Economia circular subiu na fama, mas caiu na prática. “Nunca precisámos tanto dela”, alerta estudo
A contínua aceleração do consumo, sobretudo nos países mais ricos, “já não garante melhorias no bem-estar”, assinala um estudo desenvolvido pela Deloitte e pela Circle Economy Foundation.
A economia circular está em declínio a nível global: já só representa 7,2% da produção mundial, abaixo dos mais de 9% que se verificavam em 2018, detetam a Deloitte e a Circle Economy Foundation. Apontam o dedo às nações mais ricas e deixam alertas para os países em desenvolvimento, ao mesmo tempo que sugerem a criação de incentivos para as empresas implementarem práticas de economia circular e a adaptação da política fiscal.
“Nunca precisámos tanto de uma economia circular”, defendem os autores do estudo global Circularity Gap Report 2024, uma colaboração entre a Deloitte e a Circle Economy Foundation, a que o ECO/Capital Verde teve acesso em primeira mão. Apesar de os autores reconhecerem que a evolução do consumo global foi importante para elevar a qualidade de vida, a contínua aceleração do mesmo, sobretudo nos países mais ricos, “já não garante melhorias no bem-estar”, defendem.
O mesmo estudo aponta que, apesar de se falar cada vez mais em economia circular — o volume de discussões, debates e artigos sobre o tema triplicou –, esta tendência não é acompanhada por ações concretas. A circularidade, aliás, está em declínio a nível global.
A percentagem de materiais secundários usados na produção, em vez de materiais virgens, caiu de 9,1% em 2018 para 7,2% em 2023. E, nos últimos seis anos, foram consumidos mais de 500 mil milhões de toneladas de materiais — 28% de todos os materiais que a humanidade consumiu desde o início do século XX.
O declínio efetivamente existe. Mas isso não significa que se faça menos circularidade em termos absolutos: o que acontece é que continuamos num crescimento muito grande de extração de materiais virgens no nosso planeta, e esse crescimento é superior à injeção na nossa economia de materiais já utilizados.
“O declínio efetivamente existe. Mas isso não significa que se faça menos circularidade em termos absolutos: o que acontece é que continuamos num crescimento muito grande de extração de materiais virgens no nosso planeta, e esse crescimento é superior à injeção na nossa economia de materiais já utilizados”, explica, em declarações ao Capital Verde, Afonso Arnaldo, líder de Sustentabilidade e Clima na Deloitte. “Temos no fundo de conseguir consumir menos e reutilizar mais”, indica.
Se um terço daquilo que é produzido ao dia de hoje na Europa fosse feito de materiais previamente utilizados, ou seja numa lógica de economia circular, os ganhos seriam “muito significativos”, avalia Afonso Arnaldo. Por exemplo, as novas políticas de “Direito à Reparação” na União Europeia, as quais estimulam que se dê uma segunda vida aos equipamentos, deverão permitir poupanças de 176,5 mil milhões de euros ao longo de 15 anos, ao mesmo tempo que se evitam 18,4 milhões de toneladas de dióxido de carbono. O mercado da economia circular deverá situar-se entre 2 a 3 mil milhões de dólares até 2026 e, ao permitir a redução da extração de materiais, aumenta também a resiliência das cadeias de abastecimento.
Países ricos são maiores culpados. Europa deverá ir na frente
Os países de maiores rendimentos “consomem muito acima da sua quota-parte de materiais”, já que, apesar de albergarem 17% da população global, consomem 25% das matérias-primas virgens. Ao mesmo tempo, geram 43% das emissões globais. Nesse sentido, este grupo de países deve reduzir o seu consumo, defende o estudo.
Os países de médios rendimentos, de que são exemplo o Brasil, México ou o Vietname, devem continuar a apostar na melhoria da qualidade de vida das respetivas populações mas “de uma forma mais sensível aos limites do planeta”. As emissões destes países estão alinhadas com as dos mais ricos — 41% — mas têm o dobro da população.
Provavelmente o que vai acontecer é a União Europeia querer estar à frente neste tema, como está no tema climático.
Já no caso dos países de mais baixos rendimentos, como a Nigéria, Etiópia ou as Filipinas, têm uma pegada em termos de consumo de materiais de apenas 5 toneladas por pessoa, abaixo das 8 toneladas que são apontadas como um nível sustentável. Nesse sentido, o estudo prevê que estes países aumentem o consumo de materiais, de forma a aumentar a qualidade de vida da população.
“O relatório tenta demonstrar que existem caminhos [no sentido de uma maior de circularidade] que podem ser tomados, também com valor económico”, e que é possível as economias em desenvolvimento continuarem a crescer adotando uma lógica mais circular, remata o líder de Sustentabilidade da Deloitte.
No entanto, admite, uma maior circularidade pode conduzir a maiores custos num primeiro momento, pelo que Afonso Arnaldo considera ser uma “visão romântica” pensar que pode haver um esforço simultâneo globalmente: “Provavelmente o que vai acontecer é a União Europeia querer estar à frente neste tema, como está no tema climático, uma vontade que aliás já manifestou“. Nesse caso, existirá um período de transição no qual há que ter cuidado com aquilo que é exigido às empresas, e em que situação estas ficam em termos concorrenciais face a outras que estão fora da União Europeia, alerta.
O caso português não deverá ser muito diferente do europeu. “Nós não somos um peso pesado na economia mundial e, tal como acontece nas alterações climáticas, deveremos ser um pouco arrastados”, prevê Arnaldo. Esse empurrão deverá também ser dado através da cadeia de valor, já que “grandes marcas europeias” vão começar a exigir determinadas metas de circularidade, “e isso com certeza terá reflexo aqui também na nossa esfera”, prevê a Deloitte.
Taxas e fiscalidade a favor da circularidade
Feito o diagnóstico, o estudo apresenta três linhas orientadoras que considera a base necessária para que governos e indústria façam a transição para uma economia mais circular: criar condições equitativas, que promovam a circularidade em determinado território sem o prejudicar em relação a outros concorrentes; ajustar as políticas fiscais de forma a canalizar o investimento da melhor forma e, finalmente, formar na área.
“Tal como no tema das alterações climáticas, também o da circularidade deve ser uma responsabilidade, em grande parte, das empresas, pela introdução de materiais usados nos novos produtos que vão sendo produzidos“, avalia o responsável da Deloitte. No entanto, os Governos terão um papel relevante na orientação dos investimentos. Por exemplo, sugere o estudo, devem ser criados incentivos que beneficiem empresas que apostem em economia circular em detrimento daquelas que não o fazem, permitindo também preços mais atrativos para o produto final que tem uma componente de circularidade.
De forma a não desequilibrar a balança e a prejudicar os negócios europeus, Arnaldo Afonso vê como possibilidade a criação de um mecanismo equivalente ao Mecanismo de Ajustamento Carbónico Fronteiriço (CBAM, na sigla em inglês), mas focado na circularidade. No caso do mecanismo de carbono o objetivo é medir melhor as emissões de CO2 associadas às importações da UE, e depois pôr-lhes um preço. “Mecanismos como esse que tentam colocar em igualdade de circunstâncias aquilo que é o produtor dentro da União Europeia, com o produtor de fora da União Europeia”, defende o representante da consultora.
Em paralelo, a fiscalidade é mais uma ferramenta que os autores do estudo defendem como adequada para promover a circularidade, pois por esta via podem penalizar-se os produtos que não têm em atenção estes fatores. As economias devem “assegurar que os preços refletem e incluem todos os custos, incluindo os relacionados com o impacto no ambiente e saúde”, lê-se no texto.
Outra forma de os Governos promoverem economias mais sustentáveis é medirem a riqueza de outra forma, não olhando apenas ao produto interno bruto (PIB), mas também a fatores como o bem-estar humano. “Muitas vezes um país cresce economicamente mas não cresce necessariamente o bem-estar das pessoas”, explica Afonso Arnaldo, que acredita que estes fatores que devem ser introduzidos pelos governos e pelas grandes instituições financeiras globais.
Por fim, os autores propõem medidas específicas para três setores: da construção, alimentar e dos bens de consumo. No caso da construção, apontam para o reforço de princípios de circularidade no desenho dos edifícios, para que estes possam ser melhor aproveitados no futuro, assim como a aposta na eficiência energética e em materiais secundários, reduzindo o cimento e o aço.
No setor alimentar, os autores defendem uma transição na dieta de carne, peixe e laticínios para cereais, fruta, vegetais e nozes, mas também que seja dada prioridade à produção e consumo locais e que se invista no uso de organismos geneticamente modificados. Em paralelo, defendem a eliminação do desperdício alimentar, com melhorias no transporte, refrigeração e planeamento
Para os bens de consumo, circularidade implica melhorias de processo e sinergias com outros atores industriais, estender o tempo de vida dos equipamentos e comprar apenas o necessário. Quanto ao setor têxtil em particular, o estudo sugere priorizar a confeção têxtil natural e local.
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