Carlos Cortes, o novo bastonário da Ordem dos Médicos, defende que os salários dos médicos "têm de estar em paralelo" com aquela que é a "elevada responsabilidade e diferenciação" desta classe.
O novo bastonário da Ordem dos Médicos, Carlos Cortes, admite que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) está a “atravessar um momento muito crítico”, em que “há mais dificuldade” de acesso aos cuidados de saúde e com “uma enorme dificuldade” em captar e em fixar profissionais de saúde.
Em entrevista ao ECO, o médico especialista em patologia clínica aponta que “a principal queixa dos médicos” é não terem condições estruturais para atenderem os doentes e lamenta que o “elevado grau de diferenciação” e a “responsabilidade” que estes “têm dentro do SNS” não esteja a ser acompanhado por salários “justos”. “Os médicos estão a deixar o SNS para o setor privado ou para a imigração”, alerta.
O antigo presidente do Conselho Regional do Centro da Ordem dos Médicos assegura ainda que não tem “nenhum preconceito ideológico” sobre as parcerias público-privadas (PPP) na Saúde. “Como bastonário da Ordem dos Médicos para mim é irrelevante o modelo da gestão”, afiança. Mas lembra que a situação no Hospital Beatriz Ângelo é “paradigmática”, dado que quando terminou a PPP, o grupo Luz Saúde “levou muitos profissionais” e uma vez que este hospital está inserido numa zona com elevada falta de médicos de família.
Carlos Cortes, que tomou posse esta semana e substitui Miguel Guimarães na liderança da Ordem dos Médicos, considera ainda ser muito cedo para avaliar as decisões tomadas pela direção executiva do SNS, mas diz-se “muito cético” em relação ao que está a ser feito nas urgências. “Estou um bocado cansado dos remendos, da manta de retalhos, dos pensos rápidos… O que queria é soluções de fundo”, afirma, em entrevista ao ECO, lamentando que não haja “uma proposta de fundo” para uma reforma do SNS.
Quando anunciou a sua candidatura a bastonário da Ordem dos Médicos disse que tinha uma “grande vontade de mudança”. Quais serão as suas prioridades para os próximos três anos?
Provavelmente o grande motor da minha candidatura à Ordem dos Médicos é a mudança, a inovação, a transformação. Acho que é absolutamente estratégico para a Ordem dar as suas respostas na área da Saúde. As respostas associadas aos médicos, mas, sobretudo, a resposta para aqueles que são os destinatários, que são os doentes. Essa transformação assenta, fundamentalmente, num perfil mais técnico da Ordem dos Médicos. A Ordem é uma instituição muito complexa, muito grande, muito pesada: tem 80 colégios, 48 especialidades, 15 conselhos nacionais consultivos, tem mais de 1.100 médicos tecnicamente diferenciados nas mais diversas áreas. Portanto, é uma instituição que tem uma capacidade como nenhuma outra no país de dar respostas para a Saúde.
Quero também transformar a Ordem dos Médicos por dentro. Atualmente, a Ordem tem uma estrutura com uma forma de funcionar muito tradicional, muito pouco adaptada àquelas que são as necessidades dos dias de hoje. E digo isto em termos de procedimentos. Hoje há ferramentas que podem facilitar e desburocratizar a própria Ordem. [A ideia é] Fazer entrar a Ordem dos Médicos na era digital, que ainda verdadeiramente não entrou, usando mais a informática e determinado tipo de ferramentas, como o balcão único, as apps…. Algumas delas até já foram desenvolvidas, mas não foram difundidas por toda a classe médica.
E queria também dar aqui, com isto tudo, uma imagem diferente. A Ordem dos Médicos está, sobretudo, muito centrada nos cuidados de saúde que se prestam diretamente aos doentes, mas queria também uma Ordem preocupada com outras questões. Por exemplo, as questões da violência doméstica, da violência sexual… A questão dos migrantes, as questões ambientais, da habitação, do desporto, do exercício físico, do envelhecimento, — e podia citar muitas outras — todas estas matérias que normalmente, até nem são áreas da Ordem dos Médicos, [dado que] não são chamadas determinantes, têm uma influência muito grande sobre a Saúde das pessoas.
Temos que atuar muito mais na prevenção, na promoção, na literacia em Saúde. Nós queremos evitar que as pessoas estejam doentes, isso é o pré, mas depois o pós também. E o pós tem que ver com a questão do envelhecimento. Por exemplo, nos lares: o apoio social que tem que ser dado às pessoas que necessitam desse apoio para essas pessoas também não estarem nas instituições de saúde, muitas vezes sem necessidade nenhuma. São pessoas, que, do ponto vista clínico, já necessitam de cuidados de saúde, mas como muitas vezes não têm lugar na área social ou no seu próprio domicílio e acabam por ficar no hospital. A Ordem dos Médicos tem-se focado muito na saúde física e mental, mas não se tem preocupado com o social. Não é uma área tradicional da Ordem e eu quero que seja.
O SNS vive um dos períodos mais críticos, apesar de nos últimos anos ter existido um contínuo reforço do Orçamento para a Saúde. Só este ano está previsto um reforço de quase 1,2 mil milhões de euros. Há também mais médicos no SNS. No entanto, a perceção pública é a de que os cuidados de saúde no SNS estão a piorar. O que é que está a falhar?
Não sei se verdadeiramente hoje a situação do SNS é mais crítica do que era há 10 ou 20 anos. Desde que sou médico, o momento que estamos a atravessar em qualquer um desses períodos sempre foi um momento muito crítico. Não estou a minimizar aquilo que está a acontecer agora. Estamos a atravessar um momento muito crítico do SNS. Um SNS menos responsivo, onde há mais dificuldade de acesso dos doentes aos cuidados de saúde, um SNS desestruturado e um SNS com uma enorme dificuldade em captar e em fixar pessoas.
Tenho que sublinhar que, 10 mil médicos, dos dados que me deu [número de médicos passou de 25.304 em 2015 para 30.921 em 2022], estão em trânsito dentro do SNS e porquê? Porque estão em formação, alguns deles na formação inicial que é a chamada formação geral do internato médico e o restante em formação especializada. O que queremos é que esses 10 mil médicos realmente tenham oportunidade e vontade de se fixar no SNS. Temos que fazer aqui outro balanço: até 2030 o SNS vai perder 5 mil médicos.
Mas não podemos comparar períodos, conjunturas. Se formos ver o número de médicos que temos hoje em relação àquilo que tínhamos há 40 anos, quando iniciou o SNS, é evidente que temos muito mais médicos. Mas não podemos esquecer dois ou três aspetos muito relevantes: a evolução da ciência, ligada obviamente à evolução da tecnologia e de um ensino muito mais exigente.
A sociedade está também cada vez mais exigente e a estrutura etária da população está também muito diferente. O índice de envelhecimento da população aumentou de forma vertiginosa nos últimos 10 anos: em 2011 era de 128, em 2021 era de 182. Portanto, temos uma população cada vez mais idosa, com a característica de que Portugal é dos países da UE ou da OCDE com mais patologias depois dos 65 anos. Nós temos uma medicina muito geriátrica em Portugal com um peso muito grande sobre o SNS.
Algumas das urgências deste país são mais urgências próprias de um país de terceiro mundo em desenvolvimento do que propriamente de um país da União Europeia.
Mas, tendo em conta que temos cada vez mais uma população mais idosa a precisar de cuidados de saúde, como é que resolve a questão da fixação dos médicos no SNS?
Já lhe vou responder a isso. Mas independentemente de ter aumentado o número de profissionais de saúde, temos que perceber que o mundo está sempre em evolução e os cuidados de saúde também. São cada vez mais diferenciados, mais dirigidos e, obviamente, cada vez temos necessidade de mais médicos. Porque é que o Ministério da Saúde não dá esses dados? O desafio que lanço é que estude quais são as necessidades. Muitas vezes dizemos: ‘há falta de médicos nas urgências’. Agora faltaram médicos na urgência do Beatriz Ângelo e tiveram que encerrar a urgência pediátrica.
Mas o que o Ministério da Saúde tem que fazer, de forma muito criteriosa, é perceber quantos pediatras é que o SNS precisa, onde é que eles são necessários e nesses locais que tipo de cuidados estes pediatras têm que dar, porque não são iguais em todos os hospitais. E, então, aí estabelecer um plano para, por um lado, formar adequadamente esses pediatras que são necessários ao país e fixá-los dentro do SNS.
Mas que condições são fundamentais para captar e fixar os médicos no SNS?
Fui presidente da região Centro da Ordem dos Médicos e entre setembro e outubro andei a visitar todo o país e a principal queixa dos médicos do SNS é não terem condições para atenderem os seus doentes. Não terem condições estruturais. Algumas das urgências deste país são mais urgências próprias de um país de terceiro mundo em desenvolvimento do que propriamente de um país da União Europeia. É inconcebível como é que há urgências ainda com as condições físicas que têm.
[É preciso] Criar também estruturas de gestão que possam facilitar a questão da resposta de urgência. Fazer a ligação que não tem sido feita entre os hospitais e os centros de saúde. Sabemos que há muitas situações que deviam ser atendidas nos cuidados de saúde primários. A questão da literacia, da resposta da linha SNS24… Outras que deviam ir só ao centro de saúde e muitas delas nem deviam sequer dar entrada na urgência.
É necessário ter uma visão diferente do SNS para oferecer aos médicos um projeto de futuro. E, de facto, isso não tem acontecido. Além disso, a questão remuneratória, que está a ser tratada pelos sindicatos, é muito importante. Hoje o elevado grau de diferenciação dos médicos, a responsabilidade que têm dentro do SNS e dentro do sistema de Saúde não está a ser acompanhada por uma remuneração que se considera justa. E, portanto, os médicos estão a deixar o SNS para o setor privado ou para a imigração.
Referiu que uma das maneiras de aliviar a pressão nas urgências seria melhorar a ligação entre os hospitais e os centros de saúde. Como é que isso pode ser melhorado? As urgências deviam passar a receber apenas utentes referenciados pelo INEM ou pela linha SNS24?
Se não me engano, 47% das urgências são triadas como branco, azul, verde e amarelo, [sendo que] nós temos à volta de seis mil milhões de episódios de urgência anualmente. No último estudo que foi feito pela OCDE, Portugal é o país onde há mais episódios de urgência por mil habitantes. É um número absolutamente impressionante que, está à frente do segundo país da OCDE que é Espanha, e em que praticamente metade dessas urgências não têm, à partida, motivo para se dirigir ao serviço de urgência.
E nisto estou a falar na triagem de Manchester, porque, muitas vezes, uma pessoa até pode ter uma dor de cabeça e aparentemente não é motivo para ir imediatamente à urgência. Mas nunca sabemos qual é exatamente a etiologia dessa doença, até pode ser um problema mais grave. Onde é que temos de atuar? Temos que atuar a montante e aí temos falta de literacia, com muitos doentes que não sabem muito bem o seu problema de saúde.
[Mas] O principal problema da urgência não são propriamente estes 47% que não deviam ir à urgência. O problema da urgência são as pessoas dependentes, nomeadamente idosos que chegam à urgência em macas. Em primeiro lugar, por problemas que se calhar deviam ser evitados. Eles têm que ir à urgência, mas são questões que deviam ser evitadas, como idosos desidratados, que têm infeções que podiam ter sido evitadas, porque não tomaram adequadamente a sua medicação crónica, e portanto, agudizam o seu problema de saúde. Esses doentes são doentes que requerem muita atenção, acabando por ocupar — e bem — algum tempo dos profissionais de saúde.
E depois, muitos dos doentes são tratados e têm alta clínica, mas depois não têm condições sociais para serem recolocados numa ERPI, num lar ou no seu domicílio. Esse é, verdadeiramente, o grande problema do serviço de urgência. E, por isso, do meu ponto de vista, aquilo que o Ministério da Saúde devia fazer era apostar na área social.
Hoje o elevado grau de diferenciação dos médicos, a responsabilidade que têm dentro do SNS e dentro do sistema de Saúde não está a ser acompanhada por uma remuneração que se considera justa”.
Melhorar a ligação entre hospitais e cuidados de saúde primários passa pela criação de ULS?
Os cuidados de saúde primários têm neste momento uma multiplicidade de tipologias: temos as USP, as USF [com] modelo A, modelo B e modelo C, que ainda não existe, mas já há essa possibilidade de forma mas consistente. E a grande queixa que se ouve sempre em todo o lado é a falta de articulação, isto é, não há uma comunicação adequada entre aquilo que é o gestor do doente — que é o médico de família — e o hospital. Muitas vezes é difícil referenciar os doentes e depois acompanhar o doente dentro do trajeto do hospital. E essa comunicação é a que falta.
Tem sido implementado a nível nacional o modelo das Unidades Locais de Saúde (ULS). Sou muito cético em relação às ULS. Não tenho nada contra, [mas] não quero é que se pense são as formas milagrosas que nos estão a ser vendidas, porque não são. Depende muito precisamente dos protagonistas. Encontrem um conjunto de ULS — e posso dizer que são a maioria — onde esta ligação entre os cuidados de saúde primários e os cuidados hospitalares não existe. E porquê? Porque é um modelo muito ‘hospitalocêntrico’. As ULS têm um Conselho de Administração que gere o hospital e todos os centros de saúde, e por mais que haja — e não é em todos — um representante dos cuidados de saúde primários, todas as decisões são tomadas em ambiente hospitalar, com a pressão que é colocada pela opinião pública sobre o hospital e sobre a urgência. E digo que o modelo das ULS é ‘hospitalocêntrico’, mas se calhar é ‘hospitalourgênciocêntrico’ porque depois tudo está centrado na resposta à urgência.
É esta ligação que tem que ser desenvolvida e dar condições também aos médicos de família para também darem essa resposta, isto é, termos mais médicos de família. Vai-me dizer “ah, mas no Norte as coisas funcionam bem”. A ULS de Matosinhos e de Viana do Castelo, por exemplo, podemos considerar que são duas ULS que funcionam bem. Mas funcionam bem porque o suporte em termos de cuidados de saúde primários é excelente.
O número de doentes sem médico de família é muito reduzido nessas áreas, coisa que não podemos comparar com o Sul do país onde há muitos utentes sem médico de família — 90 mil na área de Lisboa e Grande Lisboa, salvo erro, num total de 1,3 ou 1,4 milhões de utentes sem médico de família no país. E, portanto, mesmo que fosse uma ULS não iria ter capacidade de resposta. O que acho importante é termos Agrupamentos de Centros de Saúde (ACES).
Não tenho nenhum preconceito ideológico [com as PPP na Saúde]. Não tenho em relação ao público, não tenho em relação ao privado e não tenho na esfera pública em relação à gestão privada.
Os problemas no Hospital Beatriz Ângelo reacenderam o debate sobre as parcerias público-privadas neste setor. O que é que mudou neste hospital desde que passou para a esfera pública?
Quando o grupo Luz Saúde saiu dessa PPP levou muitos profissionais. Depois, o Hospital Beatriz Ângelo é um hospital paradigmático porque está inserido numa zona de influência do ACES Loures/Odivelas, que há um tempo tinha à volta de 90 mil utentes sem médico de família, mas acho que já ultrapassou os 100 mil. Portanto, está numa situação verdadeiramente calamitosa. Não há uma resposta em termos de cuidados de saúde primários e não há uma resposta no conjunto de valências dentro do hospital, que vai ser ajudado por outros hospitais para dar essa resposta. Acho que o grande desafio que tem que ser colocado é criar condições.
Mas, repare, também não há aqui nenhum fatalismo, isto é, as coisas no Norte não têm que correr sempre necessariamente bem e as do Sul correrem sistematicamente mal. Acho que tem que haver aqui modelos diferentes daqueles que têm sido utilizados para fixar os médicos nestas áreas mais deficitárias.
Mas vê vantagens nas PPP na Saúde?
Não tenho nenhum preconceito ideológico. Não tenho em relação ao público, não tenho em relação ao privado e não tenho na esfera pública em relação à gestão privada. Quero é que as coisas funcionem bem. Como bastonário da Ordem dos Médicos para mim é irrelevante o modelo da gestão desde que, do ponto de vista técnico, tenha as soluções adequadas, os cuidados de saúde sejam dados com qualidade e haja um acesso igual ou equitativo para todas as pessoas.
Os privados deviam colaborar mais com o SNS? E como?
Não vejo problema nenhum em que os privados colaborem com o SNS. A fórmula, enfim, o Ministério da Saúde é que tem que ter essa resposta. Quero é que as coisas funcionem. Se o modelo é A,B,C ou D, como disse, não tenho nenhum preconceito ideológico, desde o momento em que haja uma boa resposta, fico satisfeito. E a Ordem dos Médicos só tem que se preocupar se os doentes são bem atendidos, se a medicina praticada é de qualidade e se tecnicamente cumpre os critérios e os padrões são definidos pela Ordem dos Médicos. Se a gestão for privada, se for como ainda existe hospitais SA, se for um hospital EPE, se for um hospital com uma gestão PPP, se for um hospital privado ou da esfera social para mim é completamente irrelevante. O modelo de gestão não é algo que tenha que preocupar a Ordem dos Médicos.
Que avaliação faz das soluções encontradas pela direção executiva do SNS para as urgências, nomeadamente com o plano de fechos rotativos na região de Lisboa e Vale do Tejo?
Compreendo que se tenham que encontrar soluções imediatas, mas sou muito cético em relação àquilo que está a ser feito. Sou cético porque já estou um bocado cansado dos remendos, da manta de retalhos, dos pensos rápidos… O que queria é soluções de fundo. Obviamente que não podemos estar à espera de soluções de fundo, estruturais, que acabam por integrar vários parceiros para depois resolver os problemas do dia de hoje, que têm que ter uma resposta imediata.
Mas, aquilo que vejo é que há respostas, neste momento, imediatas, mas não há um estudo de fundo daquilo de fundo do que tem que ser feito. Não há uma proposta de fundo de uma reforma para o Serviço Nacional de Saúde. O que quero e o desafio que lanço aos políticos é que façam essa reforma de fundo, resolvendo aqui alguns problemas… Não lhe sei dizer concretamente se as soluções que têm sido adotadas na área metropolitana de Lisboa funcionam ou não funcionam. Aquilo que posso dizer é que não podemos pensar, que, uma boa solução num determinado local do país, se for replicada para outros locais do país, vai funcionar.
A experiência que tive agora durante a campanha eleitoral é que há diferenças de região para região, de local para local. Há formas de trabalhar diferentes, há culturas diferentes, há formas de estar diferentes dos profissionais de saúde, mas também dos doentes. Há comportamentos diferentes e aquilo que a direção executiva do SNS tem que fazer não é cegamente estar a replicar soluções. É estudar o enquadramento do local, ver as pessoas que trabalham localmente e ver as melhores soluções para responder àquele problema. Não há nenhum problema que seja igual ou outro nem nenhum local que tenha as mesmas características que outro local. Portanto, as medidas têm que ser adaptadas às realidades de cada local.
O Governo reviu recentemente o regime das horas extra pagas aos médicos nos serviços de urgência. Parece-lhe uma solução equilibrada?
Parece-me uma solução que está a levantar muitos problemas. Mas em relação a isso preferia não me adiantar muito porque, de facto, isto é uma matéria iminentemente laboral, do domínio sindical. Os sindicatos estão negociação com o Ministério da Saúde, não quero intrometer-me nessa negociação nem atrapalhar essa negociação. Mas há uma coisa que quero salvaguardar: é a dignidade da profissão. E a dignidade da profissão médica além de outros aspetos que já referi, como ter condições de trabalho, tem também a questão remuneratória. A questão remuneratória tem que estar em paralelo com aquela que é a elevada responsabilidade e diferenciação do trabalho. [Mas] Essas questões mais numéricas são questões que estão neste momento em discussão com os sindicatos, por isso devem ser os sindicatos a pronunciarem-se sobre elas.
Para colmatar a falta de médicos no SNS é favorável a um regime dedicação exclusiva? E nesse caso, os médicos deviam receber mais por isso?
Dedicação plena opcional, sim. Obviamente não tenho nada contra a dedicação plena, desde que seja opcional. Os médicos que não estão em dedicação plena têm um horário de trabalho e esse horário de trabalho tem de ser cumprido, se não não há nada a fazer. Mas quem opta pela dedicação plena obviamente que tem que ter uma diferenciação salarial que compense essa dedicação plena. Obviamente que isso tem que ser feito, [mas] mais uma vez estamos a entrar no domínio sindical, mas a Ordem dos Médicos nada tem a colocar contra a dedicação plena desde o momento que contemple estes dois parâmetros: uma diferenciação positiva do ponto vista salarial e ser algo opcional.
Tem havido uma preocupação em dar uma resposta àquilo que é, muitas vezes, veiculado na opinião pública e isso para mim não é cumprir plenamente aquilo que deviam ser as funções de um cargo.
A suborçamentação é vista como um problema crónico na área da Saúde. Como se pode resolver?
Orçamentando adequadamente (risos). Sei que o Dr. Manuel Pizarro, a Dra. Marta Temido vêm dizer, que, afinal, agora já atingimos à volta dos 6% do PIB, que é aquela recomendação para os países da OCDE em termos de financiamento da Saúde. Mas a verdade é que a Saúde foi subfinanciada durante demasiado tempo. Durante várias décadas, houve um atraso muito grande. E sabemos que [há matérias], por exemplo as despesas aos fornecedores, onde há dificuldades no financiamento. Para colmatar estes problemas não há aqui magia. Fala-se muito na questão do desperdício, 20%, 30%, enfim… Vai sempre haver desperdício, toda a atividade humana tem desperdício.
Para darmos uma resposta a esta suborçamentação do SNS é preciso obviamente saber fazer as apostas e estas apostas são de decisão política. A decisão política tem que nos dizer uma ou outra coisa: nós queremos verdadeiramente apostar na Saúde? Desenvolver o SNS? Então tem que ser financiado. Nós não queremos financiar o SNS então não se pode desenvolver…
A direção executiva do SNS entrou em plenitude de funções este ano. Que avaliação faz destes primeiros meses e considera que poderá existir uma sobreposição de funções entre o ministro da Saúde e o CEO do SNS?
Havia uma sobreposição de funções quando não existia uma direção executiva. O Ministro da Saúde é o ministro de toda a Saúde. É alguém que tem que ter uma visão holística, uma visão mais geral, mais global daquilo que é o sistema de saúde no seu todo. O diretor executivo do SNS é do SNS, portanto, tem que dar as respostas ao SNS. Em relação à gestão das expectativas, acho que temos que dar aqui algum tempo para o modelo poder funcionar. É inevitável que se possam encontrar aqui algumas contradições.
O que é importante é eles conseguirem trabalhar em conjunto e que esta solução da criação de uma direção executiva seja positiva para o SNS. Temos agora efetivamente pessoas dedicadas ao SNS e que estão no terreno. Só desejo que as coisas corram bem e não tenho nada contra o modelo.
Agora se me perguntar ao dia de hoje se o modelo tem demonstrado uma atuação positiva, isso também não consigo responder. O que defendo é que desde o início tem que se começar a trabalhar numa reforma do SNS. E a primeira coisa que foi feita foi dar uma resposta àquilo que a opinião pública acaba por apontar, mas muitas vezes os problemas que a opinião pública aponta não são os problemas mais graves do SNS.
Estávamos a falar há pouco das urgências e eu só oiço falar das urgências ginecológicas e das pediátricas. Para mim, um dos problemas mais graves das urgências é a medicina interna. São os internistas que estão a sair do SNS, que não se estão a fixar no SNS. A medicina interna é um dos pilares dos hospitais e do serviço de urgência. E cada vez há menos internistas no serviço de urgência, cada vez há menos internistas nos hospitais do SNS. Essa é uma grande preocupação e eu não vejo intervenção nem da direção executiva nem do ministro da Saúde. Tem havido sempre uma preocupação em dar uma resposta àquilo que é, muitas vezes, veiculado na opinião pública e isso para mim não é cumprir plenamente aquilo que deviam ser as funções de um cargo. As funções do cargo é resolver problemas, não é só resolver aquilo que é demonstrado na comunicação social e na opinião pública.
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