Maduro quis levar dinheiro para a Rússia e Guaidó para os EUA, mas o Novobanco decidiu deixar os fundos da Venezuela à guarda do tribunal. E assim 900 milhões foram parar aos cofres da Caixa e IGCP.
- Este artigo faz parte de uma série de cinco episódios da “Guerra pelos milhões da Venezuela” e que conta os bastidores, disputas, reviravoltas e intrigas em torno dos fundos de mais de 1,4 mil milhões de euros que as empresas públicas venezuelanas guardam no Novobanco.
O centro financeiro offshore do Liechtenstein abalou em 2019 com as notícias de que estava a ser usado por uma rede de lavagem de dinheiro do regime venezuelano.
Na mira das autoridades financeiras daquele principado entalado entre a Suíça e a Áustria estava um pequeno banco chamado Union Bank, que recebia fundos públicos da Venezuela e os fazia chegar a um grupo restrito de cidadãos venezuelanos.
No seguimento de um pedido de cooperação enviado a Portugal, o Departamento Central e de Investigação Penal (DCIAP) confirmou que o Bandes — o banco de fomento da Venezuela — usou uma conta aberta junto do Novobanco para transferir um montante de 160 milhões de euros, com origem na PDVSA a título de empréstimos, para o Union Bank, operações realizadas em dezembro de 2018.
Para as autoridades do Liechtenstein, esse dinheiro terá sido usado em proveito pessoal sob o pretexto de alegadas operações de trading comercial.
Já antes, no âmbito da investigação ao antigo BES, falido em 2014, o DCIAP tinha detetado pagamentos a ex-responsáveis políticos da Venezuela para contas abertas em Portugal e em relação aos quais se suspeita representarem vantagens indevidas para o BES ter acesso a fundos venezuelanos.
No âmbito deste processo, o Ministério Público acabou de acusar o ex-presidente do banco, Ricardo Salgado, de 20 crimes de corrupção no final do ano passado, embora alguns crimes tenham prescrito.
Há muito que a Venezuela estava (está) referenciada na lista de países mais corruptos do mundo em relatórios de observadores internacionais.
Em setembro de 2020 uma investigação do consórcio internacional de jornalistas expôs o esquema usado pelos “boligarcas” – uma referência ao herói sul-americano Simon Bolívar – para extrair milhões da Venezuela com ajuda dos bancos estrangeiros (e onde o antigo BES e Novobanco surgem referenciados).
Por isso, quando o Novobanco decidiu encerrar dezenas de contas das empresas públicas venezuelanas, em novembro de 2019, os procuradores portugueses não tiveram outra alternativa senão suspender o acesso e a movimentação relativamente aos fundos lá depositados. No total, o banco português guardava mais de 1,4 mil milhões de euros em depósitos titulados por quase duas dezenas de entidades estatais venezuelanas, com a PDVSA à cabeça.
Naquela altura, havia outro fator adicional de perigo a fazer soar os alarmes no Ministério Público português: em Caracas, viviam-se momentos de enorme incerteza política e institucional, com o centro do poder a ser disputado por Nicolás Maduro e Juan Guaidó, aumentando o risco de fraude e de apropriação indevida dos milhões depositados em Lisboa.
Os fundos venezuelanos mantiveram-se bloqueados no banco português por ordem judicial ao longo do ano de 2020, com o Ministério Público a manter restrições sobre algumas contas depois disso.
Uma boa parte desse dinheiro acabou por sair do banco em meados de 2021, já depois de levantadas as ordens judiciais. Mas não tiveram como destino os cofres da Venezuela, como pretendia o regime de Maduro e o presidente interino Juan Guaidó.
Fim de uma dor de cabeça?
Em junho de 2020, em plena pandemia, a PDVSA e outras empresas públicas venezuelanas subiram o nível de confronto com o Novobanco e lançaram um contra-ataque em Lisboa com o objetivo de libertar os fundos que o banco português irredutivelmente se recusava a transferir.
Na ação judicial contra o Novobanco – e para a qual tinham contratado a sociedade Abreu Advogados — queriam que o tribunal reconhecesse os gestores nomeados pelo regime de Nicolás Maduro como legítimos representantes daquelas entidades venezuelanas.
A posição da PDVSA e companhia esbarrava de frente com a posição defendida pelo Governo português cerca de um ano antes, a 4 de fevereiro de 2019, em que Portugal reconhecia a legitimidade a Juan Guaidó enquanto presidente interino:
“Atendendo à importância de que o povo venezuelano se possa expressar livremente sobre os destinos do seu país, o Governo português tomou a decisão de reconhecer e apoiar a legitimidade do Presidente da Assembleia Nacional Venezuelana, Senhor Juan Guaidó, como Presidente interino da República Bolivariana da Venezuela.”
Se havia dúvidas sobre se esta declaração do Ministério dos Negócios Estrangeiros tinha efeitos meramente políticos, foi pedido um parecer aos advogados da Sérvulo que deu força jurídica ao statement do ministério de Augusto Santos Silva.
Para se perceber o problema do Novobanco: Juan Guaidó nomeou uma administração ad-hoc para a PDVSA, que coexistia com outra administração nomeada por Maduro. Quem tinha a legitimidade para mexer nos fundos de 500 milhões depositados pela petrolífera estatal venezuelana no banco português? O dilema repetia-se pelas outras 17 entidades estatais das quais o banco português guardava fundos há anos.
A consignação em depósito surgiu então como a solução para as dificuldades encontradas pelo banco português desde que decidiu encerrar as dezenas de contas venezuelanas. A medida contou com o apoio do Banco de Portugal e foi comunicada ao DCIAP: os fundos venezuelanos passavam para a guarda do tribunal até que se esclarecesse definitivamente quem eram os seus beneficiários.
Para o Novobanco, seria aparentemente o fim de uma dor de cabeça que tinha herdado do BES de Ricardo Salgado, no meio de tantas outras polémicas e casos políticos em que se viu envolvido ao longo de 2020.
Nesse ano, o Novobanco e António Ramalho estiveram sob fogo intenso por causa dos prejuízos milionários e das injeções do Fundo de Resolução. O tema do Novobanco quase comprometeu o lugar de ministro das Finanças a Mário Centeno em maio, após a célebre “falha de comunicação” com António Costa quando autorizou a injeção de capital sem dar conhecimento ao primeiro-ministro. Centeno já estava a caminho do Banco de Portugal nesta altura.
Na Assembleia da República também se levantaram muitas dúvidas sobre as vendas de malparado e imóveis do banco e os deputados avançaram para uma auditoria do Tribunal de Contas. O aumento de tensão culminou com o Parlamento a travar novas injeções do Fundo de Resolução em novembro no âmbito da aprovação do Orçamento do Estado e avançar com uma comissão de inquérito, que teria lugar no ano a seguir.
“Gostaríamos de não ter esse dinheiro”
Foi no âmbito da comissão de inquérito ao Novobanco que, no dia 16 de maio de 2021, António Ramalho fez as primeiras declarações públicas sobre o congelamento dos fundos da Venezuela.
“Nós gostaríamos de não ter esse dinheiro”, atirou o gestor ao deputado do PCP Duarte Alves na audição na Assembleia da República. “O depósito não é nosso, é de clientes, mas o que acontece, basicamente, é que não sabemos de que clientes”, acrescentou.
António Ramalho explicou então que não se tratavam de “bloqueios do Governo”, mas antes de “bloqueios de caráter judicial” relacionados com “operações de AML [combate ao branqueamento de capitais] e com operações de identificação destes fundos”.
“Quando os bloqueios desaparecerem, logo veremos o que é que vamos trabalhar. Disse isso ao embaixador da Venezuela recentemente. Neste momento, temos bloqueios orientados pela Procuradoria-Geral da República em relação aos montantes que estão aqui em causa”, adiantou António Ramalho aos deputados.
Por altura destas afirmações, o Novobanco já sabia qual o destino que ia dar aos fundos. No mês seguinte, avançou com a ação de consignação em depósito. Mais de oito dezenas de responsáveis políticos venezuelanos e responsáveis de empresas públicas, incluindo dirigentes do governo, gestores da PDVSA, Petroquímica da Venezuela e de bancos venezuelanos foram notificados pelo banco português de que parte do dinheiro venezuelano ia ficar à guarda judicial.
Em julho, o banco recebeu a boa notícia do tribunal:
“Indiciando-se fundada dúvida, não imputável ao autor, quanto à legítima representação dos credores (entidades estatais venezuelanas) para movimentar os fundos a restituir, num contexto de risco associado à esfera pública venezuelana, de tal modo permitindo que o ato de cumprimento se revista de eficácia liberatória, autorizo que sejam depositadas judicialmente as quantias devidas”.
Em novembro, o tribunal decidiu no mesmo sentido em relação aos fundos do Bandes, na ordem dos 190 milhões de euros, depois de levantadas as restrições que pendiam sobre a conta do banco de desenvolvimento venezuelano.
600 milhões de dólares para a Caixa e 350 milhões de euros para o IGCP
Dando cumprimento aos despachos do tribunal, o Novobanco colocou à guarda judicial um total de 915,8 milhões de euros, representando cerca de 65% do total de depósitos das 18 empresas públicas estatais – e mais de 3% do total de depósitos do banco.
Numa situação normal, o dinheiro seria encaminhado para a conta do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça (IGFEJ), que gere os recursos financeiros do Ministério da Justiça, junto do IGCP, a agência que faz a gestão da dívida pública portuguesa. Porém, dada a impossibilidade de o sistema do IGJEF de receber fundos em moeda estrangeira, a Caixa Geral de Depósitos (CGD) acabou por ficar com os fundos da Venezuela em dólares americanos.
Assim, para a conta do IGFEJ no IGCP foram transferidos fundos venezuelanos de 347,2 milhões de euros, enquanto o banco público recebeu nos seus cofres 612,3 milhões de dólares (cerca de 568,6 milhões de euros).
No Novobanco permaneceram mais de 500 milhões de euros das empresas públicas venezuelanas, nomeadamente o dinheiro da PDVSA, cujas contas (um em euros e outra em dólares) já se encontravam arrestadas há anos, pelo que os respetivos fundos ficaram de fora da consignação.
No meio destas disputas, os fundos venezuelanos em Portugal começavam a despertar a atenção de terceiros. Petrolíferas, mineiras e fundos internacionais estavam a caminho da capital portuguesa para ajustar contas com a Venezuela por causa de negócios e quezílias antigos.
- Este artigo faz parte de uma série de cinco episódios da “Guerra pelos milhões da Venezuela” e que conta os bastidores, disputas, reviravoltas e intrigas em torno dos fundos de mais de 1,4 mil milhões de euros que as empresas públicas venezuelanas guardam no Novobanco.
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#3. Como 900 milhões da Venezuela foram parar aos cofres do Estado português
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