“Portas giratórias” ensombram teste de Maria Luís Albuquerque no Parlamento Europeu
Audições vão decorrer entre 4 e 12 de novembro e vão ditar o momento de análise ao currículo e passado dos candidatos. "Portas giratórias" de Maria Luís podem dificultar escrutínio.
A cerca de um mês do arranque do processo de audições no Parlamento Europeu aos candidatos a integrar o colégio de comissários, espera-se que o escrutínio ao currículo e passado de Maria Luís Albuquerque no Parlamento Europeu seja tudo menos fácil — especialmente perante um Parlamento mais fragmentado do que na legislatura anterior, com uma maior representação política da direita radical.
Embora a avaliação só arranque em novembro, o Corporate Europe Observatory analisou os currículos dos 26 candidatos, tendo detetado conflitos de interesses em cinco comissários indigitados — um deles, o de Maria Luís Albuquerque.
Aos olhos da organização não-governamental sediada em Bruxelas, o currículo da portuguesa conta com “um historial preocupante de portas giratórias” e “conflito de interesses”, à semelhança do que tem sido defendido pelos eurodeputados do Bloco e do PCP. No artigo, a ONG recorda a passagem direta da antiga governante, em 2016, para Global Arrow, uma empresa de gestão de ativos responsável por gerir 300 milhões de euros em dívidas incobráveis do Banif.
A transição problemática do setor público para o privado não é novidade em Bruxelas. A própria presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, foi confrontada com a questão no dia em que apresentou a sua futura equipa, tendo desdramatizado as críticas.
“Maria Luís Albuquerque vai ser excelente no portefólio. Tem um vasta experiencia como ministra das Finanças e também no setor privado. Sabe as dificuldades tanto do campo político e como o do investimento privado. É uma pasta difícil, mas é a pessoa indicada”, respondeu Ursula von der Leyen. Mas não é só o currículo que deverá dificultar a audiência da ex-governante.
Num perfil da provável sucessora de Elisa Ferreira, publicado na última semana, o jornal online Politico nota também que Maria Luís Albuquerque, enquanto tutelava a pasta das Finanças em Portugal, foi responsável por supervisionar o plano de resgate do Banco Espírito Santo (BES), além de, desde setembro de 2022, ter assento no Conselho de Supervisão da subsidiária europeia do banco norte-americano Morgan Stanley.
Acresce ainda que, face às revelações da auditoria da Inspeção-Geral de Finanças (IGF) à privatização da TAP, em 2015 — que confirmou que o negócio foi financiado com dinheiro da própria companhia aérea –, é provável que os eurodeputados questionem Maria Luís Albuquerque sobre o seu papel neste processo, que decorreu quando ainda estava no Governo. A este propósito, a comissária proposta por Portugal foi, aliás, chamada com caráter de urgência para ser ouvida na Comissão de Economia, Obras Públicas e Habitação da Assembleia da República.
Para a ex-eurodeputada Maria Manuel Leitão Marques, é “muito provável” que, se passar no crivo da JURI, os membros das comissões parlamentares responsáveis pela audição questionem a candidata portuguesa acerca das “portas giratórias” e dos eventuais conflitos de interesse referidos.
“Não vão deixar passar, sobretudo porque ela ficou com a pasta dos Serviços Financeiros. Não sei se os eventuais conflitos de interesses são impeditivos [para o exercício do cargo], mas seguramente que há-de haver alguma pergunta”, considerou, em declarações ao ECO, a socialista que, em 2019, estava sentada na comissão do Mercado Interno que chumbou o nome proposto pelo Presidente francês, Emmanuel Macron, para a Comissão Europeia.
Ainda que alguns eurodeputados possam considerar negativos alguns aspetos do currículo profissional e político de Maria Luís Albuquerque, em especial a experiência no setor privado, esta pode constituir, por outro lado, uma vantagem — o que a própria Ursula von der Leyen admitiu.
Henrique Burnay, consultor em Assuntos Europeus, recorda que a comissária indigitada “não vai assumir funções num regulador que supervisione as ações que tenha desenvolvido anteriormente”, mas vai, sim, “liderar uma pasta política, que propõe mas não decide legislação, num setor que, por experiência no público — enquanto ministra das Finanças durante a troika, e precisamente por questões associadas ao sistema monetário e financeiro — e no privado, conhece bem“.
Aliás, outros eurodeputados poderão considerar que, por causa dessa experiência, Albuquerque “tem a obrigação de saber como atrair os ditos fundos para investir na União Europeia”, uma das tarefas que terá em mãos durante o seu mandato como comissária se receber ‘luz verde’ do Parlamento Europeu, prevê o também professor no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa (IEP-Católica).
Mesmo no que toca ao papel da candidata nos processos do BES e da TAP, que Henrique Burnay não vê ter “qualquer implicação” para as tarefas que terá de desempenhar enquanto comissária, o consultor da Eupportunity encontra uma “perspetiva positiva”: os eurodeputados podem considerar que “há conhecimento e experiência por ter lidado com as consequências da aplicação das regras sobre a atividade, supervisão e resolução do sistema bancário”.
Henrique Burnay crê, por isso, que “não haverá um conflito de interesse objetivo” no caso de Maria Luís Albuquerque; caso contrário, “não teria aceitado o portefólio, uma vez que os pontos que se podiam suscitar são públicos”. “Penso que não haverá grandes problemas. Se ela passar na JURI, dificilmente não passa na audição”, concorda Maria Manuel Leitão Marques, ressalvando, porém, que “há sempre surpresas”.
Maria Luís Albuquerque não vai assumir funções num regulador que supervisione as ações que tenha desenvolvido anteriormente. Vai liderar uma pasta política, que propõe mas não decide legislação, num setor que, por experiência no público e no privado, conhece bem. Não tenho dúvidas que alguns deputados considerarão que ter uma passagem no privado é um aspeto negativo. Mas não me parece que possa ser considerado um conflito de interesses objetivo. Outros dirão que tem obrigação de saber como se atrai os ditos fundos para investir na Europa, que é parte do seu mandato.
Ainda assim, como a função de comissária não é compatível com o exercício em simultâneo de qualquer outra atividade, Maria Luís Albuquerque deverá ter de abandonar os seus cargos no Morgan Stanley Europe, no Horizon Equity Partners e no INDEG-ISCTE — os únicos sítios em que se mantém em funções atualmente, segundo o currículo que entregou em Bruxelas e que está publicado no site do Parlamento Europeu.
Albuquerque deve ser questionada sobre planos para o mandato
As audições de confirmação aos comissários indigitados estão marcadas para novembro. Ao que o ECO apurou, na reunião da Conferência dos Presidentes (que junta os líderes dos grupos políticos e a presidente do Parlamento Europeu, Roberta Metsola), que decorreu esta quarta-feira, foram apresentados dois calendários — um recomendável e outro alternativo. O primeiro foi aprovado. Assim, as audições no Parlamento Europeu vão decorrer entre 4 e 12 de novembro para que a nova Comissão Europeia entre em funções, no cenário mais otimista, a 1 de dezembro (um mês mais tarde do que preveem os tratados).
Antes disso, os comités deverão submeter ao Parlamento Europeu e à Comissão Europeia um guião com as perguntas escritas aos aspirantes a comissários e responder ao escrutínio do JURI. Mesmo perante um risco de chumbo de candidatos, este calendário prevê que o processo de audições fique concluído a 21 de novembro.
Maria Luís Albuquerque será escrutinada pela Comissão dos Assuntos Económicos e Monetários (ECON) do Parlamento Europeu, da qual fazem parte os eurodeputados Lídia Pereira (PSD), Francisco Assis e Carla Tavares (ambos PS). Além do ECON, serão convidados a comparecer também na audição os eurodeputados da Comissão do Mercado Interno e da Proteção dos Consumidores (IMCO) — do qual faz parte Sebastião Bugalho (AD) — a Comissão de Liberdades Cívicas, Justiça e Assuntos Internos (LIBE) — do qual integra Pedro Cunha e Ana Miguel Pedro (PSD) e António Tânger-Corrêa (Chega), como membros suplentes.
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Sobre este processo, que serve como uma espécie de “moção de confiança” aos comissários indigitados, Henrique Burnay aponta que “não é costume, e não deve ser, os eurodeputados tornarem a audição numa sessão de política nacional” — realça, aliás, que “é bastante mal visto”.
A Maria Luís Albuquerque, em particular, o consultor de Assuntos Europeus considera provável que seja questionada “quanto à sua visão sobre o sistema bancário e as regras de supervisão, regulação e requisitos de capitais a que está sujeito e como as vê”. “Tal como a sua experiência com fundos de investimento pode ser criticada, [também] pode ser usada para saber o que acredita que pode ser feito para que haja maior mobilização das poupanças europeias em investimento europeu, que é o ponto central do seu mandato”, antecipa.
Do lado da preparação dos comissários indigitados, Maria Manuel Leitão Marques recorda que é costume, antes das audições, os eurodeputados fazerem “briefings” com os candidatos ao Executivo comunitário para os informar sobre o que esperam do mandato futuro. “Eles sabem qual foi a agenda anterior da área e sabem a agenda futura. Vão muito treinados para [questões sobre] o programa da legislatura, mesmo aqueles que receberam pastas em que nunca trabalharam antes“, afirma a ex-eurodeputada do PS.
Esses briefings são importantes, também, para que os nomeados consigam alcançar uma votação maioritária de dois terços dos eurodeputados das comissões, sublinha também a socialista, notando que, “se só falarem para a extrema-esquerda ou para a extrema-direita, provavelmente não vão contar com os votos dos outros grupos políticos”.
As audições — cuja duração se estende, por norma, entre três a quatro horas — podem envolver mais do que uma comissão parlamentar, dependendo se a pasta do comissário indigitado é da competência de um ou mais comités, e só são declaradas terminadas depois de a Conferência dos Presidentes analisar as cartas de avaliação e a recomendação dos presidentes das comissões parlamentares.
Contudo, o “exame” à idoneidade dos comissários indigitados começa ainda antes das audições de confirmação, com a análise da Comissão dos Assuntos Jurídicos às declarações de interesses entregues pelos candidatos, que deverá arrancar na quinta-feira e ser concluída nas 48 horas seguintes. Contrariamente às comissões responsáveis pelas audições, a JURI não tem poder de investigação próprio e só pode avaliar possíveis conflitos de interesse mediante a documentação que tem em mãos. No máximo, pode solicitar informações adicionais por escrito, convidar os comissários designados para questionar sobre as dúvidas em causa ou até emitir recomendações para resolver eventuais conflitos.
Eles sabem qual foi a agenda anterior da área, sabem a agenda futura. Vão muito treinados para o programa da legislatura, mesmo aqueles que receberam pastas em que nunca trabalharam antes.
Se se verificar a existência de conflitos de interesse financeiros e não forem encontradas soluções, como aconteceu aos primeiros nomes indicados pela Roménia e a Hungria em 2019, a JURI conclui que o comissário indigitado não pode exercer as suas funções e este nem sequer chega à fase da audição. No caso de não existirem conflitos de interesses ou de estes serem solucionados, a Comissão dos Assuntos Jurídicos tem de confirmar essa ausência em carta, a ser distribuída às comissões relevantes antes da audição presencial.
O processo só termina com a apresentação do Colégio de Comissários e das prioridades políticas para a próxima legislatura de cinco anos numa sessão plenária em Estrasburgo, na qual a equipa de von der Leyen precisa de ser aprovada por maioria simples dos 720 eurodeputados.
Há historial de chumbo?
No final, nem é certo que todos os candidatos recebam um parecer favorável para integrar o executivo comunitário na próxima legislatura, uma vez que este é um dos processos, no seio das instituições da União Europeia, em que os 720 eurodeputados têm mais poder.
O historial é de que pelo menos um dos nomes indicados pelos Estados-membros é rejeitado, seja na fase de análise da documentação pela Comissão dos Assuntos Jurídicos (JURI) ou na audição ao comissário indigitado.
Em 2019, por exemplo, houve três candidatos chumbados: o húngaro László Trócsányi e a romena Rovana Plumb, ambos pela JURI; e a francesa Sylvie Goulard, que recebeu um parecer negativo após a audição realizada pelas comissões parlamentares do Mercado Interno e da Indústria. Os respetivos países tiveram então de indicar novos nomes — Olivér Várhelyi (Hungria), Adina Vălean (Roménia) e Thierry Breton (França).
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