O livro dos fazedores conta a história de alguns dos maiores empreendedores portugueses: experiência de 15 fazedores é contada na primeira pessoa.
De tudo o que havia para ser, ela queria ser outra coisa. Só não sabia o quê. Cristina Fonseca, engenheira de Telecomunicações e Informação licenciada pelo Instituto Superior Técnico, em Lisboa, foi muitas vezes contactada para entrevistas em grandes empresas a operar em Portugal mas, ainda antes de terminar o curso, sabia que não era por ali que queria ir.
A universidade partilha listas dos alunos prestes a terminar a licenciatura e o mestrado: nas contas, têm uma taxa de empregabilidade de quase 100%. Isto quer dizer que, nos últimos anos de estudos, os estudantes são contactados directamente por grandes empresas para irem a entrevistas. Foi a partir desses contactos que o telefone de Cristina se fartou de tocar nessas alturas. Disse várias vezes “não” até chegar ao dia em que foi contactada pela Portugal Telecom, sítio onde o irmão já trabalhava e que os pais, “low profile”, poderiam considerar uma boa oportunidade. Decidiu aceitar o encontro. De calças de ganga, viu-se numa sala rodeada de gente da idade dela mas… de fato e gravata. “Eu sabia o que queria, sou uma pessoa competente e confiável e, portanto, eu achava que, independentemente de ir de fato ou não, não me iam julgar pela forma como eu aparecia para a entrevista”, conta.
Nesse dia, cinco meses antes de terminar o curso, a engenheira levou para casa uma proposta de trabalho e uma semana de prazo para uma resposta. “Não me fazia sentido aceitar porque não queria decidir nada antes de acabar o curso e sem validar previamente outras opções. Todas as empresas faziam propostas iguais e não me fazia sentido. Era mais ou menos assim: o primeiro que chegasse ganhava”, conta.
Na semana seguinte, o telefone voltou a tocar. O braço direito de Zeinal Bava, na altura CEO da telecom portuguesa, queria falar com ela. E Cristina acredita que isso aconteceu porque, primeiro, o director que a tinha entrevistado tinha-lhe apontado “uma aura tão positiva como já não via há muito tempo” e, sobretudo, porque terá percebido que seria muito improvável a “muito boa aluna” do Técnico aceitar a proposta.
Mas ainda não foi dessa vez que a convenceram. No escritório da PT, no dia da entrevista com o administrador, Cristina Fonseca teve a oportunidade de conhecer de perto todos os departamentos da empresa. Uma “experiência”, sublinha. Mas a telecom, independentemente de ter as portas abertas a uma aluna de engenharia de último ano, continuava a ser uma enorme estrutura. “Tinha 8.000 pessoas a trabalhar… O que é que eu podia fazer no meio daquelas 8.000 que fizesse a diferença? Não dava”, atalha. No final do dia, depois de outra entrevista, voltou a perceber que, genuinamente, estava a excluir as opções que lhe apareciam porque “sentia que não era aquilo”. Nesse dia, relembrou o raciocínio feito há meses, enquanto estava internada com uma pneumonia. “Não vou hipotecar o meu tempo aqui porque se eu morro amanhã, isto não vale nada. Mas eu não sabia o que era o que eu queria fazer”.
Fazedor, eternamente em bicos dos pés
Mas comecemos pelo princípio: o que é, afinal, um fazedor? Para Cristina Fonseca é simples: Da perspectiva de uma engenheira, ser fazedor é resolver problemas. “É uma pessoa que encontra um problema e diz: Ok, eu quero encontrar uma solução. E que não se importa de pôr as mãos na massa para o fazer”. E tentar as vezes que forem necessárias.
A Talkdesk, startup, que criou um sistema que permite às empresas produzirem o seu próprio call center, foi a terceira tentativa que Cristina Fonseca e o sócio, Tiago Paiva, fizeram de criação de um negócio. Ainda no Instituto Superior Técnico (IST), em Lisboa, e em paralelo com as entrevistas para potenciais trabalhos, os dois colegas lançaram uma plataforma para alunos do secundário terem explicações online. O negócio começou a validar-se a si próprio à medida que avançavam nas gravações das explicações em vídeo. A plataforma dava muito trabalho, custava aos clientes 79 euros por ano, sem limite de número de visualizações e, além de explicar a matéria, dava exemplos e resultados de exercícios. Cristina era a “explicadora” de matemática, diz, a sorrir. E tinha outros professores, muitos deles pagos, a dar explicações de outras disciplinas.
Só que 80 horas de vídeo visto, revisto, planeado e editado por ela depois, as primeiras lições não se fizeram esperar: o target market era Portugal, país pequeno em termos de mercado, os alunos não tinham dinheiro para pagar a plataforma e, sobretudo, não queriam estudar a partir dali. “Aquilo que nós estávamos a tentar resolver não era um problema que lhes ocupasse a cabeça e, por isso, a percentagem do mercado que teoricamente poderíamos captar ia requerer muito esforço. Então percebemos que não era escalável nem global, e o trabalho para o fazer era um filme de terror. Ok, não era por ali. Tínhamos de fazer outra coisa porque com aquilo, não ia dar provavelmente para pagar as contas”.
Tu, como fazedor, estás a aprender as you go, à medida que avanças. E portanto, ser empreendedor com a idade que nós temos, é estares em bicos dos pés todos os dias. E eu tive muitas alturas em que lia, lia, lia, com um medo de perder alguma coisa [Filipa fala de FOMO, fear of missing out] ou de não ser boa o suficiente, de ter dormido horas a mais.
Neste caso, o exercício foi aparentemente simples: ideia, execução, validação e, por fim, decisão. Mas foi nesta fase que Cristina percebeu também que o mindset de engenheira do “quando tens uma ideia, pensas que é no fazer que está o segredo” não chegava. Surgiram outras questões: como é que eu chego às pessoas? Como atrair tráfego para o meu site? Tudo coisas que, em 2010, não eram ensinadas, pelo menos do IST. Por isso, durante o ano seguinte, Cristina decidiu gastar dinheiro em apenas duas coisas: combustível, para poder andar de um lado para o outro, e livros sobre online marketing, adwords e muitos outros temas. Objectivo? “Queria tentar aprender sobre o ecossistema que tu precisas para criar uma startup”. Estava a fazer por fazer.
Além de curioso, um fazedor é também uma pessoa resiliente, que não desiste à primeira oportunidade. Essa é outra característica fundamental no que toca à definição de fazedor, segundo Filipa Neto, cofundadora da Chic by Choice, startup cujo modelo de negócio B2C assenta no aluguer de vestidos de luxo através de uma plataforma online. “Tu, como fazedor, estás a aprender as you go, à medida que avanças. E portanto, ser empreendedor com a idade que nós temos, é estares em bicos dos pés todos os dias. E eu tive muitas alturas em que lia, lia, lia, com um medo de perder alguma coisa [Filipa fala de FOMO, fear of missing out] ou de não ser boa o suficiente, de ter dormido horas a mais. Há alguém que dorme menos horas e que, como está a dormir menos horas, vai saber mais sobre isto do que eu, vai ser mais especialista e vai ter melhores resultados. Porque tu começas com um processo de jogo contigo própria, mas tens plena consciência, à medida que começas a ter equipas, estruturas diferentes, que o mercado de capitais é limitado e que podem escolher um player e não te escolherem a ti. E portanto, começas a iterar muito e a questionar se estás a trabalhar o suficiente.”, explica Filipa.
"Tu, como fazedor, estás a aprender as you go, à medida que avanças.”
Para ela, há uma lista de competências importantes das quais a persistência assume um papel de enorme relevância. “A mais importante é a resiliência. Tens tantas alturas em que as coisas não correm bem. Não particularizando, há um dia em que tu despedes pessoas, esse é um dia que não corre bem. Há dias em que pessoas dizem que vão investir na tua empresa, e depois… nada acontece. E tu pensas que são pessoas que são honestas, há tanta coisa, há tanta história”, explica a fundadora, cuja empresa arrancou em 2014.
Nesse ano, em Portugal, muito pouco se falava de empreendedorismo. Agora, quase meia década depois, palavras como startup, scaleup, unicórnio e exit são termos relativamente comuns e percebidos pela maior parte das pessoas, mesmo quando estas estão fora do ecossistema. “Agora, a palavra startup está em todo o lado. Há seis anos ninguém sabia o que significava e agora há entidades públicas como a Startup Portugal a trabalharem só nessa área”, diz Anthony Douglas, fundador da Hole19. Para ele, tudo mudou em Lisboa e um pouco por todo o país, nos últimos anos.
“Existe mais informação e mais know-how no mercado nacional, para montar um negócio mais rápido e de melhor forma. Existe também muito mais atenção de fora para Lisboa, que facilita a exposição ao mercado internacional. Na altura, havia startups em Portugal que ninguém conhecia lá fora. Agora, os investidores vêm cá ter por causa do Web Summit, do Lisbon Investment Summit, e das startups que levantaram capital, e vão sempre perguntar o que é que há mais. Querem saber mais”, explica o fundador da plataforma que une golfistas e campos deste desporto, em todo o mundo. Para Daniela Monteiro, fundadora do Startup Pirates e a trabalhar na ScaleUp Porto, não foi só a projecção de Portugal enquanto produtor de startups que mudou como também o perfil dos próprios fazedores, que evoluiu ao longo dos últimos anos. “Na altura em que começámos a trabalhar com startups, as pessoas vinham muito aos nossos programas para perceber o que era ou como se começava um projecto e, por isso, o nosso trabalho era muito educar. As startups que apareceram na altura surgiram de uma grande componente de ingenuidade. E, por outro lado, também vêm de uma fase de crise em que as oportunidades não existiam como existem agora”, afirma.
Mas quando, em 2011, Miguel Santo Amaro decidiu lançar a Uniplaces, plataforma de aluguer de alojamento para estudantes com os sócios Ben Grech e Mariano Kostelec, tudo isso era ainda desconhecido.
Agora, os investidores vêm cá ter por causa do Web Summit, do Lisbon Investment Summit, e das startups que levantaram capital, e vão sempre perguntar o que é que há mais.
Num estudo sobre empreendedorismo jovem, feito pelo BNP Paribas, fala-se da emergência da Geração Millennipreneur, uma espécie de “fazedor millennial”. Os fazedores sobre os quais escrevo desde 2011 – ou, pelo menos, grande parte deles – pertencem-lhe, acredito. E se, aparentemente, a emergência de uma “nova geração” diz muita coisa, olhe melhor: a Geração Y, de pessoas nascidas entre 1980 e 1995, também chamada de Millennial, lança em média oito empresas durante a vida. O número é impressionante e, sublinho, muito relevante quando comparado com a média de 3,5 negócios, em média, criados durante a vida da geração antecessora. Os miúdos sub-35 não só ganham para gastar como são criadores de negócios em série. Isso prova que arriscam.
Os dados indicam que, além de criarem mais negócios, estes têm maior expressão: dos 20 aos 35, estes millennipreneurs fundam empresas, gerem maiores equipas e conseguem melhores resultados do que os baby boomers. As razões para estes números são justificadas pela curiosidade. “Antigamente, para começar um negócio uma pessoa tinha de chegar aos 40 ou 50 anos. Depois, entre os 30 e os 40. Agora, é entre os 20 e os 30. É uma tendência e obviamente está por todo o lado. Claro que está relacionada com as novas tecnologias, mas também com a mudança do mundo, que agora aceita que possas ser o CEO de uma grande empresa ou que tenhas a tua empresa enquanto és bastante novo”, explica Remi Frank, do BNP Paribas. O estudo, feito com uma amostra de cerca de 2600 empreendedores de 18 países do mundo, dá conta de que, todos juntos, estes fazedores valem mais de 17 mil milhões de dólares. E ainda que as regiões mais apelativas para estes millennipreneur sejam os Estados Unidos, a China e a Alemanha, as maiores conquistas do ecossistema têm acontecido na Índia, na Turquia e também na China. As conclusões sugerem que, talvez por ser uma das gerações mais prejudicadas de sempre ao nível do desemprego jovem, seja também a geração a quem é mais fácil criar negócios. Em segundo, trata-se de uma geração que lida melhor com o falhanço ou que, por outra, considera-o parte do caminho. Tendo em conta que a maior parte dos millennials pensa criar o seu negócio, em média, aos 29,4 anos, ainda há muito tempo para tentar.
O que é um fazedor? É um problem solver. Alguém que gosta de, com relativamente pouca informação – ou seja, com muita incerteza – desenhar um caminho que leve a uma solução.
Miguel Santo Amaro tinha 23 anos. De uma sala da Startup Lisboa – que, durante as primeiras semanas, nem secretária tinha -, cofundou a plataforma que actualmente tem presença em mercados como Portugal, Espanha, França, Alemanha e Holanda, entre outros.
Para o licenciado em Finanças e Gestão, a definição de fazedor é tão perigosa como demorada. “É um problem solver. Alguém que gosta de, com relativamente pouca informação – ou seja, com muita incerteza – desenhar um caminho que leve a uma solução”, explica. E isso, acrescenta, leva a que muitas vezes não se saiba se a solução que se encontra é a indicada para resolver à partida, o problema em questão. Ou se, pelo contrário, esse problema envolve muito mais capacidades criativas, de delegar, confiar e empoderar os outros do que se imaginava. Muitas vezes, explica Miguel, é preciso “confiar nos outros e dar-lhes espaço para poderem ganhar o próprio espaço. Isso é ser fazedor: ser persistente – é muito fácil desistir com tantos problemas e com tanta coisa a acontecer ao mesmo tempo, acho que uma das coisas, das capacidades que se desenvolvem – é ter foco”. Mas, mais do que isso, é “lidar melhor com o risco do que a maioria das pessoas”.
Um fazedor é, de acordo com o fazedor, alguém com uma proatividade fora do comum. Não diria que sem aptidão ao risco mas com “certa aptidão ao risco”.
“Não acredito que os empreendedores, os fazedores, sejam pessoas que gostam muito mais de arriscar do que as outras. Mas tens de fazer muito com pouco, tens de perceber e ter essa perceção de risco muito iminente. Acho é que consegues viver com incerteza, mais do que com risco. Ou com mais incerteza do que é normal”.
Persistência e foco. E tempo. Miguel, Ben e Mariano começaram a desenvolver a ideia de negócio bem antes de 2011 e, com a certeza de que o sucesso poderia passar muito pelo contexto. Primeiro, criaram a equipa e, só depois, procuraram áreas e projectos com os quais poderiam identificar-se.
O primeiro passo foi dado no Startup Weekend, um dos primeiros eventos de empreendedorismo a realizar-se em Portugal – e um dos únicos que existiam na altura. Miguel e a equipa ganharam o prémio final – e isso foi bom – mas, sobretudo, expuseram-se ao mundo: por casualidade, no júri estava João Vasconcelos, que viria a dirigir a equipa da Startup Lisboa, primeira incubadora da câmara municipal lisboeta. Esta seria, dois meses depois, a primeira casa da Uniplaces.
Os primeiros dias da casa do número 80 da Rua da Prata, na Baixa lisboeta, foram intensos: com o edifício em obras, havia muito por fazer, tanto em matéria de mobília como de moradores. Mas, ainda que não parecesse evidente, Lisboa parecia, na altura, ser o sítio mais fácil para ter dois estrangeiros em Portugal e Miguel, nascido no Porto, que se mudou de armas e bagagens para a capital.
A Startup Lisboa passa, em fevereiro de 2012 – data da inauguração – a ser uma das únicas casas habitadas na sua rua e imprime, na Baixa da cidade, um ritmo que há muito não se via.
“O único prédio com a luz acesa na Rua da Prata era o da Startup Lisboa. Não se reconhece a cidade”, confessa o gestor, que esteve na mesma desde o primeiro dia até Janeiro de 2016, quase quatro anos, e de onde saiu na altura para integrar o Governo na Secretaria de Estado da Indústria, a convite do primeiro-ministro António Costa.
Praticamente ao mesmo tempo, instalaram-se na incubadora fundadores de startups como a Codacy, a Hole19 e a Jobbox, agora Landing.Jobs, esta última cofundada por Pedro Oliveira. Para ele, um fazedor é um habitante do presente para o qual existem duas definições. Nos Estados Unidos, alguém que tem uma empresa. Em Portugal ou na Europa, alguém que é inovador. “Um fazedor em português é simplesmente alguém que não precisa de ter uma empresa mas que é o anti velho do Restelo. Porque quando há um que diz ‘vocês não vão, olhem que vão morrer’, ele pode estar no barco ou não, mas dirá ‘levem-me, eu vou convosco’. É esse gajo”.
Este excerto faz parte d’O livro dos fazedores, da autoria de Mariana de Araújo Barbosa, jornalista do ECO, editado pela Self Editora, agenciado pela StorySpell e lançado a 16 de outubro de 2018.
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O livro dos fazedores: dicas e aprendizagens de alguns dos maiores empreendedores portugueses
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