Garantir o cumprimento das obrigações do arrendatário sem inviabilizar o acesso ao mercado de arrendamento

  • Ana Afonso
  • 19 Dezembro 2022

A superação da dificuldade resultante do desencontro dos interesses de senhorios e arrendatários neste aspeto de regime é melhor assegurada com o recurso à celebração de contratos de seguro de renda.

Para ser eficiente, o regime de arrendamento urbano tem de, entre outros, acautelar o interesse do senhorio de garantia de cumprimento das obrigações do arrendatário. Tradicionalmente, este interesse era realizado por via da constituição de uma fiança. Mas à medida que a predisposição para garantir as obrigações de outrem com o seu próprio património tem vindo a esmorecer, aliada à dificuldade inultrapassável que a exigência de apresentação de um fiador pode constituir para um estrangeiro ou, em geral, para quem não tenha laços familiares ou de amizade suficientemente fortes que lhe permitam encontrar quem esteja disposto a afiançar o cumprimento das suas obrigações, os senhorios têm vindo a recorrer à cobrança de montantes adicionais ao pagamento da renda no momento da celebração do contrato. A lei civil permite, por um lado, a antecipação de rendas por um período não superior a três meses e, por outro lado, que as partes caucionem livremente, isto é, «por qualquer das formas legalmente previstas, o cumprimento das obrigações respetivas» (cfr. art. 1076.º, n.º 1 e n.º 2 do Código Civil). Parece resultar da lei que o legislador permite cumular a exigência do pagamento de cinco rendas – as duas imediatamente devidas, a primeira, que se vence no momento da celebração do contrato e a segunda que se vence no primeiro dia útil do mês imediatamente anterior àquele a que diga respeito, a que acrescem as três permitidas pelo n.º 1 do art. 1076.º e que, não sendo ainda devidas, constituem antecipação de pagamento – com o pagamento de uma caução cujo montante não está limitado. A reserva antecipada de três (ou antes quatro) meses de renda concilia-se com a necessidade de o senhorio aguardar a falta de pagamento de três meses de renda antes de proceder à resolução do contrato de arrendamento (art. 1083.º, n.º 3, CC), tendo de conceder ao arrendatário um mês adicional para desocupação do locado (art. 1084.º CC). Em contrapartida, tendo havido antecipação, o arrendatário adimplente não terá de pagar as rendas correspondentes aos últimos três meses de duração do contrato celebrado ou terá direito à restituição dos montantes antecipadamente pagos caso o contrato cesse antes do fim do prazo (por outros motivos diferentes da falta de pagamento de renda). A cobrança da caução está, por seu turno, habitualmente associada à garantia de restituição da coisa locada no estado em que foi entregue (art. 1043.º, n.º 1, CC), ou seja, sem estragos que tivessem de ser reparados à custa do senhorio. Não havendo danos a reparar, a caução deve ser restituída ao arrendatário, no fim do contrato.

A satisfação dos interesses do arrendatário pressupõe, contudo, que o arrendamento seja acessível, isto é, que não constitua um encargo excessivo em relação ao rendimento do agregado familiar. Admitindo que a renda mensal em certo contrato foi fixada em 800€, só a antecipação de rendas já perfaz a quantia de 4000€, que pode ainda ser elevada em pelo menos mais metade desse valor se se admitir a cobrança de mais duas ou três rendas a título de caução. Desembolsar no momento da celebração de um contrato de arrendamento 6000€ talvez não esteja ao alcance de qualquer arrendatário (um agregado de dois trabalhadores em que cada um aufira 1300€ não chega sequer a metade daquele valor).

A superação da dificuldade resultante do desencontro dos interesses de senhorios e arrendatários neste aspeto de regime é, possivelmente, melhor assegurada com o recurso à celebração de contratos de seguro de renda e/ou de seguros-caução, que previnam os riscos do incumprimento do arrendatário ou que permitam ressarcir o senhorio dos prejuízos causados no imóvel, acautelando em contrapartida o arrendatário da hipótese de o senhorio fazer sua a caução entregue e de se recusar (ou de estar impossibilitado) a restituí-la ao arrendatário.

Julgamos que a disseminação do recurso à celebração de contratos de seguro é uma solução mais eficiente do que a de introduzir novos limites à antecipação de rendas ou pagamento de caução, porquanto, na falta de eficiente controlo público da observância dos limites legais, os senhorios menos escrupulosos continuarão a desviar-se dos tetos máximos para permitir o acesso ao mercado dos arrendatários excluídos por motivos discriminatórios.

  • Ana Afonso
  • Docente da Escola do Porto da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa

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