“Nada foi feito na governança da justiça”

Nuno Garoupa, economista, professor universitário e especialista em sistema de governo da Justiça, fala sobre o que falhou na política de justiça e o que deve vir a ser feito pelo próximo Governo.

Nuno Garoupa, economista, é atualmente pelo professor na Universidade George Mason, nos Estados Unidos. Especialista em sistema de governo da Justiça, estudou em Portugal, doutorou-se no Reino Unido e fez pós-doutoramentos nos Estados Unidos. Liderou a Fundação Francisco Manuel dos Santos entre 2014 e 2016.

A sua formação começou em Portugal na Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa e aprofundou-se no Reino Unido onde se doutorou na Universidade de York para depois rumar aos Estados Unidos onde esteve nas escolas de Direito de Harvard, Berkeley e Stanford. A economia do Direito, as instituições da Justiça e a comparação entre as políticas da Justiça são as suas principais áreas de investigação.

O ECO divulga cinco séries semanais de trabalhos sobre temas cruciais para o país, no período que antecede as eleições legislativas de 10 de março. Os rendimentos das famílias, o crescimento económico, a crise da habitação, o investimento em infraestruturas e os problemas da Justiça estão em foco. O ECO vai fazer o ponto da situação destes temas, sintetizar as propostas dos principais partidos e ouvir a avaliação dos especialistas.

Defendeu em tempos, num ensaio que publicou, que as magistraturas têm de prestar mais contas? Mantém esta posição?

O ensaio foi escrito em 2010 e publicado pela FFMS em 2011. Já lá vão quase 15 anos, seis governos (quatro do PS e dois do PSD/CDS), e quatro ministros/ministras da justiça. Continua, infelizmente, atual. Nada foi feito na governança da justiça ou no paradigma judicial português. Claro que alguns problemas conjunturais foram suavizados porque algumas das medidas pontuais tiveram impacto positivo; nem tudo o que foi feito estava errado ou correu mal. Por exemplo, nas pendências cíveis, na criminalidade não económica, nas falências, nos meios alternativos de resolução de conflitos, ou na desburocratização de alguns atos próprios. Mas, por outro lado, outros tantos problemas conjunturais agravaram-se. Na justiça administrativa e fiscal, na criminalidade económica e financeira, na qualidade da legislação, na falta de regulação das sociedades de advogados e do lobbying, nas portas giratórias das magistraturas (chegou-se a ter 16 magistrados em funções governamentais em 2019, estatísticas da Transparência e Integridade).

As magistraturas deveriam prestar contas como prática política. Agora pedir aos magistrados judiciais e do MP que prestem contas num contexto em que a cultura política e social é totalmente contrária à prestação de contas, numa sociedade onde nunca há conflitos de interesse, num país em que todos recusam ser avaliados (basta lembrar a oposição dos professores e dos funcionários públicos às avaliações) parece-me tarefa inglória.

Perante os recentes desenvolvimentos na Justiça portuguesa, com a Operação Influencer, corrupção na Madeira e mesmo a absolvição de Miguel Alves, o MP, mais do que nunca, deveria prestar contas?

Tal como as magistraturas, o MP enquanto instituição deveria também prestar contas como prática política corrente. Isso não decorre destes casos recentes. Estes casos mediáticos recentes, como todos os outros menos recentes, não são uma causa de uma qualquer crise judiciária.

Na verdade, estes casos são consequência de uma inação estrutural do PS e do PSD de três décadas em matéria de justiça penal (por exemplo, a recusa do princípio da oportunidade e a dificuldade em lidar com a prova indireta sem inversão do ónus). E nisto há que reconhecer a prudência de Luís Montenegro (em quem não tenciono votar) e a demagogia de Pedro Nuno Santos (em quem obviamente não voto) – mudanças legislativas em função de casos mediáticos têm uma tradição de duas décadas, desde o caso Casa Pia. Essas mudanças foram sempre precipitadas, estão na origem de muitos dos problemas atuais, e insistir nessa forma de fazer política na justiça já deveria estar afastada. PS e AD não apresentaram a reforma do MP e da justiça penal como prioridade nos seus programas. Logo, apenas em virtude de casos mediáticos que dominam a campanha eleitoral e só por demagogia do momento, podem agora os partidos falar em reformas na organização do MP.

Tantos problemas conjunturais agravaram-se. Na justiça administrativa e fiscal, na criminalidade económica e financeira, na qualidade da legislação, na falta de regulação das sociedades de advogados e do lobbying, nas portas giratórias das magistraturas (chegou-se a ter 16 magistrados em funções governamentais em 2019, estatísticas da Transparência e Integridade)”

A PGR deveria comunicar melhor e mais?

A PGR não existe para comunicar nem tem um problema de comunicação. Isso é uma obsessão portuguesa. A PGR tem de fazer o seu trabalho, apresentar resultados, e prestar contas na AR. A PGR não tem de contratar agências de comunicação e jornalistas. Primeiro, a substância e só depois a comunicação. Em Portugal, há muito tempo que temos comunicação sem substância como prioridade da cultura política e, mais recentemente, dos reguladores. Seria muito negativo que a cultura judiciária alinhasse pelo mesmo diapasão. Aliás, parte do problema atual existe porque precisamente MP e polícias parecem muitas vezes mais preocupados com a comunicação social do que com resultados em termos de condenações efetivas e principalmente recuperação de ativos.

Existe muito corporativismo nas magistraturas em termos de auto-crítica?

Existe muito corporativismo nas magistraturas porque a sociedade portuguesa é profundamente corporativa e as elites portuguesas são prioritariamente extrativas, e não porque as magistraturas são distintas do resto dos portugueses. Não fazem autocrítica suficiente porque a cultura portuguesa entende a autocrítica como algo profundamente negativo. Não há autocrítica nas elites políticas, económicas e culturais. Porque vamos exigir isso aos magistrados?

Mas as magistraturas, sim, apresentaram 85 medidas para a justiça há cinco anos. E o presidente do STJ pediu várias vezes para a AR fechar as portas giratórias. E a ASJP apresentou uma longa agenda para a reforma da justiça há menos de um ano. Nem PR, nem AR quiseram saber de tudo isso. Porque lá está – PR e partidos valorizam discursos e promessas, não substância ou ação, muito menos resultados.

Os Conselhos Superiores deveriam ter mais elementos de fora da magistratura?

Parece-me sinceramente uma questão irrelevante. Os conselhos superiores já têm elementos de fora das magistraturas. E não me parece que os partidos e o PR tenham indicado vogais de perfil muito distinto da sociedade civil, i.e., dos conselhos científicos das faculdades de Direito ou dos conselhos deontológicos da Ordem dos Advogados. Não vejo onde estão esses tais outros perfis tão distintos que numas funções sem dedicação exclusiva e como mero passo intermédio numa carreira profissional possam fazer qualquer diferença significativa. Que os conselhos superiores precisam de profunda reforma institucional e paradigmática, sim. Que o problema seja uma maioria de elementos da magistratura, não.

A responsabilidade também pode ser atribuída aos vários Governos?

A última reforma estruturada da justiça deve-se a Laborinho Lúcio. Foi incompleta e amputada porque o PSD não quis fazer tudo no final do cavaquismo. Desde então temos apenas paliativos e medidas mediáticas para acalmar o crescente populismo justicialista. Por exemplo, os cinco pacotes contra a corrupção desde 2010. Todos nasceram por pressão externa ou mediática, tiveram boa imprensa doméstica e até internacional, criaram instituições inúteis, legislaram medidas inconsequentes, e passaram à antologia jurídica sem nenhuma avaliação. Aliás, todos os governos desde a Agenda de Lisboa 2000 (são dez governos desde então) comprometeram-se com a introdução de avaliação sistemática, prospetiva e retrospetiva, da legislação. Até hoje está por fazer.

Outro exemplo, os Governos Durão e Sócrates criaram uma AT eficaz no combate à evasão fiscal, mas ignoraram por completo as consequências óbvias em termos de litígios tributários, depois os Governos Passos e Costa sacaram da cartola a arbitragem fiscal (que é importante, sem dúvida, mas não é solução estrutural como já sabíamos do mantra da arbitragem comercial na década anterior) e temos, agora, durações médias de sete a dez anos. E um terceiro exemplo na senda das soluções milagrosas, os tribunais especializados em concorrência, regulação, e propriedade intelectual iam revolucionar a nossa realidade judiciária e jurisprudencial, e mais de dez anos depois estamos onde estamos.

Depois temos a panaceia dos meios. Portugal não tem meios, ponto final. Se o atual paradigma da justiça portuguesa só pode produzir resultados com mais meios como defende a ortodoxia jurídica vigente (para justificar o fracasso das últimas décadas), então simplesmente não serve. Porque Portugal não tem mais meios. Logo é uma conversa inconsequente de décadas. Apenas permite encher programas eleitorais com mais promessas de meios que todos sabemos objetivamente não existirem. Não existiram nos últimos trinta anos, não vão existir nos próximos trinta anos.

Os Governos Passos e Costa terminaram as suas legislaturas a dizer que a reforma da justiça estava feita com sucesso. Para logo falarem de mais reformas na legislatura seguinte. Tudo isto obviamente não é só responsabilidade do PS e do PSD/CDS, mas também da comunidade jurídica que insiste nas famosas reformas cirúrgicas há trinta anos, da comunicação social que papagueia a propaganda conjuntural de medidas inócuas ou inconsequentes, e dos eleitores para quem a justiça não tem sido obviamente uma prioridade.

Os Governos Durão e Sócrates criaram uma AT eficaz no combate à evasão fiscal, mas ignoraram por completo as consequências óbvias em termos de litígios tributários, depois os Governos Passos e Costa sacaram da cartola a arbitragem fiscal (que é importante, sem dúvida, mas não é solução estrutural como já sabíamos do mantra da arbitragem comercial na década anterior) e temos, agora, durações médias de sete a dez anos”

Existe uma politização da Justiça, atualmente?

Existe como em qualquer sociedade moderna. Uma justiça sem politização é um mito herdado de uma cultura judicial formalista, legalista e idealista do século XIX. Nunca foi realidade. Dito isto, o importante é criar um sistema de freios e contra-freios que permita um equilíbrio adequado entre a inevitável politização da justiça e a consequente judicialização da política. Por exemplo, evidentemente que o Tribunal Constitucional é uma instituição política porque a CRP é política. Sugerir que uma secção do STJ com competências constitucionais não seria política é simplesmente alhear-se da realidade. Ao mesmo tempo, curiosamente, PS, PSD e IL decidiram manter as portas giratórias entre a política e as magistraturas que obviamente geram profundos conflitos de interesse e reduzem a separação de poderes.

Os megaprocessos são um dos problemas atuais a resolver ou a evitar?

Os megaprocessos nasceram como solução há cerca de vinte anos. O argumento era que sem mega processos não tínhamos condições para investigar a grande criminalidade económica e politica. Agora o argumento, afinal, é o seu exato contrário. Talvez o problema não sejam os megaprocessos, mas a cultura politica, judiciária e organizacional. E essa não se muda por decreto.

Que medida urgente proporia para acelerar a Justiça? E para simplificar?

A justiça não precisa de medidas avulsas de descongestionamento ou simplificação, já tem trinta anos disso. Precisa de um programa coerente de reformas a vinte anos. Precisa de mudar a lógica subjacente ao atual paradigma pois em trinta anos os seus protagonistas foram incapazes de superar os bloqueios estruturais e institucionais. Precisa de mecanismos estáveis (por exemplo, o exemplo da Law Commission que sugeri há quinze anos e que agora, em boa hora, a AD recupera no seu programa eleitoral no formato de Comissão Permanente para a Reforma da Justiça) para planear, debater, avaliar uma reforma paradigmática que mude produção legislativa, faculdades de Direito, acesso e regulação das profissões do Direito, governança da justiça, normas processuais, organização dos tribunais e do MP. Ao mesmo tempo, essa reforma deve ajustar-se numa perspetiva de evolução tecnológica, incluindo a justiça por via da inteligência artificial. Isso não significa que os partidos não possam divergir nos detalhes e nos ornamentos, mas a substância deve ser coerente e consistente a vinte anos. Foi assim que se fez em muitos países, foi isso que defendi no meu ensaio há quase quinze anos, foi isso que PS e PSD/CDS não souberam fazer e já perdemos trinta anos.

Os mega processos nasceram como solução há cerca de vinte anos. O argumento era que sem mega processos não tínhamos condições para investigar a grande criminalidade económica e politica. Agora o argumento, afinal, é o seu exato contrário”

Obviamente que há questões conjunturais, do momento presente, com o atraso nos tribunais fiscais, as portas giratórias, ou a desregulação de atos próprios da advocacia que em boa hora a UE soube impor (porque Portugal não é o tal único Estado de direito na UE e não há qualquer excecionalidade fantástica da advocacia portuguesa que explique que tenha de ser diferente e única na UE). Estas questões de momento exigem medidas pontuais óbvias já. Mas persistir em agendas de curto prazo apenas gerará mais custos de contexto, mais desconfiança e mais judicialismo populista a prazo.

A Justiça continua a ser um bloqueio ao investimento estrangeiro?

Parece-me evidente que a justiça nunca foi em Portugal um fator de competitividade externa nem de atração de capital físico, humano ou tecnológico. Não me parece que isso possa modificar-se nas próximas décadas.

Assine o ECO Premium

No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.

De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.

Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.

Comentários ({{ total }})

“Nada foi feito na governança da justiça”

Respostas a {{ screenParentAuthor }} ({{ totalReplies }})

{{ noCommentsLabel }}

Ainda ninguém comentou este artigo.

Promova a discussão dando a sua opinião