Entrou em vigor, em agosto, a nova Lei de Saúde Mental. A Advocatus falou com advogados para fazer um balanço deste diploma e explicaram até que ponto esta lei é ou não exequível.
No dia 20 de agosto entrou em vigor a nova Lei de Saúde Mental, aprovada pela Lei n.º 35/2023, de 21 de julho. Um diploma que pretende garantir mais direitos e garantias às pessoas com necessidades de cuidados de saúde mental.
Foram precisos mais de 20 anos de vigência para esta lei ser alterada. Entre as novidades está a introdução da “pessoa de confiança”, o internamento compulsivo deu lugar ao tratamento involuntário em regime de ambulatório e a cessão da possibilidade de prorrogação sucessiva das medidas de segurança de internamento de cidadãos inimputáveis.
A sócia da Antas da Cunha Ecija, Jane Kirkby, fez um balanço positivo desta revisão e sublinhou que era uma mudança que há muito vinha a ser exigida, quer pelos profissionais ou entidades e associações da área, mas também pela Organização Mundial de Saúde, Conselho da Europa, União Europeia e outras instâncias internacionais.
“É de louvar que o legislador tenha procurado acabar com alguns estigmas relativamente à saúde mental, abandonando expressões como “anomalia psíquica grave” ou “pessoa com doença mental”, que agora são substituídas por “doença mental” e “pessoas com necessidades de cuidados de saúde mental””, referiu.
A advogada destacou ainda que esta mudança foi um passo “muito importante” na consagração dos direitos humanos das pessoas com necessidades de cuidados de saúde mental.
Carlos Pinto de Abreu considerou que ainda é “muito cedo” para avaliar os efeitos da nova lei ou para fazer balanços, mas destacou vários pontos positivos. O advogado referiu que a nova lei veio reforçar a aposta na prevenção e na intervenção precoce, a promoção da reabilitação e da inclusão social dos cidadãos com problemas de saúde mental e a máxima proteção dos direitos destas pessoas.
“Eliminou-se a possibilidade de prorrogação indefinida do internamento de inimputáveis ao abrigo da legislação penal. O facto de se impedir, sem limites, a perpetuação da privação da liberdade por via do internamento é um ponto muito positivo”, disse.
Entre os pontos positivos, Carlos Pinto de Abreu destacou ainda a “possibilidade de, em razão da gravidade de eventuais atos cometidos pela pessoa com doença mental e da avaliação da mesma, verificando o Tribunal a concreta e grave perigosidade ou o fundado receio de reincidência, poder ser aplicada uma medida de segurança de internamento em estabelecimento adequado, medida essa que deverá findar, quando terminado o estado de perigosidade”.
O advogado explicou que de forma a evitar a perpetuação indefinida do internamento, esta medida de segurança passou a ter como limite máximo o limite máximo da pena correspondente ao tipo do crime cometido pelo cidadão inimputável, não podendo prorrogar-se indefinidamente.
“De acordo com a nova nomenclatura, o “tratamento involuntário” tem lugar em ambulatório, assegurado pelos serviços locais de saúde mental e/ou equipas comunitárias de saúde mental, excepto se o internamento for a única (e última) forma de garantir o tratamento medicamente prescrito, cessando logo que o tratamento possa ser retomado em ambulatório”, acrescentou.
O advogado destacou ainda a redução da periodicidade da revisão obrigatória da situação do internado, em alinhamento com recomendações do Comité Europeu para a Prevenção da Tortura e das Penas ou Tratamentos Desumanos ou Degradantes.
Apesar de todos os pontos positivos, a vice-presidente da Associação de Reabilitação e Integração Ajuda, Teresa Ribeiro, considerou que a nova Lei de Saúde Mental é positiva mas não é “exequível”.
“Desconhecendo o concreto fundamento da opinião que se cita, certo é que se aumentará a exigência para os serviços de apoio, já de si bastante sobrecarregados e estruturalmente deficitários, o que pode tornar, de facto, muito difícil, mas não impossível ou inexequível, a boa execução das melhores intenções do legislador”, assume Carlos Pinto de Abreu.
O advogado prevê uma transferência do acompanhamento da área da Justiça para as áreas da Segurança Social e da Saúde, que vai no sentido das recomendações internacionais. “A sobrecarga e insuficiências já existentes nestas áreas, poderá tornar a execução da lei ainda mais exigente e difícil de concretizar adequadamente. Mas há que fazer um esforço”, acrescentou.
“Esta lei pode ser difícil de implementar, pois requer a concepção de uma estratégia ambiciosa e compreensiva cuja consecução implica um investimento significativo em recursos materiais e humanos que não é possível sem uma clara e férrea vontade e determinação política que tenha a capacidade de conduzir a uma verdadeira mudança de paradigma para que o sistema desenhado na lei não se torne letra morta ou ato inútil e para que as pessoas possam ter acesso ao apoio e tratamento necessários. Exigir-se-ão igualmente mudanças na cultura organizacional dos serviços, potenciando a sua maior articulação e/ou devida coordenação ou integração”, defendeu.
Já Jane Kirkby relembrou que, até à aprovação da nova Lei de Saúde Mental, o Código Penal permitia que o internamento de inimputáveis, nas situações em que o facto praticado pelo inimputável correspondesse a crime punível com pena superior a oito anos e o perigo de novos factos da mesma espécie fosse de tal modo grave que desaconselhasse a libertação, pudesse ser sucessivamente prorrogado por períodos de 2 anos até que o tribunal verificasse que havia cessado o estado de perigosidade criminal que lhe deu origem.
“Isto significava que, legalmente e ao contrário do que sucede no caso das penas privativas de liberdade, em que a duração máxima da pena de prisão é 20 anos, um inimputável que praticasse um crime poderia ficar perpetuamente internado. Felizmente, a nova Lei da Saúde Mental alterou esta regra, equiparando os inimputáveis aos imputáveis e fixando como duração máxima do internamento o limite máximo da pena correspondente ao tipo do crime cometido, ou seja, 20 anos”, disse.
Pontos positivos e negativos
Da duração máxima do internamento à finalidade terapêutica, vários foram os pontos positivos destacados pelos advogados à Advocatus.
“O internamento perpétuo de inimputáveis era, já há muito tempo, uma vergonha para o nosso país e uma violação dos direitos humanos das pessoas com necessidade de cuidados de saúde mental”, destacou Jane Kirkby.
A advogada referiu ainda a limitação e mudança de paradigma relativamente ao internamento compulsivo, que continua a ser possível, mas deixa de ser a regra para as situações em que uma pessoa com necessidade de cuidados de saúde mental se recuse a submeter-se ao necessário tratamento médico e crie uma situação de perigo para o próprio ou para terceiros.
Já Carlos Pinto de Abreu destacou entre os pontos positivos a possibilidade da pessoa com necessidade de cuidados de saúde mental ser apoiada ou representada, seja pelo acompanhante ao abrigo do regime do maior acompanhado, seja pelo procurador de cuidados de saúde, pelo seu mandatário, pela pessoa que exerça as responsabilidades parentais, ou pela tutela.
“O facto de a sujeição de cidadãos com doença mental a tratamento involuntário continuar a poder ser determinada em caso de recusa do tratamento medicamente prescrito, necessário para prevenir ou eliminar um perigo para bens jurídicos protegidos do próprio ou de terceiros”, disse.
O advogado destacou ainda o facto do tratamento ter finalidade terapêutica, ser orientado para a recuperação da pessoa e a sua reintegração, bem como para prevenir e evitar a prática de crimes.
“A ideia da pessoa em tratamento involuntário participar, na medida da sua capacidade, na elaboração e execução do respetivo plano de cuidados e ser ativamente envolvida nas decisões sobre o desenvolvimento do processo terapêutico é também positiva. O facto de se estabelecer uma preferência pelo tratamento involuntário em ambulatório para evitar o internamento é também positivo”, acrescentou.
Em termos negativos, a sócia da Antas da Cunha Ecija assume que é redutor do que é a saúde mental o destaque que é dado pela Lei ao tratamento involuntário que deve ser uma intervenção excecional.
“A saúde mental quase que se confunde, neste diploma, com o tratamento involuntário, quando é ou deve ser muito mais do que isso. A saúde mental faz-se, principalmente, em contexto de liberdade, de inserção e de envolvimento do próprio doente”, defende.
Jane Kirkby sublinhou ainda que o tratamento involuntário deve ser exceção e, no quadro da nova Lei da Saúde Mental, “quase que parece a regra”.
Já Carlos Pinto de Abreu destacou negativamente o facto das medidas propostas parecerem colocar os serviços locais, regionais e centrais de saúde mental e/ou equipas comunitárias de saúde sob enorme exigência, “sem que a Lei estabeleça qualquer critério de resposta organizacional”.
“Porventura, a previsão na nova lei da figura da “pessoa da confiança” poder estar ferida de alguma informalidade, talvez exagerada, potenciado a indefinição junto de serviços e profissionais. Mas ainda assim é preferível esta dita definição indefinida à prática de abusos cometidos por familiares que, algumas vezes, se arrogam de poderes totalmente à margem da lei, aí sim com mais informalidade, sem qualquer processo de maior acompanhado para garantir que estão respeitados os direitos destas pessoas” considerou.
Esta “pessoa da confiança” é uma pessoa escolhida por quem tem necessidade de cuidados de saúde mental e por si expressamente indicada para, com a sua concordância, lhe prestar apoio no exercício dos seus direitos.
“Estas limitações não significam que a lei deva ser encarada negativamente, bem pelo contrário. O novo regime preconiza um paradigma centrado no respeito pela dignidade, pelos direitos humanos e pela vontade e autonomia possíveis da pessoa com problemas de saúde mental. Esteve bem o poder legislativo. Cabe agora ao poder executivo a todos os níveis, bem como à sociedade civil, o necessário esforço e empenho para dar cumprimento a este paradigma no terreno”, refere o advogado.
Questionados se ficaram aspetos por legislar, os advogados consideram que sim. Jane Kirkby acredita que esta nova lei não foi acompanhada de uma Reforma da Saúde Mental e de uma verdadeira reorganização dos cuidados de saúde mental, como se impunha.
“Temos um Serviço Nacional de Saúde com muitas insuficiências na área da saúde mental, com escassez de profissionais, de unidades de saúde mental, em particular camas de internamento nos hospitais psiquiátricos. E também escasseiam as respostas sociais para este tipo de doentes, que muitas vezes estão completamente desenraizados das suas famílias ou são abandonados pelas mesmas e que precisam de habitação, emprego, uma aproximação à vida em sociedade”, defendeu.
A sócia da Antas da Cunha Ecija aguarda que o Plano de Recuperação e Resiliência acelere o processo de Reforma da Saúde Mental, com a disponibilização de fundos que permitam um investimento “mais rápido na qualificação” e “reforço das respostas médicas, comunitárias e sociais às pessoas com necessidades de cuidados de saúde mental”.
Também Carlos Pinto de Abreu acredita que ficou por definir a “concreta” e “adequada” articulação e coordenação entre estruturas da Justiça, da Segurança Social e da Saúde, bem como a identificação das necessárias áreas de reforço, tendo em vista a implementação da Lei. “Uma cultura de cooperação, de prontidão e de serviço de qualidade é prioridade e deve ser encarada como tal”, acrescentou.
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Mais um passo na saúde mental. Nova lei já entrou em vigor
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