Fim do bónus nas longas carreiras: qual é a base legal?
A polémica já levou os partidos a pedir esclarecimentos. Afinal, há fundamento legal para a Segurança Social retirar as bonificações, ao mesmo tempo que elimina cortes? As opiniões divergem.
As pensões antecipadas atribuídas a quem já tem carreiras contributivas muito longas estão a ser calculadas sem cortes, como prometido, mas ao mesmo tempo também não têm em conta a bonificação por muitos anos de descontos. A polémica surgiu na sexta-feira com uma notícia do Jornal de Negócios, e suscitou reações.
Mesmo entre os partidos que apoiam o Governo, o PCP já apontou para uma “aplicação desconforme do regime legal”. Por seu turno, o Bloco de Esquerda entende que o Governo “deve clarificar dúvidas interpretativas”, embora frisando que está “garantido” o princípio do novo regime — permitir que uma pessoa “que trabalha desde criança” possa “reformar-se sem penalizações e com a reforma por inteiro”. PSD e CDS também dirigiram perguntas ao Governo.
O Governo sempre anunciou o fim das penalizações para quem tem carreiras muito longas, mas a questão das bonificações não foi referida, escrevia o Negócios na sexta-feira, questionando já a base legal para a aplicação desta norma.
O ECO sabe que, na leitura do Governo, a legislação exclui efetivamente a aplicação de cortes e também de bonificações no caso destas pensões. Com o decreto-lei publicado em outubro do ano passado, o fator de sustentabilidade e o corte de 0,5% por cada mês de antecipação deixou de incidir sobre as pensões de trabalhadores com 60 ou mais anos de idade e pelo menos 48 anos de carreira, bem como daqueles que contem 46 anos de contribuições e que tenham começado a trabalhar com 14 ou menos anos. Em concreto, o corte de 0,5% está previsto no artigo 36.º, que também prevê forma de mitigar a redução (no número 5). E é o número 8 que indica que o artigo 36.º não se aplica às pensões dos beneficiários referidos.
Mais à frente, o artigo 38.º já antes instituía um regime de bonificação para quem pode pedir a pensão antecipada sem redução e não o faça — a bonificação é de 0,65% por cada mês, entre o mês em que se verificaram essas condições e a idade normal de reforma ou a data em que passa à pensão (se inferior). Logo no número 1, este artigo 38.º refere então que a pensão de velhice “dos beneficiários que, pela observância da regra prevista no n.º 5 do artigo 36.º, possam requerer pensão de velhice antecipada sem redução e não o façam é, ainda, bonificado”, estando em causa o bónus de 0,65%. Remete então para um número do artigo 36.º que, por sua vez, exclui carreiras muito longas. O ECO sabe que é este cruzamento de normas que faz o Governo concluir que as bonificações não se aplicam a estas pessoas.
Esta leitura não é consensual. A legalidade dos procedimentos já tinha sido posta em causa por Filomena Salgado de Oliveira, ao Negócios. Em declarações ao ECO, a especialista da FSO Consultores entende que aquela leitura é “muito rebuscada”. “Se o legislador quisesse restringir” a aplicação da bonificação, devia então ter previsto essa exclusão, tal como fez no caso do fator de sustentabilidade e da penalização de 0,5%, defende.
Para Paula Caldeira Dutschmann, especialista em Direito Laboral da Miranda, “não resulta claro da lei” que estas pessoas “percam o direito às bonificações”. A especialista entende também que, sendo esta a intenção, o legislador devia ter feito esta exclusão específica no artigo 38.º: “criava aqui alguma certeza jurídica, as pessoas saberiam com o que podiam contar de forma clara”. Não tendo sido prevista esta exclusão, “cria pelo menos a expectativa às pessoas de que as mesmas se manterão”, acrescenta. Mais difícil é dizer se existe efetivamente uma base legal para o procedimento adotado: “pode haver outros fatores, em matérias de Segurança Social cada caso é um caso”, diz.
Já Sofia Mateus, sócia do Direito do Trabalho da CMS Rui Pena & Arnaut, também cruza os artigos já referidos e entende que, face à atual redação, o que se entende é que “a Segurança Social tem fundamentos para interpretar que não se aplicam as bonificações ao cálculo das pensões dos beneficiários com carreiras muito longas”, no âmbito do novo regime.
O Governo já veio dizer que, caso as alterações mais recentes acabem por penalizar os trabalhadores, será aplicada, de forma automática, o regime mais favorável: neste caso é atribuída a bonificação mas também é calculado o corte. Serão pessoas que, mesmo com carreiras longas, já estão mais perto da idade de reforma, notou Vieira da Silva, frisando que estes casos correspondem apenas a cerca de 1% dos 9.714 requerimentos com intenção de deferimento. Porém, Filomena Salgado Oliveira aponta para casos em que o regime mais favorável só foi aplicado depois de reclamação. Já o PCP entende que “nada autoriza o Governo a, de forma oficiosa, escolher o regime mais benéfico para o trabalhador, considerando que não existem dois regimes de acesso à reforma antecipada por flexibilização, mas apenas um”. A ideia consta de uma pergunta dos comunistas ao Governo.
Bagão Félix: “Não é que seja favorável, mas não me repugna”
O ex-ministro da Segurança Social Bagão Félix defende que a lei “tem de ser muito clara”, mas, sem querer entrar na discussão sobre a base legal dos procedimentos, nota que a solução não o “repugna”. “Do ponto de vista da medida como ela está a ser interpretada pelo Governo, a minha posição, não é que seja favorável, mas não me repugna”, diz.
Ao eliminar o corte do fator de sustentabilidade e a penalização de 0,5%, o Governo avança já com “duas vantagens suficientemente grandes”, acrescenta o ex-ministro. Mas também admite que haja aqui um problema “em termos de expectativas”. E se esta discussão “tivesse sido desde o início cristalina e transparente”, deixando claro que o beneficiário “tem estas duas vantagens mas não pode ter aquela, porque no fundo isto era uma balança”, “provavelmente” o problema não teria sido levantado, nota. “Se desde o princípio a solução fosse aquela não me repugnaria, havendo sempre a possibilidade, casos raríssimos creio eu, em que, havendo prejuízo com esta nova lei, haja a possibilidade de optar”, conclui.
Para tentar perceber o efeito desta interpretação dos serviços no valor das pensões, a FSO Consultores elaborou um conjunto de simulações (também referidas pelo Negócios), tendo por base o fator de sustentabilidade aplicado em 2017 (13,88% na altura). Para quem contava acumular o fim dos cortes com a bonificação, as regras em vigor desde outubro têm um impacto globalmente negativo (última coluna), deixando de fora o primeiro caso, em que não há qualquer efeito.
Comparando já os dois conjuntos de regras (as que começaram a produzir efeitos em outubro e as que vêm de trás), as simulações mostram que há quem fique a ganhar e a perder. A não aplicação das bonificações nas longas carreiras levanta ainda outra dúvida à FSO: quem já atingiu 65 anos e conta pelo menos 48 anos de carreira tem garantida uma pensão bonificada (o que pode ter impacto nos dois últimos exemplos do quadro)? Isto tendo em conta que esta pessoa já atingiu aquela que é a sua idade normal de reforma (65 anos) e já cumpriu períodos que permitiam abandonar mais cedo o mercado de trabalho sem penalização, adianta.
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