Uma velha anedota
Esta crónica é sobre um casamento que deu para o torto e sobre as tortas que sobraram.
Um português, um inglês e um francês vieram à Índia (lembram-se desta anedota?). E apesar disto, nessa altura, já ter uns bons milhões de indianos, marajás e tudo mais, os ocidentais, versadíssimos na cena cultural e religiosa destes povos ancestrais, acharam que ser donos disto tudo não era estranho demais.
Eu sei, não tem lá grande piada.
Obviamente que a coisa não podia dar bom resultado pois, como qualquer mulher sabe, se já é difícil governar a própria casa, o que fará a dos outros. Mas nessa altura, as mulheres também não tinham grande voto na matéria…
Então os portugueses ficaram com Goa, Damão e Diu, os ingleses com tudo o que estava à mão e os franceses com um punhado de territórios a que vieram a chamar de Pondicherry.
Esta crónica é sobre um casamento que deu para o torto e sobre as tortas que sobraram. A longo prazo, os bolos batem as balas e as baguetes baixam bandeiras. E no fim, a única conquista verdadeiramente eficaz é a gastronómica. À mesa deixamo-nos conquistar com prazer.
Ora, Pondicherry é uma belíssima cidade à beira mar, com o típico urbanismo racista que fez as delícias coloniais dos últimos 500 anos. Há literalmente uma “White Town” de belíssimos quarteirões parisienses separada da “Indian Town”, por um canal de água e séculos de submissão. Quando o “pai” francês saiu de casa, foi a mãe Índia que ficou com os tarecos arquitetónicos, pela ligeira dificuldade em movimentá-los. Isso e mais os bolos, que entretanto já tinha aprendido a fazer.
Num país de casamentos arranjados, este só foi conveniente para um dos lados mas como boa divorciada, Pondicherry mudou de nome (Puducherry) e decidiu apostar num segundo casamento, desta vez, místico e bastante conveniente para todos.
Entra em cena o casal mais famoso do quartier: o guru, filósofo, yogi, freedom fighter Sri Aurobindo e uma francesa chamada Blanche Rachel.
Quando veio viver para Pondicherry com o segundo marido, mal sonhava Blanche que ia tornar-se numa das mulheres mais venerada da Índia. A primeira coisa a ir à vida foi o nome Blanche (até porque de brancos já estava o país farto) e foi com o apelido de solteira que Mirra Alfassa se tornou conhecida. Mal imaginava Mirra que, apesar de nunca chegar a ter filhos, ia ser elevada a Mãe (sim, aqui é o título mais elevado que há) e se ia tornar conselheira de figuras como o Dalai Lama ou Indira Gandhi!
Mas Blanche sonhava e imaginava muita coisa e, na Índia, sem ter de lutar ou conquistar ninguém, conseguiu fundar o Ashram de Sri Aurobindo em honra do seu mestre (atracção principal de Puducherry) e criar do zero uma cidade inteira: Auroville.
Ora, para quem nunca ouviu falar de Auroville, só tem que pensar no oposto do urbanismo colonial: uma cidade concêntrica que cresce à volta do incrível Matrimandir (um templo forrado a ouro para meditação pessoal). Uma cidade universal, onde vivem cerca de 2500 pessoas de 50 nacionalidades diferentes. Uma comunidade igualitária que pretende a paz, a cooperação e a união humana. Sim, uma utopia com 50 anos de vida, patrocinada pelo Governo.
Se uma mulher francesa conseguiu fazer mais por Puducherry que 280 anos de ocupação francesa só o tempo confirmará. A verdade é que hoje em dia, o Ashram e Auroville trazem mais turismo à cidade que qualquer sobremesa.
Mas se não estiverem interessados nos milagres do auto-conhecimento ou num futuro mais harmonioso, não desesperem. Há cafés boémios, hotéis glamorosos e restaurantes chiques suficientes para sermos mundanamente felizes para todo o sempre, enquanto perdermos tempo a imaginar como estaria agora o português, o inglês e o francês se tivessem sido colonizados pelos indianos. Isso sim, tinha muita piada!
Crónicas indianas são impressões, detalhes e apontamentos de viagem da autora e viajante Mami Pereira. Durante quatro meses, o ECO publica as melhores histórias da viagem à Índia. Pode ir acompanhando todos os passos aqui e aqui.
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