Mais papistas que o Papa
Talvez o Governo tenha encontrado nas JMJ um pretexto extraordinário que, voluntariamente ou não, reduzirá relevantemente as pendências dos tribunais.
Não obstante o respeito devido às decisões jurisdicionais, a decisão de adiamento da leitura do acórdão, ontem conhecida, fundada nos termos em que o é, revela-se profundamente desrespeitadora dos direitos das vítimas e dos ofendidos dos crimes que foram (há muito) julgados nestes autos. Aliás, são muitas as vezes que a expressão arguido é usada na decisão; mas em nenhuma vez se encontra a referência às vítimas, aos ofendidos, aos assistentes.
Uma decisão que provoca surpresa, mas também embaraço.
Provoca surpresa porque, desde logo, dá por adquirida “que se encontra iminente a entrada em vigor de uma Lei que irá colidir com a apreciação que cumpre fazer da responsabilidade criminal do arguido Rui Pinto relativamente a alguns dos crimes pelos quais se encontra pronunciado nos presentes autos” (sic), quando, na verdade, a referida proposta de lei – que não é lei –, nem sequer foi discutida ou aprovada na especialidade e, por maioria de razão, não foi aprovada em sede votação final global pela Assembleia, não foi promulgada pelo Presidente da República, não foi referendada pelo Governo, não foi publicada em Diário da República.
Como diz, e bem, a expressão popular, “até ao lavar dos cestos ainda é vindima” e no conjunto de todos estes eventos ainda não ocorridos, surpreende que o Tribunal ignore todas as hipóteses, não tão absurdas assim, que evidenciam a fragilidade e, mesmo, a irracionalidade da decisão hoje conhecida. Se atentasse, por exemplo, ao parecer que o Conselho Superior da Magistratura emitiu sobre a referida proposta e às dúvidas de constitucionalidade que a mesma levanta, talvez pudesse dar por tão ou mais eminente que o Tribunal Constitucional seja convocado a pronunciar-se sobre a mesma, antes de esta ser promulgada, com todas as incertezas e atrasos acrescidos que daí adviriam.
Surpreende também ao antecipar a possibilidade de alguns dos crimes imputados ao arguido Rui Pinto serem incluídos no conjunto dos crimes amnistiados quando, olhando para a proposta do Governo, isso é tudo menos claro, explicando, aliás, algumas alterações da proposta já preconizadas pelo grupo parlamentar do PSD. Como está, é tudo menos claro que haja um único crime de que o arguido Rui Pinto possa beneficiar da respetiva amnistia.
De facto, a proposta do Governo exclui da amnistia e do perdão de penas, por exemplo, os crimes do âmbito da cibercriminalidade e, também, com claro relevo para este caso, aqueles que são reincidentes.
Ora, relativamente aos primeiros, o grupo parlamentar do PSD, em sede de processo legislativo, propôs uma redação da lei muito mais pormenorizada, especificando quais os concretos crimes do foro da cibercriminalidade que deverão ser considerados na cláusula de exclusão da amnistia e do perdão penas. Sabe o Tribunal, de antemão, qual será, a este respeito, a redação final da lei? Sendo aprovado o diploma segundo a versão primária do Governo, não quererá isso dizer que são excluídos não só os crimes da Lei do Cibercrime, mas também aqueles que, materialmente, constituem formas de cibercriminalidade? É uma incógnita.
Relativamente à reincidência – e, nesta parte, não há nota de qualquer proposta de alteração à proposta inicial do Governo –, a decisão de ontem parece esquecer o passado do arguido Rui Pinto, público e conhecido, e os outros processos onde já foi sujeito de uma censura penal, não sabendo nós se não haverá até já condenações anteriores por tribunais estrangeiros, face à criminalidade sem fronteiras praticada por aquele. Já para não falar do peso próprio da acusação recentemente deduzida.
Como é que à luz destes dados pode o Tribunal dar como tão certo e tão seguro de que o arguido Rui Pinto venha beneficiar de qualquer amnistia?
E a decisão é embaraçosa porque este Tribunal, uma vez mais, agigantando injustificada e desproporcionadamente as pretensas garantias de defesa de um dos Arguidos, invoca a celeridade processual para logo após preconizar o preciso oposto. Já o tinha feito quando admitiu a produção de prova testemunhal absolutamente inútil à luz do objeto processual e dos limites legalmente estabelecidos para esse meio de prova; fê-lo quando concedeu ao arguido Rui Pinto o inaudito direito de ao longo de vários meses, vasculhar os elementos de prova que aquele criminosamente subtraiu das suas vítimas, com o processo paralisado por isso, apesar de toda a prova já ter sido produzida e de o ter podido fazer muitos meses, anos até, antes do encerramento da fase de julgamento.
Talvez o Governo tenha encontrado nas JMJ um pretexto extraordinário que, voluntariamente ou não, reduzirá relevantemente as pendências dos tribunais. Deus queira que os demais órgãos do Estado venham dar algum sustento ao que ontem se decidiu.
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