Salgado coleciona processos e só duas condenações, dez anos depois da queda do BES

Oito processos-crime assombram Salgado. Dois deles - EDP e Marquês - já com condenações. Julgamento do maior de todos, o processo BES, deverá começar a 15 de outubro, dez anos depois da queda do BES.

Foi num domingo, a 3 de agosto de 2014, que o país foi surpreendido com a convocação de uma conferência de imprensa pelo, à data, governador do Banco de Portugal (BdP), Carlos Costa, para comunicar que o Banco Espírito Santo (BES) ia ser dividido no que chamaram de ‘parte boa’ – que passou a ser o Novobanco – e numa parte má e tóxica, no âmbito de uma medida de resolução da instituição financeira. Caía também Ricardo Salgado, o histórico presidente do banco, então chamado de ‘Dono Disto Tudo’, e que, agora, com 80 anos e uma doença de Alzheimer, enfrenta não um, não dois, não três mas vários processos criminais, dois deles já com uma condenação. Apesar de ainda não transitadas em julgado.

Com o colapso do BES nasceu a maior investigação criminal da história da justiça portuguesa chamado de processo do Universo do Grupo Espírito Santo (GES).

Por pressão do Banco de Portugal, a 20 de Junho de 2014 demite-se da presidência do banco que liderou durante décadas. A 24 de Julho é detido, mas no âmbito do processo Monte Branco (ver texto em baixo). Acabou por sair em liberdade, mas pagando uma caução de três milhões de euros. E um ano depois, a 25 de julho de 2015, seria finalmente detido no âmbito do processo BES, tendo ficado em prisão domiciliária, mas sem pulseira eletrónica.

Mas ao longo destes anos, o nome de Ricardo Espírito Santo Salgado está presente em outros mediáticos processos judiciais: o mais antigo Monte Branco, a Operação Marquês, o caso EDP (os únicos dois em que Salgado já tem uma condenação), saco azul do BES, caso BESA, corrupção no Brasil e ainda na Venezuela. Tudo na sequência das funções exercidas no GES.

Dez anos depois, no principal processo, Ricardo Salgado continua à espera do início de um julgamento que já foi adiado várias vezes e que está, agora, marcado para 15 de outubro, mas ainda sem certezas. Pelo meio, e de acordo com o Ministério Público, até ao final de março do próximo ano vão prescrever mais de 30 crimes (de um total de mais de 300). Parte deles, vai prescrever antes da data prevista para o início do julgamento.

Agenda pessoal de Ricardo Salgado foi um dos documentos apreendidos pelo Ministério Público na investigação ao “Universo Espírito Santo”.

“Este processo reveste-se de uma extensão e complexidade singular na vida judiciária portuguesa. Instaurado há cerca de dez anos e que entrou, apenas no final do ano passado de 2023, na fase de julgamento”, disse em janeiro a juíza presidente do coletivo Helena Susano, que enfrenta agora esta tarefa ingrata e que tentou, sem sucesso, pedir escusa do caso já este ano.

No total, o processo é composto por 204 volumes principais, ao que acrescem 118 apensos de arrestos, incidentes de oposição, 384 apensos bancários, 114 apensos de buscas com centenas de documentos. A acusação tem 3.552 folhas com 11.155 factos. O suporte informático que contém o armazenamento dos dados do processo contém quatro terabytes de informação.

O procurador José Ranito foi o líder da equipa do Departamento Central de Investigação e Ação Penal que durante quase seis anos se dedicou a investigar as responsabilidades criminais, juntando mais de duas centenas e meia de processos numa investigação principal. Uma investigação que levou alguns procuradores do MP, a meio do inquérito, a saírem da equipa. Ficaram então sete magistrados, apoiados por mais de duas dezenas e meia de profissionais. Só a Polícia Judiciária chegou a ter uma dezena de elementos em exclusivo nesta investigação, a que acresceram elementos da PSP, Banco de Portugal, Autoridade Tributária, Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, Núcleo de Assessoria Técnica da Procuradoria-Geral da República e Inspeção-Geral de Finanças.

Seis anos depois, a Julho de 2020, os 18 arguidos foram acusados de um total de 277 crimes. Ricardo Salgado foi acusado de 65 crimes (o número mais elevado entre todos os arguidos), entre os quais 29 crimes de burla qualificada e 12 crimes de corrupção ativa no setor privado. Além do ex-líder do BES, apenas mais dois membros da família Espírito Santo são acusados: José Manuel Espírito Santo e Manuel Fernando Espírito Santo. 12 pessoas singulares são acusadas pelo crime de associação criminosa. Corrupção ativa e passiva no setor privado, falsificação de documentos, infidelidade, manipulação de mercado, branqueamento e burla qualificada contra direitos patrimoniais de pessoas singulares e coletivas são os outros crimes imputados. A investigação apurou prejuízos com os crimes de 11,8 mil milhões de euros.

Passada a fase de investigação, foi a vez da fase de instrução, que começou há um ano, em agosto de 2023. O juiz de instrução, Pedro Correia, acabou a validar praticamente tudo o que estava na acusação. Ou seja, todos os arguidos vão a julgamentos nos exatos termos da acusação, à exceção de cinco. Desde então, o julgamento já teve, pelo menos, umas cinco datas prováveis para começar. No início de junho, o julgamento voltou a ser adiado para dia 15 de outubro, mas ainda sem certezas.

As razões do adiamento prendem-se com atrasos relativos à notificação de dois dos arguidos. “No dia de hoje (dia 2 de maio) chegou informação ao processo prestada pelo arguido Michel Creton de que foi notificado (da data do julgamento de 18 de junho), através dela, no dia 26 de abril”. E, acrescenta o mesmo comunicado, “chegou a comunicação ao processo, por parte das entidades competentes, de que não foi possível localizar e contactar o arguido Etienne Cadosch, na sua pessoa e na qualidade de legal representante da Eurofin Private Investments Office, S.A”, bem como “a informação de que já foi ultrapassado o constrangimento; ou seja, o arguido não esteve localizável nem contactável durante cerca de sessenta dias, mas já há notícia, agora que se inicia um novo prazo para contestar, da sua localização”.

Quais são então os processos que ainda decorrem contra Salgado?

O mais antigo caso: Monte Branco

O caso começou a ser investigado tendo por base factos identificados na investigação do caso BPN e descobertos por via da prevenção do branqueamento de capitais. O ano é o de 2011 e tratava-se de uma investigação do circuito financeiro entre gestores de fortunas suíços e os seus clientes portugueses, e a utilização de contas do suspeito Francisco Franco Canas, em particular junto do BPN IFI. No processo foram identificados fluxos financeiros, desde 2006, já com utilização da conta BPN IFI que atingiam cerca de 200 milhões de euros. O nome de Ricardo Salgado surge no meio deste processo por ter feito três correções à declaração de rendimentos de 2011, tendo pago mais 4,3 milhões de euros de IRS. Em dezembro de 2012, na sequência destas notícias, Salgado voluntariou-se para prestar esclarecimentos às autoridades.

Ao todo seriam mais de 10 mil os clientes de Michel Canals, incluindo alguns dos maiores empresários do país. Ricardo Salgado começou por ser apenas uma testemunha em 2012, e em 2013 a própria Procuradora-Geral da República referiu que Salgado não era suspeito e que nem havia provas de fraude fiscal. Mas no ano seguinte o Ministério Público atribuiu-lhe o estatuto de arguido. Mas, até hoje, não houve nenhuma acusação ao antigo banqueiro.

Agência do Banco Português de Negócios, Porto, 19 de janeiro de 2011.José Coelho/Lusa

Operação Marquês: o primeiro processo em que Salgado é efetivamente condenado

Em fevereiro deste ano, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) confirmou a condenação de oito anos por abuso de confiança aplicada a Ricardo Salgado – no âmbito da Operação Marquês – decidida pela Relação em maio de 2023. Espera-se agora saber se a pena de prisão a que foi condenado vai ser cumprida de forma efetiva, ou seja, num estabelecimento prisional.

Em janeiro, mais uma perícia independente confirmou que Ricardo Salgado sofre da doença. O relatório foi assinado por uma neurologista, um psiquiatra e uma consultora de psicologia do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF). “A doença de Alzheimer é causa mais provável do quadro clínico do arguido”, dizia a perícia médica de quase 50 páginas.

Em maio, o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) aumentou a pena de prisão efetiva – da primeira instância – de Ricardo Salgado de seis anos para oito anos pelos três crimes de abuso de confiança, que saíram da Operação Marquês. Em causa está o processo separado da Operação Marquês, no qual o antigo presidente do Banco Espírito Santo (BES) foi condenado na primeira instância, em março de 2022, a seis anos de prisão efetiva por três crimes de abuso de confiança.

O ex-banqueiro esteve acusado de 21 crimes no processo Operação Marquês mas, na decisão instrutória proferida em 9 de abril de 2021, o juiz Ivo Rosa deixou cair quase toda a acusação que era imputada ao arguido. Ricardo Salgado acabou pronunciado por apenas três crimes de abuso de confiança, devido a transferências de mais de 10 milhões de euros, para um julgamento em processo separado.

Operação Marquês

Caso EDP: o processo que condenou Salgado e Manuel Pinho em Junho

Em junho deste ano, Manuel Pinho foi condenado a 10 anos de prisão efetiva por corrupção, fraude fiscal e branqueamento. Ricardo Salgado foi condenado a seis anos e três meses por corrupção e branqueamento e Alexandra Pinho a quatro anos e oito meses de prisão.

No acórdão, de 700 páginas, a magistrada do processo EDP deu como provados “1030 factos” que considerou serem “imensos”, defendendo que o ex-ministro da Economia de Sócrates atuou sempre a favor dos interesses de Ricardo Salgado e não dos interesses públicos, usando “um cargo público, violando a lei (…) e mercadejou com o cargo, pondo em causa a confiança do cidadão no Governo.” Através de um “esquema previamente delineado”, violando deveres funcionais de ministro. A magistrada judicial disse ainda que os três arguidos “tinham conhecimento de que ao transferir montantes para a Suíça encobriram a origem dos montantes pagos a Manuel Pinho”, acrescentou a juíza. A tese apresentada por Manuel Pinho “não convenceu o tribunal” por ser “inverosímil, incoerente e ilógica”, fazendo parte de uma espécie de “realidade virtual”.

Quanto ao ex-líder do BES, o tribunal considerou que, apesar da doença de Alzheimer, Salgado mantém boa capacidade de expressão e interação social e raciocínio, pelo que não impede que seja arguido. Ricardo Salgado foi o único arguido a não estar presente na sala de tribunal.

Na lista dos factos provados, a juíza considerou que Pinho e a mulher abriram uma offshore no Panamá para ocultar dinheiro de forma ilícita e que o casal recebeu ilegalmente quase cinco milhões de euros (4 milhões e 943 mil euros). Referindo-se a Ricardo Salgado, a magistrada disse: “quando foi escolhido para ocupar o cargo de ministro, Ricardo Salgado prometeu a Pinho, para beneficiar indevidamente de forma direta e indireta os interesses do BES e GES, estar sempre disponível para receber 15 mil euros por mês”. O que “ocorreu mensalmente até junho de 2012. Pagamento de 500 mil euros a 11 de maio de 2005. Já Manuel Pinho era ministro há dois anos”.

Manuel Pinho, em prisão domiciliária desde dezembro de 2021, estava a ser julgado por corrupção passiva para ato ilícito, corrupção passiva, branqueamento e fraude fiscal. A sua mulher, Alexandra Pinho, respondia por branqueamento e fraude fiscal – em coautoria material com o marido e o ex-presidente do BES, Ricardo Salgado, respondia por corrupção ativa para ato ilícito, corrupção ativa e branqueamento.

Manuel Pinho, Ricardo Salgado

Saco azul do Grupo Espírito Santo

Em janeiro de 2024, o Ministério Público de Portugal deduziu uma nova acusação contra Ricardo Salgado pela prática de crimes de fraude fiscal qualificada, sendo imputados, em concurso efetivo, dois crimes de fraude fiscal qualificada. Os factos constantes da acusação reconduzem-se à auto-atribuição de honorários, através de entidades não residentes pertencentes ao Grupo Espírito Santo, mormente a Espírito Santo International, SA, ou seja, com recurso ao que foi comummente conhecido por saco azul do GES.

A acusação estima um prejuízo de cerca de 5,5 milhões de euros para os cofres do Estado português, tendo o Ministério Público deduzido o correspondente pedido de indemnização civil.

Processo BESA

No dia 15 de Julho deste ano, o tribunal decidiu levar Álvaro Sobrinho e Ricardo Salgado a julgamento por burla, abuso de confiança e branqueamento de capitais no âmbito do caso BESA.

Álvaro Sobrinho está acusado de 18 crimes de abuso de confiança agravado — cinco dos quais em coautoria — e cinco de branqueamento de capitais. Já ao ex-presidente do BES, Ricardo Salgado, foram imputados cinco crimes de abuso de confiança e um de burla qualificada, todos em coautoria.

Entre os arguidos estão ainda os ex-administradores Amílcar Morais Pires, visado por um crime de abuso de confiança e outro de burla; Hélder Bataglia, acusado de um crime de abuso de confiança; e Rui Silveira, que responde por um crime de burla.

Este processo baseia-se na concessão de financiamento pelo BES ao BESA, em linhas de crédito de Mercado Monetário Interbancário e em descoberto bancário. Por força desta atividade alegadamente criminosa, a 31 de julho de 2014, o BES encontrava-se exposto ao BESA no montante de perto de 4,8 mil milhões de euros.

As vantagens decorrentes da prática dos crimes indiciados neste inquérito contabilizam-se nos montantes globais de 5.048.178.856,09 euros e de 210.263.978,84 dólares norte-americanos, de acordo com a acusação do Ministério Público (MP) conhecida em julho de 2022.

Álvaro Sobrinho ouvido na Comissão Parlamentar de Inquérito à gestão do BES e do Grupo Espírito SantoANTÓNIO COTRIM/LUSA 18 Dezembro, 2014

Processo Corrupção no Brasil

Três dias depois da decisão instrutória do BESA, outra das investigações que envolvem o ex-líder do BES resultou na pronúncia por corrupção ativa relacionada com ex-responsáveis do Banco do Brasil. Neste processo autónomo foram ainda acusados elementos de entidades financeiras do GES (BES, ESBDUBAI), um elemento da área da gestão de fortunas (GESTAR/ICG), dois advogados e uma sociedade de advogados. O julgamento deverá ter início no final do ano.

Em causa – indica o DCIAP – estão linhas de crédito no Mercado Monetário Interbancário (MMI) e linhas de crédito no contexto do crédito documentário (cartas de crédito), estando ainda envolvidos o ex-vice-presidente do Banco do Brasil e fornecedores da petrolífera venezuelana PDVSA. Segundo a investigação do DCIAP, foram apuradas vantagens decorrentes da prática dos crimes indiciados no montante global de mais de 12 milhões de euros.

Caso BES/Venezuela

Em outubro do ano passado foi conhecida mais uma acusação contra Salgado. O ex-banqueiro foi acusado de corrupção e branqueamento de capitais no caso das ligações do Grupo Espírito Santo (GES) à Venezuela, que estavam a ser investigadas desde 2015. O arguido terá corrompido cerca de 20 administradores e funcionários públicos venezuelanos para obter contratos de compra de produtos financeiros do BES e do GES em troca do pagamento de cerca de 116 milhões de dólares. O julgamento deverá ter início em 2025.

Em causa estão Paulo Murta, antigo quadro da Gestar, Eurofin e ICG; Michel Ostertag, ligado também à Gestar e ICG; Humberto Coelho, ex-administrador da unidade do banco no Dubai; Jean-Luc Schneider, antigo administrador das sociedades ESFIL e Enterprises; e João Alexandre Silva, que liderou a sucursal do BES na Madeira e dirigiu o Departamento de International Business and Private Banking, todos acusados pelos mesmos crimes, além de associação criminosa.

Ao antigo presidente do GES são imputados 20 crimes de corrupção ativa com prejuízo do comércio internacional e 21 de branqueamento, em coautoria com mais cinco dos arguidos. “Pelo menos entre o final de 2008 e até julho de 2014, com a promessa de pagamento de vantagens em dinheiro, além dos vencimentos auferidos, e para que violassem os seus deveres profissionais, Ricardo Salgado comandou um grupo restrito, estável de sujeitos que se posicionou na interação com os demais para desenvolver soluções que satisfizessem fins criminosos”, lê-se na acusação.

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