Especialistas são consensuais: COP no Dubai foi "histórica" e ditou o início do fim dos combustíveis fósseis. Mas linguagem vaga e acordo com "lacunas" pode comprometer metas mais vinculativas.
Foi nos Emirados Árabes Unidos, um dos maiores produtores de petróleo e membro da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), que se começou a redigir o capítulo que dita o início do fim dos combustíveis fósseis.
O marco prometia ser difícil de alcançar: a 28ª cimeira do clima das Nações Unidas (COP 28), presidida por Sultan Al Jaber, presidente da petrolífera estatal árabe Adnoc, decorreu ao longo de 12 dias no Dubai, cuja economia assenta na produção e exportação de petróleo. Foram várias as vozes que se opuseram ao país anfitrião e à presidência árabe por receios de que um acordo ambicioso cairia, uma vez mais, por terra — e as polémicas que se seguiram, certamente não ajudaram a aliviar as acusações de um conflito de interesses. Mas, ao 13º dia da COP — um a mais do que o previsto — cerca de 200 nações chegaram a um consenso: chegou a hora de iniciar a transição para o abandono dos combustíveis fósseis.
No plenário, esta manhã na ExpoDubai, Al Jaber bateu com o martelo depois de o acordo de 21 páginas — que resultou de longas horas de negociação pela madrugada adentro — ter sido aprovado unanimemente, em plenário. O presidente da COP28 considerou o texto “histórico” no seu discurso perante as delegações internacionais.
“Pela primeira vez, temos uma linguagem sobre combustíveis fósseis no nosso acordo final“, afirmou, acrescentando que o acordo representava “uma mudança de paradigma que tem o potencial de redefinir as economias” mundiais.
Al Jaber pode agora respirar de alívio. A promessa feita no arranque da cimeira de entregar um acordo “histórico” e “sem precedentes”, alinhado com a ciência, estava cumprida. E a ovação de pé no plenário foi prova disso.
Fim dos fósseis mais perto
Embora o texto final seja de facto “histórico” — é a primeira vez que o termo “combustíveis fósseis” surge num texto final da COP, e é a primeira vez que é sugerido um abandono dos mesmos — o acordo continua a ser insuficiente face àquilo que se exige há várias cimeiras: pôr um fim gradual e vinculativo do uso e produção do petróleo, gás natural e carvão, até 2050, para que limitar o aquecimento global em 1,5 graus Celsius, tal como pede o Acordo de Paris, ainda seja possível.
Este ano, mais de 100 países, organizações, investigadores, ambientalistas e ativistas exigiram que o texto final firmasse essa linguagem — e a União Europeia, que estava também a representar Portugal, chegou mesmo a ameaçar abandonar as conversações se a condição não fosse respeitada. Porém, o número recorde de lobistas de combustíveis fósseis na COP28 e a pressão de países como a Rússia, China, Índia, Arábia Saudita e a OPEP dificultaram as negociações. Por exemplo, na primeira versão do acordo ainda nem se contemplava uma “transição”. Referenciava-se apenas numa “redução” do consumo e produção. A primeira proposta foi amplamente rejeitada pelas partes.
“Os EAU sabiam que tinham de apresentar um resultado positivo, especialmente devido ao seu estatuto de país produtor de petróleo. A pressão para que um acordo forte se concretizasse estava do lado deles”, aponta ao Capital Verde Artur Patuleia, associado sénior no think-tank E3G
Mas não é só ao nível dos combustíveis que a COP28 continua a não ser capaz de vincular objetivos: a cimeira deixou para trás a urgência em definir-se um pico das emissões de gases com efeito estufa (GEE) até 2025, tal como aconteceu na COP27. No documento aprovado, é apenas reconhecida a necessidade de uma “redução profunda, rápida e sustentada das emissões de GEE, em conformidade com as trajetórias de 1,5 graus Celsius”, mas não são definidas metas nem objetivos vinculativos.
Por outro lado, o documento pede uma aceleração e redução “substancial” das emissões de dióxido de carbono a nível mundial, incluindo, em especial, as emissões de metano, até 2030. Mas nem isso será suficiente para mitigar os efeitos. Segundo Filipe Duarte Santos, presidente do Conselho Nacional de Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (CNADS), o planeta está “muito longe” de atingir o compromisso de limitar a temperatura média global, face ao período pré-industrial, aos 1,5 graus Celsius. O mesmo é verdade para a fasquia dos 2 graus Celsius, admite ao Capital Verde.
Na verdade, segundo o próprio, “as políticas públicas de todo o mundo indicam que estamos prestes a ter um aumento de 2,6 graus Celsius e isso significa que o impacto das alterações climáticas vai continuar a fazer-se sentir”, sublinha.
Estas pequenas vitórias de batalha não vão ganhar a guerra. As lacunas e as falsas soluções só servem para atrasar o seu inevitável fim, mas o texto — que se compromete fortemente com o limite de aquecimento de 1,5 graus Celsius — deixa claro que não há tempo a perder”.
Mas o problema vai além disso. Segundo a associação ambientalista Zero, que acompanhou de perto as negociações no Dubai, “a linguagem do documento final da COP28 apresenta uma série de lacunas que podem ser usadas a favor de países que ainda não estão alinhados com a ação climática“. De acordo com Francisco Ferreira, embora o texto final apresente “referências à ciência”, peca por não apresentar um acordo que permita “tomar as medidas relevantes, a fim de agir em conformidade com o que a ciência” pede.
A título de exemplo, a Zero aponta que, ao mesmo tempo que no texto final se reconhece a necessidade de “redução profunda, rápida e contínua das emissões dos gases com efeito de estufa alinhada com o 1,5 graus Celsius”, também apresenta “distrações” com as tecnologias de “zero e baixas emissões”, nomeadamente a captura de carbono, e a energia nuclear.
Simultaneamente, o documento faz referência ao papel que os “combustíveis de transição” podem ter na transição energética, sem detalhar a que fontes se referem, embora alguns ambientalistas internacionais antecipem que se trata dos mesmos combustíveis dos quais a COP28 se comprometeu em abandonar no texto final.
Ao Capital Verde, o think tank E3G aponta esta nova categoria de combustíveis como uma “lacuna preocupante” do texto final, sublinhando que este novo grupo pode abrir azo a “múltiplas interpretações“. “Embora o texto seja claro quanto à necessidade de abandonar os combustíveis fósseis, a referência a “combustíveis de transição” pode ser contraditória e prejudicar os esforços de ação climática global”, alerta Artur Patuleia.
Por sua vez, Bill Hare, CEO da organização não-governamental Climate Analytics, afirma que menção “histórica” dos combustíveis fósseis num texto final da COP é o “primeiro prego no caixão” para o setor. “No entanto, os produtores de petróleo e de gás usaram uma linguagem pouco útil, fingindo que o gás pode ser um combustível de transição ou que a captura de carbono pode limpar o que eles fazem“, sublinha. “O acordo final da cimeira sobre o clima no Dubai é um misto“, diz.
No campo dos combustíveis fósseis, a presidência árabe da COP28 conseguiu ainda que as partes concordassem em eliminar “o mais rapidamente possível” os subsídios aos combustíveis fósseis “que não contribuam para a pobreza energética ou transições justas”. Portugal surge como um dos países que ainda tem estes mecanismos operacionais, e embora o texto final não imponha nenhum prazo para a sua eliminação, o país afirma-se comprometido a eliminá-los até 2030.
Mas a referência “histórica” no acordo final não é o único aspeto de destaque desta cimeira. Logo ao segundo dia, 2 de dezembro, a presidência árabe conseguiu reunir cerca de 700 milhões de dólares destinados ao fundo de Perdas e Danos. O mecanismo, que ficou formalizado na COP27, no Egipto, ao fim de 30 anos de negociação, tem como propósito ajudar os países mais vulneráveis e com menos rendimentos a enfrentar os danos provocado por catástrofes naturais ligadas às alterações climáticas. Embora o arranque operacional seja significativo, tendo sido considerado por Al Jaber como o “primeiro marco histórico” da COP28, fica bastante aquém do necessário: 400 biliões de dólares por ano, de acordo com as estimativas da organização do fundo.
O texto final da cimeira apela também a que os países tripliquem a capacidade de produção de energia renovável a nível mundial. Portugal foi um dos 120 países que se comprometeu com a meta, mas segundo Maria João Coelho, Head of Sustainability Knowledge do Conselho Empresarial para o Desenvolvimento Sustentável (BCSD Portugal) a falta de políticas e diretrizes claras sobre como esse caminho será traçado levanta dúvidas quanto à eficácia da medida.“É sem dúvida um sinal de esperança, mas não será certamente o suficiente”, considera a responsável ao Capital Verde.
Para cumprir esse objetivo de triplicar as energias renováveis, deverão ser alcançados 10.000 gigawatts de energia renovável instalada em todo o mundo até 2030, quando atualmente existem 3.000 gigawatts, segundo dados da Agência Internacional de Energia Renovável (IRENA), o que significa acrescentar 1.000 GW por ano.
Ainda assim, do lado da Associação Portuguesa de Energias Renováveis (APREN), o passo dado é um apontado na direção certa. Ao Capital Verde, o CEO, Pedro Amaral Jorge aponta que as energias e combustíveis renováveis “têm toda a capacidade de suprir os consumos energéticas” do planeta e que, neste ponto, “a União Europeia tem-se multiplicado em esforços e estabelecimento de metas para produzir cada vez mais energia limpa e tornar-se energeticamente independente”. Ainda assim, reconhece ser necessário que esse “esforço” seja à escala “mundial”.
Além de triplicar as renováveis, os países comprometeram-se ainda em duplicar os níveis de eficiência energética, algo que, segundo Filipe Duarte Santos é “muito importante” porque permite traçar um caminho em que se “consome menos energia, mas com o mesmo benefício”.
O balanço final da COP28 acaba por ser, aos olhos da Zero, “agridoce“, sublinhando haver ainda “muito trabalho pela frente” à medida que nos aproximamos do final da década, altura em que serão colocadas à prova muitos compromissos “verdes” a serem executados com prazos até 2030.
Para a secretária de Estado da Energia, Ana Fontoura Gouveia, que esteve presente na sala de negociações da COP28, o sentimento é de “satisfação“, embora admita que as delegações “podiam fazer sempre muito mais”.
“A União Europeia e Portugal gostariam de ter visto uma posição mais forte em relação ao carvão e à não abertura de novas centrais”, aponta ao Capital Verde, a título de exemplo. “Mas compreendemos que haja países com dificuldade no acesso à energia e financiamento“, vinca.
Do lado da associação ambientalista Oikos, a cimeira do clima traduziu-se em “mais um passo na direção certa, mas longe da meta”. “É fundamental acelerar“, defendem, recordado o discurso de abertura de Simon Stiell, o secretário-executivo da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Alterações Climática, no qual dizia que os países “tínhamos de correr para a meta do combate às alterações climáticas”. “O resultado da COP28 foi uma pequena aceleração e não o início de um sprint“, comentam.
Dubai passa testemunho da COP ao Azerbaijão
Com o acordo agora formalizado, é necessário passar à ação. E continuar as cimeiras do clima.
Depois do Egito, e dos Emirados Árabes Unidos — dois países fortemente ligados à indústria dos combustíveis fósseis — a COP29 prepara-se para formar palco no Azerbaijão. E, à semelhança da cimeira deste ano, a expectativa em relação a um compromisso ambicioso e que determine, sobretudo, um phase out dos combustíveis fósseis, é diminuta. A exemplo do que aconteceu com os Emirados Árabes Unidos, o Azerbaijão não é uma escolha isenta de controvérsias. O país tem interesses nacionais na produção de petróleo e possui um historial pouco abonatório em matéria de direitos humanos. Ademais, e tal como os EAU, também o Azerbaijão é membro da Organização de Países Produtores de Petróleo.
“A próxima COP vai voltar a estar capturada pelo país produtor”, lamenta Filipe Duarte Santos. O presidente da Agência para a Energia (ADENE) não antecipa que as negociações resultem num compromisso mais forte do que este. “Dificilmente o Azerbaijão conseguirá superar este acordo. Só será possível se forem definidas metas e prazos, parece-me improvável que aconteça“, comenta Nelson Lage ao Capital Verde.
Ainda assim, reconhece que o ponto de partida desta cimeira, apesar de não ser o mais promissor, resultou num “acordo histórico”, que “marca um ponto de viragem na era do fim dos combustíveis fósseis” e “eleva a fasquia” do próximo país anfitrião.
“Esperemos que na próxima COP consigamos ter aquilo que não conseguimos ter nesta”, apela Lage, deixando em aberto a possibilidade de Portugal voltar a ter um pavilhão dedicado exclusivamente ao país naquela cimeira. “É uma decisão do Governo, mas faz todo o sentido continuar. Não fazia sentido marcarmos presença este ano, e não aparecermos no próximo”, avalia.
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
COP28 põe o “primeiro prego no caixão” dos fósseis, mas há “lacunas” no acordo que podem atrasar o seu “inevitável fim”
{{ noCommentsLabel }}