coimbra, Corroios, Figueira da Foz, Funchal, Guimarães, Lisboa, Matosinhos, Porto, Póvoa de Varzim, Sintra, Vila do Conde, Vila Franca de Xira e Vila Nova de Gaia.
Esta ação foi levada a cabo pela PJ do Porto e foi presidida pelo juiz Pedro Miguel Vieira do Tribunal de Instrução Criminal (TIC) do Porto. Estiveram envolvidos mais de 250 elementos da PJ e 35 da Administração Tributária, tendo ainda participado um magistrado judicial, o Procurador Europeu e dois Procuradores Europeus Delegados Portugueses.
As buscas culminaram na detenção de 14 pessoas pela alegada prática de crimes de associação criminosa, fraude fiscal e branqueamento de capitais. Ao todo, foram apreendidos mais de 2 milhões de euros entre carros, bens de luxo, materiais informáticos, documentos, dinheiro, Foram ainda feitos três arrestos judiciais: a cerca de 50 viaturas, 47 propriedades e cerca de 600 contas bancárias nacionais.
Em Portugal, o valor da fraude está estimada em ser superior a 300 milhões de euros.
Os 14 detidos em Portugal foram presentes ao TIC do Porto para primeiro interrogatório. Oito deles foram libertados a 3 de dezembro, após o Ministério Público não ter promovido a adoção de medidas de coação privativas de liberdade, e seis arguidos continuaram detidos.
No dia 6 de dezembro foram conhecidas as medidas de coação. Os seis arguidos vão continuar em prisão preventiva, sendo que um deles poderá ficar em casa quando estiverem criadas as condições de vigilância determinadas pelo juiz. Já os restantes oito arguidos ficam em liberdade, mas não podem comunicar entre eles, constituir empresas ou abrir contas e tiveram que entregar os passaportes, não se podendo ausentar para o estrangeiro sem autorização do tribunal.
36 países envolvidos
Mas esta operação não se cinge só a Portugal. Também no dia 29 de novembro foram feitas buscas em vários países europeus: Alemanha, Áustria, Bélgica, Chipre, Eslováquia, Espanha, França, Grécia, Hungria, Itália, Lituânia, Luxemburgo, Países Baixos, República Checa e Roménia.
Segundo a Procuradoria Europeia, as atividades criminosas estão espalhadas pelos 22 Estados-Membros da Procuradoria Europeia, mas não só. À lista soma-se ainda países como Hungria, Irlanda, Suécia, Polónia, Albânia, China, Ilhas Maurícias, Sérvia, Singapura, Suíça, Turquia, Emirados Árabes Unidos, Reino Unido e Estados Unidos (mapa abaixo).
Que crimes estão em cima da mesa?
Entre os crimes suspeitos está o de branqueamento de capitais. Este crime é um processo que tem por objetivo a ocultação de bens, capitais ou produtos com a finalidade de lhes dar uma aparência final de legitimidade, procurando, assim, dissimular a origem criminosa de capitais, bens ou produtos. O agente que incorra neste crime é punido com pena de prisão de dois a doze anos, segundo o artigo 368.º – A do Código Penal (CP).
A lei refere ainda que quando tiver lugar a reparação integral do dano causado ao ofendido, sem dano ilegítimo a um terceiro, a pena é especialmente atenuada.
Enquanto crime público, a associação criminosa (artigo 299.º do CP) pune o agente com pena de prisão de um a cinco anos. Destina-se a quem “promova ou funde o grupo, organização ou associação cuja finalidade ou atividade seja dirigida à prática de um ou mais crimes”. Quem fizer parte ou apoiar tais grupos também incorre na pena.
Segundo o número 3 do artigo 299.º do CP, “quem chefiar ou dirigir os grupos, organizações ou associações (…) é punido com uma pena de prisão de dois a oito anos”.
A falsificação ou contrafação de documentos (artigo 256.º do CP) é um crime público pune o agente com pena de prisão até três anos ou com pena de multa. Neste crime está em causa a intenção do agente de “causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado”, de “obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo”, ou de “preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime” através de várias formas, entre elas a de “fabricar ou elaborar documento falso” ou “abusar da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento”.
Caso a falsificação recaia sobre documento autêntico ou com igual força, a testamento cerrado, a vale de correio, a letra de câmbio, a cheque ou a outra documento comercial transmissível por endosso, ou a qualquer outro título de crédito, a pena de prisão vai de seis meses a cinco anos e a pena de multa de 60 a 600 dias. Mas caso seja funcionário e o crime decorra no exercício das suas funções, o agente é punido com pena de prisão de um a cinco anos.
Por fim, em “cima da mesa”, estão ainda suspeitas de fraude fiscal. Segundo o artigo 103.º do Regime Geral das Infrações Tributárias, este crime é punível com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias. Constitui fraude fiscal as “condutas ilegítimas” que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a “obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais suscetíveis de causarem diminuição das receitas tributárias”.
A fraude fiscal pode ter lugar por “ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade” ou das “declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria coletável”; por “ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração tributária”, e ainda pela celebração de “negócio simulado”.
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