Excedente “perigoso” sobe pressão para aumentos salariais e agrava risco de desequilíbrio orçamental. Montenegro apresenta hoje novo Governo
O saldo de 3,2 mil milhões, maior do que o previsto, vai inflamar a contestação social e a oposição caso o Governo de Montenegro não ceda às exigências da Função Pública, alertam vários economistas.
O novo Governo de Luís Montenegro herda um excedente de 3,2 mil milhões de euros, o que representa 1,2% do PIB, acima do saldo orçamentado de 0,8% para 2023, uma dívida pública abaixo de 100% (99,1%) com avaliação positiva em todas as agências de rating, e um nível de desemprego relativamente baixo. Mas também há desafios que têm de ser acautelados, desde logo o superávite “virtuoso” que se pode “tornar perigoso”, porque vai aumentar a pressão para maiores aumentos salariais na Função Pública, designadamente polícias e professores, alerta o economista Carlos Lobo, especialista em Finanças Públicas, em declarações ao ECO.
“Pode ser um presente envenenado, porque vai retirar capacidade de negociação com os grupos setoriais”, realça o professor da Faculdade de Direito da Universidade Lisboa. Do mesmo modo, Pedro Braz Teixeira, economista e diretor do gabinete de estudos do Fórum para a Competitividade, salienta que “há o risco de um aumento significativo da despesa permanente face às exigências de aumentos salariais”.
“Todos vão querer aumentar a despesa: o Governo para ganhar reputação e a oposição para ganhar as próximas eleições”, justifica Braz Teixeira. Por outro lado, “o novo Governo deverá enfrentar maior contestação social nas ruas se não corresponder às reivindicações dos sindicatos da Função Pública”, acrescenta Carlos Lobo. Já Gonçalo Pina, professor de Economia Internacional na ESCP Business School, está mais otimista e considera que “o excedente será positivo do ponto de vista político” e “dá um pouco mais de margem de manobra para fazer acordos de salários no curto prazo”.
O ministro das Finanças cessante, Fernando Medina, já alertou para as “pressões orçamentais futuras” com salários e pensões, aconselhando o Executivo PSD/CDS encabeçado por Luís Montenegro a manter “políticas que assegurem o equilíbrio orçamental”, defendeu esta segunda-feira, no dia em que o Instituto Nacional de Estatística (INE) revelou que o excedente para 2023 ficou acima do projetado: 1,2% do PIB, em vez de 0,8%.
“O saldo orçamental de 2023 terá um impacto positivo na execução de 2024”, mas tal excedente “não reduz as pressões orçamentais que condicionarão as decisões financeiras futuras, e nas quais se incluem os efeitos desfasados da crise inflacionista sobre importantes rubricas de despesa, em particular sobre pensões e salários”, destacou o socialista.
Aumento da despesa permanente para o futuro
E Fernando Medina fez as contas. “A aplicação das fórmulas legais de atualização de pensões e outras prestações exigirá mais de 1,5 mil milhões de euros em despesa em 2025; e os aumentos salariais vertidos no acordo de rendimentos exigirão também um valor superior a mil milhões de euros ao Orçamento. A estes montantes junta-se o efeito das renegociações de contratos de despesa nos vários níveis da Administração Pública decorrentes do aumento de inflação”, detalhou.
Ou seja, só em pensões, subsídios e salários há já um custo estimado, para 2025, de 2,5 mil milhões de euros, que é quase 80% do excedente de 3,19 mil milhões de euros alcançado em 2023. Além disso, é preciso ter em conta que “o excedente previsto para este ano será significativamente inferior”, lembrou Braz Teixeira. Os quase 3,2 mil milhões (1,2% do PIB) vão encolher para 664 milhões de euros (0,2% do PIB), a confirmarem-se as projeções plasmadas no relatório do Orçamento do Estado para 2024. São menos 2,5 mil milhões de folga orçamental, valor correspondente à fatura com pensões, subsídios e salários mencionada por Medina.
Saúde, polícias e professores
O líder do PSD e futuro primeiro-ministro, Luís Montenegro, já sinalizou que quer avançar, assim que tomar posse, com o suplemento de risco para as polícias, que deverá custar 154 milhões de euros por ano, segundo as contas do Executivo de António Costa, com o descongelamento faseado da carreira dos professores, à razão de 20% ao ano, que terá um impacto anual de 240 milhões de euros, de acordo com o programa eleitoral da AD, e com o plano de emergência para a saúde, cuja despesa não aparece quantificada.
Para além destas medidas, “é preciso ter em conta as despesas já orçamentadas para este ano”, sublinhou esta quarta-feira o primeiro-ministro demissionário António Costa, a propósito do balanço dos seus oitos anos de governação. E acrescentou: “O IRS que vamos pagar já beneficia das alterações de escalão e, por isso, haverá menor receita do Estado, porque andou a financiar-se menos à custa de retenção mensal dos vencimentos.”
"É preciso ter em conta as despesas já orçamentadas para este ano. O IRS que vamos pagar já beneficia das alterações de escalão e, por isso, haverá menor receita do Estado, porque andou a financiar-se menos à custa de retenção mensal dos vencimentos.”
Contudo, defendeu que o equilíbrio orçamental “não é uma religião”, pelo que congratula-se por deixar o próximo Governo com “liberdade de escolha”, reconhecendo que “há sempre problemas que o Governo que sai deixa para o novo Governo resolver”. “Problemas não faltam, o novo Governo tem muito trabalho para resolver”, vincou.
Deste modo, “não é correto falar-se em ‘folga orçamental’, muito menos de ‘cofres cheios'”, defende Carlos Tavares, coordenador do Observatório de Políticas Económicas e Financeiras da SEDES (Associação para o Desenvolvimento Económico e Social). “É preciso não esquecer que a maioria das medidas de que se tem falado representam aumento permanente da despesa corrente, não apenas agora mas para todos os anos futuros. Por isso, as contas deverão ser muito bem feitas para que não comprometam o equilíbrio orçamental no futuro”, reforça.
O excedente orçamental tem, por isso, de ser visto com prudência. E tanto pode ser um fator positivo, uma vez que dá margem de manobra para a o futuro Executivo acomodar novas medidas, como também pode ser um indicador de pressão negativo, porque, num cenário de instabilidade política, com o cutelo da oposição de um lado, e o protesto nas ruas do outro, Montenegro terá menos capacidade de negociação para travar o ímpeto despesista decorrente de maiores aumentos salariais na Função Pública, que se traduzirão em custos permanentes para o futuro.
Até porque este saldo positivo “assenta em três aspetos que não são favoráveis”, revela Pedro Braz Teixeira. “É um excedente obtido à conta de uma carga fiscal em máximos, o que tem como contrapartida pedidos de todos os lados para baixar os impostos. Trata-se de um excedente obtido à custa de muita cativação, que se nota na degradação dos serviços públicos e na exigência de aumentos salariais. E, por fim, a execução do investimento público ficou muito abaixo do orçamentado, que se traduz em dificuldades para a Administração Pública”, elenca o economista.
Redução da dívida e poker de A(s) no rating
A redução da dívida pública para o patamar abaixo dos 100%, mais concretamente em 99,1% do PIB, também não deve ser visto com excesso de otimismo, segundo os economistas ouvidos pelo ECO. Ainda assim, o Ministério das Finanças salienta que “Portugal recuperou as notações de risco de patamares ‘A’ em todas as agências de rating (S&P, Moody’s, Fitch, DBRS e Scope), o que não se verificava há 13 anos”. Para Carlos Lobo é o chamado “poker de A(ses)”, que vale muitas centenas de milhões para a economia portuguesa”.
“Isto poderá permitir poupar em alguns pagamentos de juros da dívida e, como parece que as taxas de juro vão ficar elevadas algum tempo, poderá ter um contributo positivo nos orçamentos do Governo (se passarem)“, salienta Gonçalo Pina.
Portugal recuperou as notações de risco de patamares ‘A’ em todas as agências de rating (S&P, Moody’s, Fitch, DBRS e Scope), o que não se verificava há 13 anos.
Carlos Tavares é mais prudente na análise, considerando que “uma dívida na ordem dos 100% do PIB não pode ser motivo de satisfação ou complacência”. “Estamos 16 pontos percentuais acima da média da União Europeia – onde 21 países têm rácios inferiores -, mas sobretudo muito acima de países como a Suécia ou a Dinamarca, onde aquele rácio é da ordem dos 30% do PIB, e de muitos outros que têm valores bastante baixos”, argumenta.
Economia cresce mais e BCE deverá cortar taxas de juro a partir de junho
O crescimento da economia em 2024, que o Banco de Portugal (BdP) reviu em alta, de 1,2% do PIB para 2% do PIB, é um sinal positivo. Neste sentido, Gonçalo Pina considera que “a economia parece mais resiliente do que pensávamos”, existindo “uma margem de oportunidade maior do que se esperava para fazer algumas mudanças”.
Mas Pedro Braz Teixeira volta a colocar água na fervura: “As previsões do BdP estão um bocado inflacionadas, é preciso ter cautela”. O diretor do gabinete de estudos do Fórum para a Competitividade acha que Mário Centeno está mais otimista, porque “espera que no segundo semestre o Banco Central Europeu (BCE) comece a reduzir as taxas diretoras”. Mas ainda não é líquido que tal aconteça.
A concretizar-se a redução das taxas de juro a meio do ano, esse será um dos fatores positivos para o Governo de Montenegro, uma vez que terá impactos favoráveis para as famílias com crédito à habitação, que deixam de ser onerados com taxas tão elevadas, mas também para todas as instituições, incluindo o Estado, que deixam de suportar encargos tão elevados com juros.
“Nas previsões de março, o BCE reviu em baixa o crescimento da Zona Euro e projetou também uma redução da inflação, o que dá margem para começar a cortar as taxas de juro no segundo semestre”, isto é, a partir de junho, reconhece Braz Teixeira. “Ao contrário de Alemanha e França, a maior parte dos créditos concedidos em Portugal são a taxa variável. Por isso, quando o BCE aperta as condições monetárias, Portugal sente isso de forma mais intensa, quando alivia, também somos muito mais beneficiados”, acrescenta.
Instabilidade política poderá bloquear PRR e investimentos
Atraso na execução do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) devido à instabilidade política será outro obstáculo que terá de ser ultrapassado pelo futuro Governo. Tal como o ECO já noticiou, a prioridade de Montenegro será desbloquear o pagamento dos 3,19 mil milhões de euros relativo ao quinto cheque, que está relacionado com a reforma da orgânica do Estado, que passa, nomeadamente, pela concentração de ministérios no novo edifício da Caixa Geral de Depósitos (CGD), extinção de dezenas de cargos dirigentes e fusão de vários serviços, com vista a gerar poupanças e ganhos de eficiência. O primeiro-ministro demissionário, António Costa, deixou prontos dois projetos de diplomas que terão de ser aprovados pelo novo Governo, tendo depois que os submeter ao escrutínio da Assembleia da República.
Como o “avanço na execução do PRR está dependente da aprovação de reformas que o Governo cessante deixou em atraso, não sei se um Governo a prazo se vai empenhar muito”, admite Braz Teixeira. “Por outro lado, esses diplomas terão de ser aprovados pelo Parlamento e, como já se viu, se Chega e PS chumbarem, não passam. Ou seja, há risco de perda de fundos europeus se as reformas não forem viabilizadas”, vaticina.
Por isso, a “instabilidade política” é outra das pedras na engrenagem do motor de Montenegro, indicam Gonçalo Pina, professor de Economia Internacional na ESCP Business School, e Pedro Braz Teixeira. “A incerteza sobre se este Governo vai durar seis meses ou mais vai deixar os investidores à espera para ver o que acontece, ou seja, o investimento pode parar, até porque muitos projetos dependem de apoios governamentais”, explica Braz Teixeira.
O Ministério das Finanças destaca ainda que o próximo Executivo terá de acautelar despesa com “crescentes exigências de investimento público para financiar as transições ambiental, digital e de segurança externa, num contexto de uma previsível redução de financiamento europeu com a conclusão do Plano de Recuperação e Resiliência em 2026“.
Alemanha em recessão e guerras
O contexto internacional, pouco discutido na campanha eleitoral, também não é favorável ao Governo de Montenegro. “O abrandamento da União Europeia e da China são preocupantes”, assinala Gonçalo Pina. Alinhando pelo mesmo diapasão, Carlos Lobo salienta que, “em termos internacionais, o panorama não é bom, com a Alemanha em recessão”. “Quando a Alemanha se constipa, toda a economia europeia tem uma gripe. E, por isso, os bancos centrais estão com receio de baixar os juros“, sublinha.
A interferência do “poder judiciário em projetos de investimento” também é visto por Carlos Lobo com “preocupação”. “Há uma desestruturação ao nível da separação de poderes. O poder judiciário tem impugnado projetos de hidrogénio e lítio, intromete-se na ação da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), numa vertente legalista, prejudicando os investimentos no país e grandes infraestruturas”, critica, lembrando que “este enquadramento terá impacto em grandes infraestruturas como o novo aeroporto de Lisboa, as travessias sobre o Tejo e a Alta Velocidade“.
O antigo dirigente do PSD, Luís Marques Mendes, acrescenta, ainda, como fatores de pressão negativos para o Governo de Montenegro: “a instabilidade internacional (guerras na Ucrânia e Médio Oriente); os riscos das eleições presidenciais nos EUA; o surto de greves que seguramente a CGTP vai desencadear; e as novas regras europeias em matéria de redução da dívida”, afirmou no seu espaço de comentário televisivo na SIC.
Entre os sinais positivos, estão “o recuo da inflação, o maior crescimento do PIB, a redução gradual das taxas de juro, o desemprego baixo e alguma folga orçamental”, indicou Marques Mendes.
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