Ao ECO, Álvaro Almeida admite que poderá haver uma "sobreposição de funções" entre o CEO do SNS e o ministro da Saúde. Já Pedro Pita Barros alerta para "várias zonas cinzentas" da nova estrutura.
Com a entrada em vigor do Orçamento do Estado para 2023 (OE2023), a direção executiva do Serviço Nacional de Saúde (SNS) entra em plenitude de funções. A nova estrutura foi desenhada pela antiga ministra da Saúde, terá natureza jurídica de instituto público de regime especial e enquadra-se no novo estatuto do SNS.
Este novo organismo vai ser responsável por gerir o SNS, assegurando o funcionamento em rede, designar os responsáveis de direção dos hospitais EPE e dos agrupamentos de centros de saúde (ACS), decidir onde e quando fazer parcerias público-privadas, celebrar acordos com entidades do setor privado e social, bem como gerir as redes nacionais de cuidados paliativos e de cuidados continuados, entre outras.
Ao “leme” da direção executiva está Fernando Araújo, antigo presidente do conselho de administração do Centro Hospitalar Universitário de S. João (CHUSJ) e ex-secretário de Estado Adjunto e da Saúde, acompanhado por mais cinco membros.
Esta direção já tinha assumido funções no início de novembro, mas só a partir de 1 de janeiro entrou em plenitude de funções com a entrada em vigor do OE2023.
À sua disposição contará com um orçamento de 10 milhões de euros e carregará aos ombros uma grande expectativa de milhares de portugueses que anseiam por mais e melhores cuidados de saúde. Mas afinal, qual será o impacto desta estrutura na melhoria dos cuidados de saúde em Portugal?
Os primeiros passos da nova orgânica de gestão da Saúde
Ao ECO, Adalberto Campos Fernandes, antigo ministro da Saúde, vê com bons olhos a criação de uma direção executiva do SNS. O ex-governante refere que poderá ser “útil separar aquilo que é a gestão operacional, administrativa e estratégica do SNS” das responsabilidades políticas do Ministério da Saúde.
Além disso, Adalberto Campos Fernandes sublinha que a nova estrutura trará “uma maior confiança” na resolução dos problemas do SNS. Contudo, critica a forma como o processo legislativo foi conduzido, referindo que a criação da nova estrutura “devia ter sido feita de uma forma mais trabalhada” e “mais demorada”, de modo a “acautelar os poderes de autonomia” da direção executiva e dado que tem implicações com toda a estrutura administrativa do Estado.
A confiança que os protagonistas nos trazem, nomeadamente o diretor executivo, dá-nos a esperança de que Fernando Araújo possa suprir as dificuldades que advêm da criação de um decreto-lei e de um estatuto relativamente apressados.
Pedro Pita Barros, especialista em economia da Saúde e professor na Nova SBE, refere que a criação de uma direção executiva do SNS “é um instrumento útil”, mas avisa que ainda existem “várias zonas cinzentas” relativamente aos reais poderes executivos deste organismo.
“Nalguns casos, as decisões serão tomadas ‘em articulação’ com outros organismos do Ministério da Saúde, o que é manifestamente vago e poderá facilmente conduzir a equívoco”, refere o professor, salientando também que “noutros casos parece apontar-se para que a direção executiva proponha e o Ministério da Saúde decida, e aqui fica-se com o problema de ninguém querer propor algo que venha a ser chumbado.”
Adalberto Campos Fernandes acredita que ainda haverá “um trabalho legislativo e apuramento de todo o edifício legislativo” que será realizado ao longo deste ano e nos anos seguintes – o Presidente da República já tinha feito esse alerta, ao pressionar o Governo a aprovar leis para melhorar a articulação entre os vários serviços de saúde.
Mais crítico é Álvaro Almeida, professor da Faculdade de Economia do Porto. “É uma operação de cosmética que não vai mudar absolutamente nada que não pudesse ser mudado por outra via”, atira o antigo deputado do PSD, enaltecendo, no entanto, ainda as qualidades de Fernando Araújo e admitindo que poderá estar em causa uma “grande sobreposição de funções”.
“Não tenho dúvidas de que o professor Fernando Araújo e o senhor ministro da Saúde se vão entender bem porque eles conhecem-se bem, entendem-se bem e articulam-se bem. Mas isso é porque são aquelas pessoas em particular. Se fosse um ministro da Saúde qualquer e um CEO do SNS qualquer, essa articulação ia ser muito difícil porque as funções que o CEO do SNS exerce são funções que originalmente pertencem ao ministro da Saúde”, afirma Álvaro Almeida.
Entre os desafios que a direção executiva do SNS vai enfrentar está a coordenação “de uma forma mais efetiva dos serviços de saúde”, sendo que nesse âmbito poderão substituir os gestores que não tiverem um bom desempenho, sinaliza Álvaro Almeida.
Já Adalberto Campos Fernandes destaca a falta de capital humano, dado que está a haver “um grande número de aposentações e ao mesmo tempo ainda não há médicos suficientes em algumas especialidades”, num contexto em que os profissionais de saúde têm um “quadro remuneratório tão frágil”.
Como resolver os problemas nas urgências?
Os congestionamentos nos serviços de urgências em vários pontos do país, que têm conduzido a elevados tempos de espera ou até ao encerramento temporário em especialidades como a ginecologia/obstetrícia ou a pediatria, têm sido um dos temas “quentes” dos últimos meses.
Para colmatar estes problemas, a direção executiva do SNS já deu alguns sinais. É disso exemplo a criação de um plano de reorganização das urgências destas especialidades durante a última quadra festiva – que implicou o encerramento de alguns serviços para assegurar o funcionamento de outros, bem como a partilha de recursos – e a criação de mais quatro unidades locais de saúde (ULS).
Esta última decisão é aplaudida pelo antigo ministro da Saúde, que destaca como um exemplo de “opor à fragmentação a integração”. “É incompreensível que um sistema integrado como é o SNS não possa assegurar que na proximidade existam respostas para problemas de saúde ligeiros ou moderados”, salienta Adalberto Campos Fernandes, defendendo ainda a necessidade de se aproveitar a linha SNS24 para “disponibilizar teleconsultas” e instando as farmácias comunitárias a participarem no “processo de informação e orientação de doentes”.
“As urgências hospitalares, nomeadamente os hospitais diferenciados, apenas devem receber doentes agudos por doença aguda ou por acidente que sejam encaminhados pelo INEM, pelos bombeiros, pelo SNS24 ou por qualquer profissional de saúde habilitado”, diz.
O antigo governante sublinha ainda que os problemas das urgências não devem ser resolvidos com o encerramento “a eito” destas unidades hospitalares, nomeadamente em zonas do interior. Porém, defende a “restruturação entre áreas metropolitanas” onde a distância entre pontos de urgência é menor.
Para Adalberto Campos Fernandes, o objetivo seria aplicar noutras regiões o modelo da região Norte (que tem o “carimbo” de Fernando Araújo) e distribuir os médicos pelos hospitais, mesmo que isso implique deslocações destes profissionais, de modo a que não existam falhas nas escalas.
Esta possibilidade já foi colocada em cima da mesa pelo diretor executivo do SNS que, em entrevista à RTP, admitiu a hipótese de concentrar urgências especializadas, como urologia ou gastroenterologia, em determinados hospitais.
Além disso, Fernando Araújo admitiu que “poderão ser encerradas maternidades”. “Não é fácil, no interior, ter uma urgência a uma hora de distância”, apontou, sublinhando ainda que “cada região tem o seu cenário” e que este ano a nova estrutura terá que “tomar decisões em algum sentido.
O líder do SNS admitiu ainda a revisão do despacho relativo ao pagamento das horas extraordinárias, que deixará de vigorar depois de 31 de janeiro e sobre a qual tinha feito algumas criticas.
Tradicionalmente, a região Norte tem tido melhores indicadores de performance das instituições na Saúde do que a região de Lisboa e Vale do Tejo, mas isso tem que ver não só com as estruturas, mas também com a organização.
Em relação à criação das quatro novas ULS, Álvaro Almeida revela-se mais cético que Adalberto Campos Fernandes. “Em teoria, até podia ser uma boa ideia, mas a experiência das oito ULS que já existem diz-nos que, na prática, os benefícios em termos de integração são marginais e não se consegue grandes ganhos em saúde por essa integração“, sublinha o antigo deputado do PSD.
O mesmo ceticismo é notado por Pedro Pita Barros, que defende haver “cinco formas” de a direção executiva do SNS intervir neste assunto, entre as quais através da “avaliação técnica da dimensão das equipas necessárias, ao longo do dia, ao longo da semana, e para os diferentes tipos de urgência, ouvindo a Ordem dos Médicos”, da imposição uma coordenação efetiva entre unidades de saúde com serviços de urgência ou do reforço dos meios nestes serviços.
Por outro lado, Álvaro Almeida considera que a direção executiva “não vai resolver o problema de fundo”, que diz respeito à demografia médica, “nomeadamente a grande concentração de médicos na idade superior a 55 anos”, cuja idade são dispensados de fazer urgência. Ainda assim, sublinha que a reestruturação das urgências metropolitanas “pode minimizar os danos”.
Já sobre o orçamento destinado a esta nova estrutura, todos concordam que os 10 milhões de euros orçamentados deverão ser suficientes, dado que a direção executiva não tem uma atividade direta assistencial. Contudo, Pedro Pita Barros admite que a dotação “irá provavelmente crescer ao longo do tempo”.
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Direção executiva do SNS arranca o ano a todo o gás. Há risco de “sobreposição de funções”
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