Cativações juntam esquerda e direita na pressão a Centeno
Da esquerda à direita, o ministro das Finanças foi criticado pelas cativações aplicadas no OE2016, embora as críticas sejam diferentes. O ECO selecionou os principais argumentos e descodificou-os.
O ditado diz que é difícil agradar a gregos e a troianos. Mário Centeno, ministro das Finanças, conseguiu desagradar aos dois: as cativações aplicadas no Orçamento de 2016, que deixaram 942,7 milhões de euros de despesa aprovada por executar, estão a dar gás à oposição — da direita, à esquerda parlamentar.
Depois de uma audição na comissão de orçamento e finanças em que Centeno foi pouco claro sobre as cativações aplicadas em 2016, o PSD encontrou argumentos para exigir um debate no plenário sobre transparência na gestão da despesa pública. Mas não foi só a direita política que pressionou o ministro. Também o Bloco de Esquerda e o PCP criticaram Centeno, embora com argumentos quase opostos.
Perante a pressão, o ministro das Finanças explicou o funcionamento das cativações e apresentou argumentos para contestar a ideia de falta de transparência. Mas quando um debate político fica tomado por termos como “cativações” ou “receitas próprias”, com um lado a argumentar que cativações são cortes e o outro a ripostar que não há cortes quando a despesa cresce, a confusão instala-se. O ECO selecionou alguns argumentos deixados durante o debate de sexta-feira e explica-os.
1 – As cativações são cortes?
“Pode abanar a cabeça, mas os números falam por cima da vossa propaganda”, acusou o deputado António Leitão Amaro, do PSD. “Os portugueses sentiram [as cativações] nas suas vidas,” defendeu, “pagaram com as suas vidas,” acusou, numa referência implícita ao incêndio de Pedrógão Grande, onde 64 pessoas morreram.
“O máximo que podem dizer é que [as despesas] não aumentaram o suficiente,” respondeu João Galamba, deputado socialista, criticando a utilização do incêndio como “arma de arremesso político.” As cativações incidem sobre a parte da despesa que excede um determinado crescimento, por isso “nunca poderiam estar associadas à redução da despesa efetiva em 2016,” disse o ministro Mário Centeno.
Quem tem razão? Depende do ponto de vista. As cativações correspondem à retenção de uma parte da despesa orçamentada, que fica nas mãos do ministro das Finanças e dependente da sua aprovação para ser executada. Ora, quando não são totalmente libertadas, as cativações representam cortes efetivos face aos gastos que estavam previstos e já previamente aprovados pela Assembleia da República.
[As cativações] têm vindo a limitar a despesa pública desde ‘o dia um’. Apesar de controlarem diretamente a despesa, podem também ser apertadas para compensar uma coleta fiscal mais baixa.
Foi por isso que foram usadas como medida de contingência para convencer a troika de que, apesar de a receita fiscal estar muito abaixo do projetado, o orçamento não iria derrapar. Vale a pena reler um excerto do relatório sobre medidas efetivas enviado à Comissão Europeia, em outubro de 2016, em que Centeno mostrava como iria usar as cativações para reduzir a despesa prevista:
“[As cativações] são o instrumento considerado apropriado para monitorar a execução orçamental. (…) Têm vindo a limitar a despesa pública desde ‘o dia um’. Apesar de controlarem diretamente a despesa, podem também ser apertadas para compensar uma coleta fiscal mais baixa,” explicou Centeno.
E frisou que “podem ser entendidas como medidas de contingência” e que “os serviços públicos estavam claramente alertados para elas desde que o Orçamento foi desenhado e o impacto que iriam gerar no perfil de despesa.” Depois, adiantou que do valor de cativações inicialmente previsto no Orçamento, que à data identificou como cerca de 1.500 milhões de euros (a Conta Geral do Estado apontou agora para 1.733 milhões), “445 milhões foram congelados permanentemente.”
Contudo, estes factos não invalidam que, ainda assim, a despesa executada em 2016 tenha acabado por ser superior à de 2015 — o que fundamenta o argumento socialista de que as cativações não resultaram em cortes efetivos de despesa, face ao executado. Sob este ponto de vista, as cativações serviram para conter o crescimento da despesa, ajustando-a ao nível de receita arrecadada e impedindo uma derrapagem orçamental — o risco para o qual a Comissão estava a alertar.
2 – O Governo foi além do necessário no défice?
“O Orçamento executado em 2016 não é o Orçamento que nós aprovámos”, acusou Mariana Mortágua, deputada do Bloco de Esquerda. A bloquista reconheceu que a despesa cresceu, mas queixou-se que devia ter crescido mais e que o Governo apertou a despesa para agradar à Comissão Europeia.
Verdade? É certo que o défice acabou por ficar abaixo da meta autorizada por Bruxelas. O défice de 2016 foi de 2,06%, quando a Comissão, perante o ritmo fraco de crescimento da economia no primeiro semestre de 2016, chegou a flexibilizar a meta para 2,5% do PIB. Por isso é correto dizer que o Governo superou o objetivo e que poderia ter libertado mais despesa, mesmo sem ter receita para pagá-la — teria assumido um défice mais elevado.
"O Orçamento executado em 2016 não é o Orçamento que nós aprovámos.”
Mas também é verdade que só no final do ano, quando a atividade económica recuperou acima das expectativas, é que ficou claro que o défice seria cumprido. E que até os indicadores económicos melhorarem a pressão da Comissão para apertar a despesa era intensa. Mais: face à meta inicial do próprio Governo (2,2%, o objetivo do Orçamento que a esquerda validou no Parlamento), o resultado do défice não foi assim tão diferente.
3 – Dois terços dos cativos finais dependiam de receitas próprias. Isso faz diferença?
“Dois terços [dos cativos finais] resultam da evolução de receitas próprias,” argumentou Mário Centeno. “Nunca esta operação teria impacto no défice porque a receita está associada à despesa,” somou ainda o ministro.
Traduzindo, o ministro das Finanças revelou que a maior parte das cativações que ficaram por libertar correspondiam a despesa que seria paga por receitas próprias dos serviços — e não pelas receitas gerais do Estado, isto é, pelos impostos. Ou seja: os serviços conseguiram menos receita do que a que tinham estimado e, por isso mesmo, não tiveram autorização para executar o valor de despesa inicialmente planeado.
Este argumento tem duas consequências. Primeiro, transfere, em parte, a responsabilidade da decisão de permitir menos despesa para os próprios dirigentes dos serviços, retirando-a dos ombros do ministro das Finanças. Segundo, mostra que a despesa em causa só seria autorizada se houvesse receita e que, nesse caso, o défice seria precisamente o mesmo porque uma anularia a outra.
Contudo, vale a pena notar que o Governo não controla a receita da mesma forma que controla a despesa: ter menos receita do que o projetado foi um facto. Depois, coube a Centeno decidir se a despesa prevista seria inviabilizada — para respeitar a meta do défice — ou se seria, ainda assim, executada. Se o ministro tivesse decidido libertar mais despesa, o debate desta sexta-feira não teria sido sobre cativações, mas antes sobre derrapagem orçamental.
4 – Partidos querem saber que gastos foram cancelados. É possível?
Foi também uma pergunta repetida da esquerda à direita: “Importa saber quais os gastos que não se fizeram,” frisou José Luís Ferreira, deputado dos Verdes. Mas também Luís Montenegro, do PSD, pediu ao Governo que clarificasse os cortes que fez, tal como Mariana Mortágua, do BE, pediu a Centeno que mostrasse como é que os cortes aplicados no Ministério da Saúde ou da Educação não afetaram os serviços.
A pergunta é pertinente: trata-se de saber, com exatidão, quais foram os pedidos de libertação de cativos que chegaram à mesa do ministro das Finanças, mas que foram recusados. Contudo, esta informação não está sistematizada — nem é obrigatório que esteja.
A Conta Geral do Estado mostra os valores do Orçamento do Estado de 2016 que foram aprovados pela Assembleia da República e que foram libertados e a respetiva justificação. Também mostra os valores que ficaram definitivamente retidos. Mas, por lei, não tem de apresentar os pedidos não autorizados.
5 – É possível saber os cativos já libertados este ano?
“Vamos ver nesta assembleia quem está a favor da transparência,” desafiou o deputado João Almeida, do CDS-PP. Os deputados criticaram a falta de transparência da utilização dos cativos. É verdade que o valor inicial destes cativos resulta da lei do Orçamento do Estado que é aprovada na Assembleia da República, contudo, a gestão que é feita pelo ministro das Finanças, ao longo do ano, é pouco acompanhada.
Vamos ver nesta assembleia quem está a favor da transparência.
Os dados são publicados anualmente na Conta Geral do Estado, mas esta só está disponível cerca de seis meses depois de terminado o ano — para além de não ser um documento fácil de consultar, já que nem todas as óticas de análise desta informação estão igualmente trabalhadas no corpo do relatório.
Por isso, João Almeida apresentou durante o debate uma proposta para que a Direção-geral do Orçamento passe a disponibilizar, mensalmente, um ponto de situação dos cativos na síntese de execução orçamental.
6 – Retificativo ou cativações. Qual é a diferença?
“As cativações são o contrário dos Orçamentos Retificativos,” argumentou Mário Centeno. “Não há Orçamentos Retificativos mas há muitas retificações,” acusou o deputado do PSD, Luís Montenegro.
Qual é a diferença? As cativações são uma medida de gestão da execução orçamental que permitem, até determinado ponto, evitar Orçamentos Retificativos. Sempre que a receita fica abaixo da despesa, se o ministro das Finanças não tiver o controlo sobre nenhuma parte do Orçamento distribuído aos serviços, dificilmente consegue evitar que os gastos continuem a ser feitos como se existisse receita para pagá-los.
No caso de 2016, o Governo garantiu em outubro à Comissão Europeia que as cativações foram desenhadas precisamente com este objetivo: a meta do défice estava calculada assumindo que seriam libertadas as verbas. Mas se faltasse receita, a despesa não seria autorizada na mesma medida, evitando-se a derrapagem orçamental.
É por isso que as cativações — até ao debate desta semana — eram vistas como uma boa medida de gestão orçamental. Retiram também o estímulo aos serviços, por exemplo, para empolarem as receitas próprias só para conseguirem viabilizar a aprovação de um orçamento de despesa superior.
"Não há Orçamentos Retificativos mas há muitas retificações.”
Já os Orçamentos Retificativos servem precisamente para quando os tetos de despesa são furados. Não se trata aqui de gastar tanto quanto o inicialmente previsto (independentemente de haver ou não receita suficiente para fazer face à despesa) mas sim de ultrapassar os valores inicialmente orçamentados. É quando isso acontece que os governos têm de pedir autorização ao Parlamento para subir os limites da despesa e, por arrasto, o limite de endividamento adicional da República.
Quando isto acontece, o Governo fica dependente da maioria que encontrar na Assembleia da República e a carga política negativa é muito elevada — como demonstrou a polémica de 2009 sobre os Orçamentos Retificativos, Redistributivos e Suplementares do então ministro das Finanças, Fernando Teixeira dos Santos.
Claro que se um Orçamento for construído com uma margem de despesa maior — que depois se controla através dos cativos — fica mais bem defendido da eventualidade de furar os limites inicialmente aprovados pelos deputados.
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