Retenção progressiva de IRS para independentes proposta pelo PS “não faz sentido”, avisam fiscalistas
O acordo da Concertação Social prevê aproximação da tributação dos independentes à dos dependentes. PS propôs retenção na fonte de IRS progressiva para recibos verdes, mas fiscalistas deixam críticas.
O Governo tinha firmado o compromisso de rever ao longo de 2023 as taxas de retenção na fonte dos trabalhadores independentes, mas com o ano já a terminar, até agora, nada mudou. Em vez disso, o PS decidiu propor uma alteração ao Orçamento do Estado para 2024 que prevê que serão feitas as mudanças informáticas necessárias para que venham a ser aplicadas taxas de retenção progressivas a esses contribuintes, medida que, segundo os fiscalistas, não faz sentido. Isto uma vez que os rendimentos destes portugueses são altamente variáveis e imprevisíveis. Pior, os especialistas temem que o sistema possa ficar ainda mais complicado.
“O Governo tinha uma autorização legislativa para mudar o sistema de retenções na fonte para os trabalhadores dependentes e independentes em 2023. Usou essa autorização para mudar o sistema de retenção na fonte para os trabalhadores por conta de outrem, mas não para os independentes. Porquê? Precisamente porque o tema é simples para os trabalhadores por conta de outrem, mas não para os independentes”, argumenta Luís Leon, fiscalista e cofundador da consultora ILYA, em declarações ao ECO.
Em concreto, o Orçamento do Estado para este ano previa que durante 2023 o Governo se comprometia a rever as taxas de retenção na fonte aplicáveis aos trabalhadores independentes.
E o então secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, António Mendonça Mendes, chegou mesmo a sinalizar em outubro do ano passado que o Governo estaria a trabalhar na reformulação do modelo de retenção na fonte de IRS que é aplicado aos rendimentos desses portugueses.
Mas com o ano de 2023 a terminar, nada mudou até ao momento. Aliás, o Governo aproveitou o reforço do acordo de rendimentos — assinado em outubro na Concertação Social, com três das quatro confederações patronais e a UGT — para incluir nesse entendimento a intenção de aproximar a tributação dos recibos verdes à do trabalho dependente.
Ainda assim, a proposta de Orçamento do Estado para 2024 apresentada pelo ministro das Finanças, nada trazia nesse sentido, tendo Fernando Medina remetido as alterações para um diploma autónomo.
Porém, com o Governo agora prestar a cair, o PS decidiu que, afinal, esse assunto deve constar no Orçamento do Estado para o próximo ano. “O Governo procede, durante o ano de 2024, às necessárias alterações informáticas para a aplicação de taxas de retenção na fonte progressivas aos trabalhadores independentes“, lê-se na proposta de alteração entregue na semana passada no Parlamento pelos socialistas.
“Até parece que os titulares de rendimentos da categoria B devem ser equiparados a trabalhadores por conta de outrem. Os titulares da categoria B são apenas pessoas que criaram negócios, que não se organizaram sob a forma de uma sociedade limitada ou uma sociedade anónima, mas são donos de um negócio. Os recibos verdes não são rendimento. São faturação”, salienta Luís Leon.
E questionado sobre se faz ou não sentido os trabalhadores independentes terem um modelo de retenção progressiva, esse fiscalista afirma, de forma categórica: “nem pensar“. “Se queremos um modelo mais adequado de adiantamentos ao Estado, o meio não é a retenção na fonte, mas, sim, os pagamentos por conta“, considera.
Também João Espanha, fiscalista e fundador da Espanha e Associados, deixa críticas ao modelo sugerido pelo PS. “Um verdadeiro trabalhador independente não possui um rendimento fixo ou previsível, como sucede com os trabalhadores dependentes, pelo que os problemas práticos que se colocarão serão seguramente mais impactantes do que o escasso benefício que os contribuintes de mais baixos rendimentos irão suportar“, realça o especialista, que teme que o novo modelo venha a “complicar ainda mais um sistema que já é intratável“.
“O problema é que o nosso legislador, quando pensa em recibos verdes, pensa sempre nos falsos recibos verdes, e opta por fazer alterações desestruturantes para, supostamente, proteger as vítimas desse flagelo. Ora, o problema que se quer acautelar é de Direito de Trabalho, não de Direito Fiscal, sendo que este último não deve servir para resolver problemas sociais”, alerta João Espanha.
Uma “não proposta” do PS
Pior do que não fazer sentido face à natureza dos rendimentos independentes, é que, afinal, a proposta do PS pode não ter pernas para andar. Os socialistas não propõem uma mudança ao Código do IRS; Apenas querem que o Governo se comprometa a fazer as mudanças necessárias ao sistema informático da Autoridade Tributária (AT).
Ora, mesmo depois de realizadas as alterações ao sistema informático, o Governo teria sempre de ir ao Parlamento pedir para mudar a lei fiscal para aplicar taxas progressivas aos recibos verdes. Mas a Assembleia da República não tarda será dissolvida, na sequência do pedido de demissão de António Costa do cargo de primeiro-ministro.
Tanto que a Associação Nacional dos Profissionais Liberais (ANPL) já declarou que se trata de uma “mera declaração de intenções sem substância e concretização“.
“Não bastam alterações informáticas. É preciso mudar o texto do Código do IRS e o Governo não tem competência para mudar o texto da lei. Apenas a Assembleia da República o pode fazer. Por isso a proposta, é uma, na verdade, não proposta“, considera, assim, Luís Leon, em linha com os profissionais liberais.
E João Espanha atira: “por muito que a nossa Autoridade Tributária prefira hoje o Direito do Sistema ao Direito legislado, quero pensar que ainda não chegámos ao ponto de a Constituição da República se dever subordinar ao software do Fisco. Concedo que, por vezes, parece.”
Há, além disso, potenciais problemas de privacidade dos contribuintes portugueses associados à proposta do PS. O alerta foi dado pela ANPL: se a taxa de retenção variar consoante o nível de rendimentos, as empresas que contratam os trabalhadores independentes conseguirão perceber o que estes ganham, o que poderá “fragilizar a posição negocial” desses profissionais e até levar a uma revisão em baixa dos contratos.
“Não faz qualquer sentido um trabalhador independente ser obrigado a divulgar ao seu cliente qual é o seu nível de rendimento anual”, observa Luís Leon, confirmando esse potencial perigo.
Que retenção na fonte de IRS fazem os independentes?
Nuno Félix, Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais
Para perceber toda esta discussão, importa também explicar que modelo de retenção na fonte é hoje aplicado aos trabalhadores independentes, que são cerca de 384 mil indivíduos no mercado de trabalho português. E não é igual para todos.
Até 2001 havia uma categoria de rendimentos para os recibos verdes, outra para rendimentos comerciais e industriais e ainda outra para rendimentos agrícolas.
Nesse ano, essas várias categorias foram fundidas. Mas como resquício desse histórico permanecem as diferenças de retenção na fonte consoante o tipo de atividade e de cliente. Por exemplo, num recibo de um cabeleireiro, não há retenção na fonte. Já num recibo médico, há, detalha o fiscalista Luís Leon. E quanto a faturação do trabalhador independente é inferior a 15 mil euros por ano, não há obrigação de retenção na fonte.
De resto, para quem faz retenção na fonte, regra geral, a taxa é de 25% sobre o rendimento bruto, quer o trabalhador independente receba 20 mil euros anuais ou 50 mil euros anuais. “Quem ganha pouco sofre retenção elevada e quem ganha muito acaba por ter de compensar com pagamentos por conta de imposto, que podem ser muito violentos”, esclarece João Espanha.
Perante este cenário, este fiscalista admite que se aplicassem taxas distintas por opção do trabalhador — o que é diferente do que está a ser proposto pelo PS, que prevê taxas progressivas impostas pelo Fisco –, mas frisa que tal poderia ser problemático em termos práticos.
A propósito, em reação à proposta socialista, a ANPL deixou claro que preferia que o Fisco sugerisse apenas as taxas de retenção na fonte variáveis em função do nível de rendimentos, deixando aos trabalhadores a decisão de escolher que taxa é a mais adequada.
“A ANPL valoriza o princípio da aplicação de taxas de retenção na fonte variáveis, mas preferia que os profissionais liberais tivessem mais autonomia e liberdade para escolher qual a taxa de retenção na fonte que deverá ser aplicada“, destacou a associação.
À parte da retenção na fonte, os trabalhadores independentes têm também de fazer pagamentos por conta, em que o titular do rendimento faz três pagamentos por ano com base no rendimento de há dois anos atrás.
Em ambos os casos (retenção na fonte e pagamento por conta), está em causa um adiantamento do imposto que o contribuinte faz ao Estado. Na primavera do ano seguinte, à semelhança dos trabalhadores por conta de outrem, os recibos verdes têm de entregar a declaração de IRS (a famosa Modelo 3) e acertar contas com o Fisco, podendo receber um cheque corresponde ao imposto paga em excesso. É o chamado reembolso.
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