Imagens dos interrogatórios da Operação Marquês: pode o interesse público justificar a sua divulgação?

Vídeos de interrogatórios a José Sócrates e a outros arguidos no âmbito da Operação Marquês foram divulgados numa reportagem da SIC. Agora, a sua legitimidade tem estado em cima da mesa. Será crime?

Depois de a 15 e a 16 de abril vídeos de interrogatórios a José Sócrates e a outros arguidos no âmbito da Operação Marquês terem sido divulgados em reportagem pela SIC, muito se tem discutido no espaço público sobre se a sua divulgação é ou não legítima, formando dois blocos de opinião distintos: o do lado dos jornalistas e o do lado da Justiça.

Será que, não sendo já segredo de justiça, o interesse público fala mais alto e é justificação válida para a divulgação destas imagens? Ou, por ainda assim não ter tido a autorização dos visados, a sua divulgação pode constituir crime e desobediência à lei?

O ECO organizou uma cronologia dos acontecimentos desde a emissão destas imagens nas estações televisivas e junta a opinião dividida de jornalistas e de figuras do meio jurídico para tentar perceber onde afinal recai o ónus da questão.

Jornalismo versus Justiça

  • A 17 de abril, a dupla de comentadores da Renascença, Francisco Assis e João Taborda da Gama, afirmaram em debate que a divulgação destas imagens é “uma situação lamentável” e que “é pornografia judiciária em horário nobre. É uma vergonha“, respetivamente.
  • No mesmo dia, o Ministério Público (MP) anunciou que instaurou a abertura de um inquérito para investigar a divulgação dos vídeos dos interrogatórios, garantindo que embora o processo em causa já não se encontre em segredo de justiça, “a divulgação destes registos está proibida“. Em resposta à Lusa, o MP refere que essa proibição consta “nos termos do artigo 88.º n.º 2 do Código de Processo Penal, incorrendo, quem assim proceder, num crime de desobediência (artigo 348.º do Código Penal)”. Ou seja, a divulgação só será admitida com a expressa concordância dos intervenientes: arguidos e magistrados.

    Muito se tem discutido no espaço público sobre se a divulgação de imagens dos interrogatórios da Operação Marquês é ou não legítima, formando dois blocos de opinião distintos: o do lado dos jornalistas e o do lado da Justiça.Lídia Leão / ECO
  • A 18 de abril, a Ordem dos Advogados (OA) dava conta de um comunicado onde repudiava a divulgação destes vídeos na reportagem da SIC, admitindo que estas peças “têm como exclusivo objeto matéria sujeita a investigação em dois dos mais mediáticos casos da investigação criminal portuguesa atual, ambos ainda em curso, um em fase de inquérito e outro a aguardar o início da fase de instrução: os chamados Caso Operação Marquês e o Inquérito à queda do Universo BES”.

A divulgação destas imagens contribui para julgamentos populares totalmente desaconselháveis em sociedades democráticas saudáveis, ausentes de um contraditório capaz de formar uma opinião crítica, antes potencia a conflitualidade social em prejuízo da paz desejada, e abala os fundamentos do Estado de Direito Democrático.

Comunicado da OA

Assinado pelo bastonário da OA, Guilherme Figueiredo, e pela Comissão de Direitos Humanos da mesma Ordem, o comunicado admite que embora a liberdade de imprensa seja um direito consagrado, esta está “circunscrita por limites impostos por outros interesses e bens jurídicos de igual ou superior dignidade constitucional, como o sejam os direitos fundamentais dos sujeitos do processo penal, maxime dos arguidos, as pessoas que se encontram como visados pela investigação criminal e que, só por isso, já se encontram na posição mais fraca da contenda com o poder penal do Estado”, frisam, salientando que “é manifesto que a situação criada levou a que fossem tornadas do conhecimento público apenas “partes” de interrogatórios e de “escutas”, ademais como suporte de prova da narrativa jornalística reclamada de investigação, não permitindo aos “julgadores populares” o acesso à integralidade das provas da mesma e igual natureza que possam infirmar ou mitigar as consequências que intelectualmente se retiram da escolha e decisão jornalística”.

Desta forma, concluem os assinantes, o procedimento utilizado não constitui apenas uma violação da lei processual penal vigente, viola também “flagrantemente os direitos, liberdades e garantias constitucionalmente protegidos dos arguidos, contribui para julgamentos populares totalmente desaconselháveis em sociedades democráticas saudáveis, ausentes de um contraditório capaz de formar uma opinião crítica, antes potencia a conflitualidade social em prejuízo da paz desejada, e abala os fundamentos do Estado de Direito Democrático”.

  • No mesmo dia, a Procuradora-Geral da República, Joana Marques Vidal, também manifestou o seu desagrado com a publicação das imagens, recordando que é o crime de desobediência que está em causa.
  • A 20 de abril, a ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, afirmou que a divulgação das imagens dos interrogatórios “constitui crime”.
  • No mesmo dia, José Sócrates declara que se vai constituir assistente no inquérito aberto pelo Ministério Público por causa da divulgação, pela SIC e pela CMTV, dos vídeos dos interrogatórios dos arguidos da Operação Marquês. O antigo primeiro-ministro é acusado de três crimes de corrupção passiva de titular de cargo político, 16 de branqueamento de capitais, nove de falsificação de documentos e três de fraude fiscal qualificada.

A acusação alega que Sócrates recebeu cerca de 34 milhões de euros, entre 2006 e 2015, a troco de favorecimentos de interesses do ex-banqueiro Ricardo Salgado no GES e na PT, bem como por ter garantido a concessão de financiamento da Caixa Geral de Depósitos (CGD) ao empreendimento Vale do Lobo, no Algarve, e por ter favorecido negócios do Grupo Lena.

Além de Sócrates, estão ainda acusados o empresário Carlos Santos Silva, amigo de longa data e alegado testa-de-ferro do antigo primeiro-ministro; o ex-presidente do BES Ricardo Salgado; os antigos administradores da PT Henrique Granadeiro e Zeinal Bava; e o ex-ministro e antigo administrador da CGD Armando Vara, entre outros. A acusação deduziu também um pedido de indemnização cível a favor do Estado, de 58 milhões de euros, a pagar por José Sócrates, Ricardo Salgado, Carlos Santos Silva, Armando Vara, Henrique Granadeiro, Zeinal Bava e outros arguidos.

As reportagens divulgaram aspetos do processo de relevante interesse público e são legítimas.

São José Almeida

Presidente do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas

  • A 24 de abril, Ricardo Costa, diretor de informação da SIC, argumentava num artigo de opinião, intitulado de “Isto não é não jornalismo”, a sua escolha editorial para a publicação da dita reportagem. “Perante a divulgação da acusação mais grave da nossa democracia, que cruza a maior falência bancária do pós-25 de abril e o colapso da joia da coroa da bolsa portuguesa, o que devem os jornalistas fazer?”, deixa o jornalista a pergunta de início, que se revela retórica, pois o próprio responde nos restantes parágrafos.

“Não deve ser opção editorial não dedicar um esforço sério a este caso. Infelizmente foi a de muitos jornalistas e redações, que se esconderam na confortável sombra de um manto que explica tanto o tempo da justiça como o silêncio tático da política. Os jornalistas não são juízes nem políticos. Não se devem confundir com eles. Mas não podem usar as limitações ou as hesitações daqueles como argumentos para a sua confortável inação, que, no limite, redunda numa profunda incompetência ou inutilidade”, defende Ricardo Costa.

O diretor de informação da SIC, continua, dizendo que é um “erro gravíssimo” considerar que este caso é apenas um assunto judicial. “É judicial, é político, é financeiro, cruza toda a nossa sociedade. A justiça deve fazer justiça e os jornalistas devem fazer jornalismo”. Segundo o próprio, o trabalho da SIC levou quatro meses a fazer e explica que, a meio desse trabalho, um dos jornalistas envolvidos teve acesso a material dos interrogatórios. “Para quem não saiba, os interrogatórios são gravados em áudio há muitos anos e, entretanto, começaram a ser gravados em vídeo. Todos os advogados sabem isso; os que não sabem são incompetentes”.

A luta pela liberdade de imprensa e pelo direito à informação nunca acaba. E cruza-se, sempre, com outros direitos, num difícil equilíbrio que está na base de qualquer democracia. O jornalismo não pode abusar das suas prerrogativas, mas tem que ter sempre presente a sua missão principal, que é a de informar.

Ricardo Costa

Diretor de Informação da SIC

“A luta pela liberdade de imprensa e pelo direito à informação nunca acaba. E cruza-se, sempre, com outros direitos, num difícil equilíbrio que está na base de qualquer democracia. O jornalismo não pode abusar das suas prerrogativas, mas tem que ter sempre presente a sua missão principal, que é a de informar“, concluiu o jornalista.

  • No mesmo dia, a presidente do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas, São José Almeida, dizia, em declarações ao Público (acesso livre), considerar legítima a divulgação das imagens dos interrogatórios da Operação Marquês pela SIC e CMTV, uma vez que mostraram “aspetos do processo de relevante interesse público”, revela. “As gravações são oficiais e chegaram às mãos dos jornalistas. Ainda que haja aspetos que possam suscitar dúvidas por assumirem contornos que raiam o voyeurismo, é inegável que as reportagens divulgaram aspetos do processo de relevante interesse público e são legítimas”, justificou a jornalista.

A presidente do Conselho Deontológico explicou também ao Público que o debate em torno da divulgação é “importante”, defendendo porém que a “obrigação e o compromisso” dos jornalistas é com a sociedade. “E têm o dever de revelar informações verídicas como as que foram mostradas”, concluiu São José Almeida.

Deste modo, a vaga e genérica invocação de “interesse público” não é suficiente para justificar a divulgação destas imagens. Só em circunstâncias concretas devidamente invocadas e provadas em tribunal poderão os responsáveis pela divulgação excluir a sua responsabilidade criminal, o que dependerá de se julgar que aturam ao abrigo de causa de justificação ou exclusão da culpa, neste caso a liberdade de imprensa.

Henrique Salinas

Sócio da CCA Ontier e responsável pelo Departamento de Penal

Pode o interesse público ser razão suficiente para a divulgação não constituir crime para estes jornalistas?

Contactado pela Advocatus, Henrique Salinas, sócio da CCA Ontier e responsável pelo Departamento de Penal desta sociedade, defende que “a vaga e genérica invocação de “interesse público” não é suficiente para justificar a divulgação destas imagens”.

No Código de Processo de Penal, de facto está consagrado nos termos do artigo 88.º, ponto n.º 2, alínea b), que “constitui crime de desobediência a transmissão de imagens relativas à prática de qualquer ato processual por parte dos meios de comunicação social”. Henrique Salinas explica que como esta proibição é especificamente dirigida aos órgãos de comunicação social a ponderação entre o direito à imagem e o interesse público no acesso à informação foi realizada pelo próprio legislador, que decidiu dar prevalência ao primeiro.

“Deste modo, a vaga e genérica invocação de “interesse público” não é suficiente para justificar a divulgação destas imagens. Só em circunstâncias concretas devidamente invocadas e provadas em tribunal poderão os responsáveis pela divulgação excluir a sua responsabilidade criminal, o que dependerá de se julgar que aturam ao abrigo de causa de justificação ou exclusão da culpa, neste caso a liberdade de imprensa”, conclui o advogado.

João Maricoto Monteiro, sócio da SRS Advogados responsável pelos departamentos de Direito Fiscal e White Collar Crime, vai mais longe e diz mesmo, em declarações à Advocatus, que não restam dúvidas de que a divulgação dos vídeos constitui crime. “A questão central prende-se com o alcance do “interesse público” jornalístico quando colide com a lei penal e os direitos fundamentais dos cidadãos”.

Por isso, como advogado, choca-me que o interesse público quando invocado por particulares (no caso, por jornalistas) se possa sobrepor a todos os outros direitos em presença, como se fosse um bem Supremo e ilimitado. Não o é.

João Maricoto Monteiro

Sócio da SRS responsável pelos Departamentos de Direito Fiscal e White Collar Crime

Será o interesse público um valor máximo que se pode sobrepor a todos os demais direitos? Não sendo, quais os limites? O advogado da SRS responde à pergunta dizendo que a nossa lei (fundamental e ordinária) “e os nossos valores apresentam sempre limites ao interesse público, desde logo quando o mesmo é invocado pelo Estado. Se assim não fosse a investigação criminal podia usar todos e quaisquer meios para obter prova – desde que o interesse público o justificasse; se assim não fosse, o Estado poderia expropriar sem dar qualquer compensação aos expropriados (o interesse público na construção de uma via de acesso ou equipamento de saúde, por exemplo, é seguramente superior ao interesse particular da propriedade); se assim não fosse, o confisco não seria proibido por lei e o Estado poderia confiscar bens aos particulares sempre que necessitasse de receita adicional”, explica.

Por isso, como advogado, choca-me que o interesse público quando invocado por particulares (no caso, por jornalistas) se possa sobrepor a todos os outros direitos em presença, como se fosse um bem supremo e ilimitado. Não o é”, defende o advogado, que diz perceber que os jornalistas se encontram perante um aparente conflito de deveres quanto à divulgação de elementos “jornalisticamente relevantes”. Realça contudo que, neste caso em concreto, apesar de perceber a tentação dos jornalistas, entende que “a defesa do interesse público estava totalmente assegurada pela divulgação dos factos já conhecidos – e públicos – do processo (desde logo, a acusação já proferida), pelo que o crime incorrido pela divulgação destes vídeos não me parece ter justificação legal”, remata.

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