O Estado-Regulador portuguese style

  • Nuno Garoupa
  • 1 Dezembro 2016

Portugal assumiu o modelo das agências reguladoras, mas num país que cultiva a fidelização pessoal ou partidária dos cargos públicos, este regime não faz qualquer sentido.

O modelo de agências reguladoras tem origem nos Estados Unidos, fundamentalmente no período do New Deal. Correspondeu a uma revolução importantíssima do Direito Administrativo norte-americano, com a passagem dos princípios tradicionais da common law para um conjunto de normas mais complexas, que culminaria na doutrina Chevron em 1984 (pela qual os tribunais devem ser deferentes para com as decisões das agências reguladoras quando dentro da sua esfera de decisão discricionária).

O desenvolvimento do Estado-regulador foi, pois, parte da agenda progressista que dominou a política económica dos Estados Unidos desde a administração Roosevelt (1933-1945) até à eleição de Ronald Reagan em 1980.

O processo de desregulação iniciado com a administração Reagan (1981-1989), resumido no conhecido Consenso de Washington, limitou o papel das agências reguladoras. Este ciclo durou até 2008, com a crise financeira. Durante essas três décadas, a regulação de mercados por agências foi parcialmente substituída por mecanismos alternativos, nomeadamente a regulação por litigância.

A administração Obama (2009-2017) promoveu, sob a liderança de Cass Sunstein, uma tímida reforma do Estado regulador, incluindo a introdução de novos métodos científicos importados das ciências comportamentais, mas o impacto prático está ainda por ver.

O modelo de agências reguladoras responde à necessidade de equilibrar um conjunto de objetivos contraditórios. Primeiro, dotar o Estado do capital humano, especialização e conhecimento técnico adequados a uma regulação eficaz dos mercados. Segundo, limitar a governamentalização e a partidarização das intervenções do Estado na economia. Em particular, evitar que a regulação dos mercados esteja sujeita aos calendários eleitorais. Terceiro, assegurar a prestação de contas (accountability) que simultaneamente dissuada a captura, quer pelos interesses políticos, quer pelos interesses das indústrias reguladas.

Em relação aos primeiros, delegou-se progressivamente nos tribunais a supervisão das agências reguladoras, em detrimento do poder legislativo (Congresso) e do poder executivo (Presidente). No que concerne aos segundos, regulamentou-se, em fases sucessivas, a chamada porta giratória (revolving door).

Importa, pois, entender que a reconhecida independência das agências reguladoras se refere aos poderes legislativo e executivo. De forma alguma pode esta independência ser confundida com ausência de accountability. Uma agência reguladora tem, pela sua natureza, um défice de legitimidade democrática.

Esse défice só pode ser tolerado pela qualidade técnica das suas decisões, pela necessidade de promover intervenções na economia com estabilidade e objetivos definidos em termos de bem-estar social (isto é, sem preponderância excessiva dos interesses de curto prazo ou de um grupo em particular) e pela sua supervisão efetiva pelo poder judicial. Decorre destas considerações que, na ausência destas vantagens, o modelo de agências reguladoras não faz sentido.

A União Europeia, principalmente na sua fase mais dinâmica da construção do Mercado Comum e com a emergência do Direito da Concorrência, transplantou e ajustou o modelo das agências regulatórias. Não surpreende essa escolha dada a natureza tecnocrática das instituições europeias.

O défice democrático da União Europeia apenas reforçou a natureza do modelo. E a prestação de contas não foi objeto de uma estrutura institucional evidente até ser absolutamente inevitável.

Por um lado, o poder regulatório da Comissão Europeia tem sido condicionado pelo Tribunal da União Europeia, mas a ausência de mecanismos processuais que facilitem a regulação por litigância reduz consideravelmente a efetiva prestação de contas. Por outro lado, instituições regulatórias como o Banco Central Europeu extremaram a ideia de independência política sem acautelar a sua accountability. Há uma tensão inevitável entre prestação de contas e independência regulatória que, no contexto da União Europeia, assumiu uma solução inevitavelmente tecnocrática dado o óbvio défice democrático da União.

O modelo de agências reguladoras entrou em Portugal via União Europeia. A conclusão imediata é que ele é completamente contrário, quer à ideologia subjacente ao nosso Direito Administrativo (fundamentalmente autoritário, como em qualquer país de tradição continental), quer à nossa organização económica.

O Estado Novo foi um Estado-intervencionista e não um Estado-regulador. Logicamente, a intervenção na economia era feita diretamente pelo poder executivo, tendo o poder legislativo como mero acessório, sem qualquer necessidade de recorrer ao poder judicial. A democracia apostou num Estado-intervencionista de cariz ideológico distinto e com um claro mandato democrático, mas sem qualquer apetência por agências reguladoras. Herdado do Estado Novo, o modelo de direções-gerais manteve-se durante muito tempo.

O modelo de direções-gerais responde a um conjunto de preocupações completamente distintas. Por um lado, a subordinação da regulação de mercados aos interesses do Estado tal como são interpretados pelo Governo democraticamente eleito.

Nesse sentido, pretende-se expressamente a governamentalização da regulação económica. Por outro lado, não existe qualquer preocupação com a prestação de contas através dos tribunais. Insiste-se, pois, numa jurisdição administrativa diferente dos tribunais judiciais em obediência a uma tradição napoleónica autoritária.

Mantêm-se mecanismos processuais opacos e poucos transparentes para dificultar qualquer responsabilização efetiva fora dos âmbitos internos à administração pública.

A chegada do modelo de agências reguladoras a Portugal encontrou, pois, uma cultura hostil, uma apetência pela governamentalização, a preponderância da opacidade e da falta de transparência, um sistema judicial ineficiente e incapaz de lidar com os desafios da regulação económica. Foi, portanto, um transplante incómodo destinado a falhar. Podemos mesmo identificar três fases no desenvolvimento das agências reguladoras em Portugal:

  • Primeira fase (até 2005): coexistem, nesta fase, as antigas autoridades governamentalizadas com hábitos de administração pública dependente (Banco de Portugal, CMVM) com as novas autoridades criadas por imposição ou influência da União Europeia (ANACOM, ERSE, Autoridade da Concorrência). Algumas autoridades destacam-se pela sua independência (Abel Mateus na Autoridade da Concorrência, Jorge Vasconcelos na ERSE). O Banco de Portugal (com Vítor Constâncio) e a CMVM (com Teixeira dos Santos) seguem a lógica do Bloco Central, consonante com a longa tradição governamentalizada. O contraste entre “velhas” e “novas” autoridades foi naturalmente sintomático.
  • Segunda fase (2005-2011): incomodado com alguma predisposição para fugir dos interesses governamentais e optando por um modelo de Estado-intervencionista, o Governo Sócrates progressivamente silenciou as agências reguladoras. Os tecnocratas foram substituídos por políticos em várias autoridades. Pouco a pouco, a Autoridade da Concorrência, a ERSE, a ANACOM aderiram à lógica governamental em detrimento da regulação efetiva dos mercados.
    O fenómeno da revolving door passou a dominar. Um exemplo, destacado e gritante, foi a crescente promiscuidade entre as sociedades de advogados de Lisboa e as agências reguladoras. Acrescem, nesta fase, as acusações cada vez mais frequentes sobre a captura dos reguladores pelos interesses económicos, quer da Autoridade da Concorrência (por exemplo, a controversa investigação sobre a concertação das gasolineiras), quer da ANACOM (incluindo o tema da TDT).
  • Terceira fase (2011-2015): surpreendentemente, o Governo Passos Coelho não inverteu a tendência anterior. Em 2011, a sua primeira medida foi nomear o vice-governador do Banco de Portugal para chairman na Caixa Geral de Depósitos, uma violação clara de qualquer boa prática regulatória. A partidarização das agências reguladoras foi assumida (com a divisão dos lugares entre o PSD e o CDS, por exemplo, na Autoridade da Concorrência e na Autoridade Nacional da Aviação Civil, alimentando polémicas na comunicação social). Optou, também, por nomear jovens quadros para várias autoridades, violando as habituais regras de prudência (um regulador jovem tem de pensar na sua carreira profissional futura, o que evidentemente potencia conflitos de interesse).
    A lei quadro dos reguladores, em 2013, por imposição da troika (que fez um diagnóstico negativo do modelo de agências reguladoras em Portugal e, por isso, exigiu a nova lei), não teve qualquer impacto relevante. Consagrando o princípio da não-recondução do regulador como reforço da independência, foi imediatamente violada no caso do Banco de Portugal (com a desculpa deste não estar sujeito à dita lei). A relativa inatividade da CMVM nos dez anos de Carlos Tavares não provocou qualquer preocupação. E os sucessivos fracassos bancários não fomentaram nenhuma reforma regulatória digna desse nome.
  • Quarta fase (2016): não se conhece qualquer ideia ao Governo António Costa para revitalizar as agências reguladoras, tendo apostado em soluções de continuidade. No contexto do recente fiasco da Caixa Geral de Depósitos, ficou patente a inutilidade das autoridades da regulação bancária e dos mercados financeiros.

Em Portugal, o Estado-regulador morreu antes de começar. Os sucessivos governos lidaram mal com a independência dos reguladores e, rapidamente, decidiram que são despojos partidários. Invalidaram a possibilidade de contratação internacional de reguladores, fugiram das boas práticas (não há nenhum concurso digno desse nome), integraram os reguladores no grande esquema do aparelho do Estado sujeito às conveniências políticas do momento. A primazia da cultura administrativa portuguesa (deferente e amiga da governamentalização) manteve-se inalterável. Os tribunais não desempenham qualquer papel minimamente relevante. A captura privada dos reguladores merece alguma atenção na comunicação social, mas longe de irritar o poder político.

Num país que cultiva a fidelização pessoal ou partidária dos cargos públicos em detrimento da qualidade técnica, do mérito profissional ou da independência institucional, não há espaço para um modelo de agências reguladoras. Num país onde os tribunais não podem supervisionar a atividade regulatória e a regulação por litigância está absolutamente penalizada, não faz sentido pensar em regulação económica.

Sem prestação de contas efetiva e sem desgovernamentalização, não faz qualquer sentido o modelo de agências reguladoras. É simplesmente anacrónico. Defendo, por isso, dentro do Direito Comunitário, o regresso ao modelo das direções-gerais. Tem mais legitimidade democrática, mantém o capital humano necessário ao Estado-intervencionista, é mais barato orçamentalmente e adere à realidade cultural das elites políticas e económicas portuguesas.

Quando o país político pensar seriamente em autoridades independentes, desgovernamentalizadas, sujeitas a controle judicial efetivo, com reguladores contratados por concurso internacional transparente, então sim, penso que devemos voltar ao modelo das agências reguladoras. Até lá não vejo qualquer benefício líquido relevante.

  • Nuno Garoupa
  • Colunista

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