Desde fevereiro que as empresas com mais de 100 trabalhadores passaram a ter que respeitar este sistema de quotas, tendo que contratar uma determinada percentagem de trabalhadores com incapacidade.
Em 2001 surgiu para a Função Pública um sistema de quotas com o objetivo de facilitar a contratação de pessoas com incapacidades. Em 2019 esse sistema foi estendido ao setor privado com a publicação da Lei n.º 4/2019, de 10 de janeiro.
Esta lei criou um novo sistema de quotas de emprego para pessoas com um grau de incapacidade igual ou superior a 60%. As médias empresas, com 75 a 249 trabalhadores, têm de admitir trabalhadores com incapacidades em número não inferior a 1% do pessoal, já as grandes empresas, com mais de 250, têm de ter pelo menos 2%.
Desde o dia 1 de fevereiro de 2023 que as empresas com mais de 100 trabalhadores passaram a ter que respeitar este sistema de quotas, tendo que contratar uma determinada percentagem de trabalhadores com incapacidade. Para o dia 1 de fevereiro de 2024 está agendada a implementação nas empresas com 75 a 100 trabalhadores.
Quatro anos depois de ser publicada a lei, a Advocatus foi tentar saber se as empresas que passaram a ficar “obrigadas” a este sistema de quotas estão preparadas.
Ana Paula Santiago, advogada da Macedo Vitorino, acredita que nem todas as empresas estão preparadas para aplicar de imediato este sistema, apesar de realçar que o legislador conferiu um “período alargado” para as empresas efetuarem as alterações necessárias.
“Contudo, este período de transição não previa que o mundo seria assolado por uma crise pandémica provocada pela Covid-19, a qual teve efeitos devastadores nas empresas portuguesas. A crise pandémica dos últimos anos levou a que as empresas tivessem de canalizar a sua atenção na manutenção dos postos de trabalho e na sua própria viabilidade financeira. A crise pandémica poderá ter condicionado a preparação de algumas empresas no cumprimento deste sistema de quotas”, notou.
Também Joana Azenha, associada da DCM | Littler, considera que a pandemia veio prejudicar a adaptação das empresas a este sistema de quotas. A advogada sublinha que se por um lado o legislador “atendeu a um hiato temporal relativamente alargado para cumprimento normativo”, por outro, o prazo conferido foi à data pensado para tempos de normalidade da atividade comercial.
“Ora, não nos podemos esquecer que desde o primeiro trimestre de 2020, o tecido empresarial português foi constantemente abalado, e em alguns dos casos até devastado pelos efeitos da pandemia da Covid-19, que assolou o mundo”, disse.
Pese embora não estarmos obrigados a cumprir as percentagens estabelecidas pelo regime de quotas, temos efetivamente a preocupação de proporcionar igualdade de oportunidades para todos.
Mariana Caldeira de Sarávia, sócia do departamento de Laboral e coordenadora de Capital Humano da SRS Legal, baseando-se no contacto diário que o escritório tem com as empresas e com as respetivas áreas de Recursos Humanos, bem como alguns fóruns em que participam, acredita que a postura e abordagem das empresas em relação ao tema da inclusão de pessoas com deficiência é “muito variável”.
A advogada garante que existem várias empresas com “enorme sensibilidade” ao tema e que já “cumpriam” este sistema mesmo antes de existir a lei, sendo que muitas delas “vão, atualmente, muito para além da quota e estão claramente preparadas para a inclusão de pessoas com deficiência”.
A sócia da SRS relembrou ainda que existiam empresas que, com o aproximar do fim do período transitório, reagiram e procuraram cumprir com a quota. “Creio que estas empresas não estão ainda preparadas, mas antes em fase de aprendizagem do processo de inclusão de pessoas com deficiência”, referiu.
“Muitas haverá que não se preocuparam sequer com o tema; admito, contudo, que essa “aparente indiferença” possa estar associada à dimensão do nosso tecido empresarial, muitas das empresas incluídas neste grupo não terão, atualmente, 100 trabalhadores, nem perspetivam ter, em 2024, 75 trabalhadores”, acrescentou.
À Advocatus as três advogadas consideraram que o período de quatro anos foi suficiente para a adaptação das empresas a esta lei e que não é normal um “hiato temporal de aplicação” tão alargado, fazendo comparação com os períodos de transição mais curtos previstos para a implementação da legislação laboral da “Agenda do Trabalho Digno”.
Ana Paula Santiago alerta que apesar das dificuldades, como a pandemia, esta lei veio apenas concretizar os objetivos estabelecidos na Lei n.º 38/2004, de 18 de agosto, que definiu as bases gerais do regime jurídico da prevenção, habilitação, reabilitação e participação de pessoa com deficiência.
“Na verdade, a existência de sistema de quotas de emprego para pessoas com deficiência nas empresas do setor privado já se encontra prevista há quase 20 anos, na Lei de bases da pessoa com deficiência, apenas não foi aplicada por falta de regulamentação”, recordou a advogada da Macedo Vitorino.
Também Mariana Caldeira de Sarávia defende que quatro anos foram suficientes para as empresas se prepararem para a inclusão de pessoas com deficiência e acredita que os valores percentuais não são “muito exigentes”.
“Porém, não creio que nos últimos quatro anos as empresas visadas tenham dado cumprimento à Lei das Quotas. Ou seja, que, pelo menos, 1% do quadro de pessoal das empresas com mais de 100 trabalhadores ou 2% do quadro de pessoal das empresas com 250 ou mais trabalhadores sejam pessoas com deficiência, desde logo porque existem exceções à Lei das Quotas, podendo dar-se o caso de as empresas, por força das atividades que prosseguem e/ou dos perfis profissionais que têm vindo a recrutar, não terem logrado fazer o match entre as vagas que abriram e as pessoas com deficiência disponíveis e inscritas junto do IEFP”, acrescentou.
A existência de sistema de quotas de emprego para pessoas com deficiência nas empresas do setor privado já se encontra prevista há quase 20 anos, na Lei de bases da pessoa com deficiência, apenas não foi aplicada por falta de regulamentação.
E as sociedades de advogados são abrangidas por esta lei? A sócia da SRS Legal explicou que dificilmente, uma vez que a maioria das pessoas são advogadas e, como tal, trabalhadores independentes e não por conta de outrem.
“Em todo o caso, a SRS Legal cumpriria, visto que o número de pessoas com grau de incapacidade igual ou superior a 60% supera a quota que lhe seria aplicável de incapacidade”, disse Mariana Caldeira de Sarávia.
Também na DCM | Littler, os bons profissionais, independentemente da sua condição, são sempre “muito bem-vindos”. “Pese embora não estarmos obrigados a cumprir as percentagens estabelecidas pelo regime de quotas, temos efetivamente a preocupação de proporcionar igualdade de oportunidades para todos”, sublinhou Joana Azenha. Posição partilhada igualmente pela Macedo Vitorino.
Coimas podem ascender aos 10 mil euros
Quem não cumprir com as regras de quotas de emprego para pessoas com deficiência, com grau de incapacidade igual ou superior a 60%, pode chegar a ter que pagar quase 10 mil euros de coima.
No caso de uma contraordenação grave, o “montante das coimas varia consoante o volume de negócios da empresa ou do grau de culpa do infrator, a empresa, podendo ir desde 612 euros a 9.690 euros”, disse Ana Paula Santiago.
No caso de ser uma contraordenação leve, por não adequarem o processo de recrutamento e seleção dos candidatos com deficiência, a coima pode variar entre 204 euros e 1.530 euros.
“Neste caso, a reincidência pode determinar a aplicação da sanção acessória de privação do direito de participar em arrematações ou concursos públicos, por um período que pode ir até dois anos – o que, havendo capacidade inspetiva e decisão sancionatória, poderá representar uma consequência extremamente gravosa para muitas empresas”, explicou Mariana Caldeira de Sarávia.
Penso que se trata de uma medida de ação e/ou diferenciação positiva, legalmente admissível e, infelizmente, necessária. À semelhança do sistema de quotas de género, que tantos efeitos positivos acabou por trazer à nossa sociedade e que continua a revelar-se necessário e pertinente. E outros sistemas que seriam de ponderar, em outras áreas sociais.
O valor das coimas pode reverter em 65% para a Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT) e 35% para o Instituto Nacional para a Reabilitação.
“Para além das contraordenações referidas, os candidatos ao emprego podem também intentar uma ação contra a empresa por alegados atos discriminatórios, peticionando a condenação da mesma no pagamento dos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos”, referiu Ana Paula Santiago.
Mas as empresas podem “fugir” a este sistema de quotas e, dessa forma, ficam excluídas desta lei. Existem exceções estabelecidas na lei, para além do requisito do número de trabalhadores.
“É o caso das entidades empregadoras que solicitem a sua exclusão da aplicação destas regras através de pedido dirigido à ACT, acompanhado de parecer fundamentado do Instituto Nacional para a Reabilitação, com a colaboração dos serviços do Instituto do Emprego e Formação Profissional, que indiquem a impossibilidade da aplicação deste regime ao respetivo posto de trabalho”, explicou Joana Azenha.
A advogada da DCM | Littler referiu ainda que as entidades empregadoras que façam prova junto da ACT da não existência de número suficiente de trabalhadores que reúnam os requisitos necessários para preencher os postos de trabalho das ofertas de emprego apresentadas pela entidade empregadora no ano anterior também ficam excecionadas.
Discriminação positiva?
A Advocatus questionou as três advogadas sobre a possibilidade deste tipo de políticas poderem ser uma discriminação positiva. Mas todas defendem que é uma diferenciação necessária.
Ana Paula Santiago referiu que o princípio da não discriminação e da igualdade são direitos fundamentais constitucionalmente garantidos, regendo-se o princípio da não discriminação pela premissa: “tratar igualmente o que é igual e desigualmente o que é diferente”.
“O sistema de quotas é sem dúvida um dos exemplos de discriminação positiva a favor de determinado grupo de cidadãos que se encontram numa situação desigual, atendendo às limitações que o grau de deficiência lhes confere no acesso ao emprego comparado com os cidadãos não portadores de deficiência”, explicou.
Desta forma, a advogada da Macedo Vitorino acredita que estamos perante medidas positivas cujo objetivo é “promover e garantir a igualdade de oportunidades a todos os cidadãos no acesso ao emprego independentemente do grau de deficiência de que sejam portadores, estando, por isso, em conformidade com o princípio da igualdade”.
“Penso que se trata de uma medida de ação e/ou diferenciação positiva, legalmente admissível e, infelizmente, necessária. À semelhança do sistema de quotas de género, que tantos efeitos positivos acabou por trazer à nossa sociedade e que continua a revelar-se necessário e pertinente. E outros sistemas que seriam de ponderar, em outras áreas sociais”, assegurou Mariana Caldeira de Sarávia.
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Estão as empresas preparadas para ter quotas por incapacidade? Advogados respondem
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