Arguidos pagam milhões às IPSS todos os anos. Quem as escolhe?
Há arguidos que são obrigados a pagar uma quantia monetária a IPSS ou ao próprio Estado. Mas quem escolhe as IPSS para onde vai o dinheiro? E a quantia a pagar?
Há arguidos que, condenados, ficam sujeitos a pena suspensa. E arguidos, que não indo a julgamento, a quem é aplicada uma injunção. O que podem ter em comum? A obrigação de pagar uma contribuição monetária a instituições solidárias ou ao próprio Estado. Mas quem escolhe as IPSS para onde vai o dinheiro? E como se define a quantia a pagar?
Penas suspensas há muitas, e muitas vezes na casa dos (muitos) milhares de euros. Recentemente, o ex-presidente do Banco Privado Português (BPP), João Rendeiro, foi condenado a cinco anos de prisão com pena suspensa, ficando ainda obrigado a pagar 400 mil euros a uma instituição particular de solidariedade social (IPSS). Em causa estavam crimes de falsidade informática e falsificação de documentos.
Neste caso, o valor é destinado à Associação “Crescer”, uma associação sem fins lucrativos dedicada à inclusão de pessoas em situação de vulnerabilidade. Entre os projetos que levam a cabo, desenvolvem o chamado “É uma vida”, que apoia os refugiados.
Outra forma de punição, quando o arguido está ainda em fase de inquérito, consiste na chamada suspensão provisória do processo. Pode ser aplicada quando estão em causa crimes puníveis com pena de prisão não superior a cinco anos. É também aplicável aos casos em que se indicia suficientemente um concurso de crimes punível com pena de prisão superior a cinco anos, mas em que a pena de cada um deles não excede esta medida, segundo nota da Procuradoria-Geral da República.
“É uma solução processual em que o Ministério Público, com o acordo do arguido e do assistente, determina, com a concordância do juiz, a sujeição do arguido a regras de comportamento ou injunções durante um determinado período. Caso estas não sejam cumpridas pelo arguido, é deduzida acusação”, explica fonte oficial da PGR em declarações à Advocatus. Portanto, é uma outra forma de possibilitar o arguido da dispensa de julgamento, desde que seja aplicada uma injunção — um pagamento ao Estado, a uma instituição de solidariedade ou à vítima ou a participação em programas ou atividades.
Chegados aqui, importa questionar: como são definidos os valores a pagar e as instituições para onde segue o dinheiro? Serão os magistrados titulares do processo os incumbentes dessa tarefa?
À Advocatus, o Conselho Superior da Magistratura (CSM) responde de forma vaga que “são os juízes que definem caso a caso” as IPSS para onde vai o dinheiro das penas e injunções. Sobre um possível critério de escolha, não se adianta.
O sistema vigente [na escolha das IPSS] suscita-me muitas dúvidas. Deveria haver critérios legais mais objetivos e definidos.
Contudo, o vice-presidente do CSM, Mário Belo Morgado, não se abstém de comentar a pouca clareza do sistema. “Pessoalmente, o sistema vigente nesta matéria suscita-me muitas dúvidas. Deveria haver critérios legais mais objetivos e definidos. Em alternativa, poderia consagrar-se a atribuição de todas essas quantias a favor do próprio Estado que, procederia depois à sua distribuição pelas diferentes IPSS”, afirmou, em declarações à Advocatus.
Quanto ao valor atribuído para cada instituição, o CSM delegou a resposta para as várias comarcas. “Algumas comarcas fazem constar esses dados nos seus relatórios semestrais e anuais. As decisões a este respeito obedecem a critérios estritamente jurisdicionais, aos quais o CSM é alheio”.
Questionados, ainda, sobre quanto dinheiro, em média, vai para as IPSS por ano, dizem não existir informação estatística sobre tal dado, mas que “a mesma pode ser extraída dos relatórios semestrais e anuais apresentados pelas comarcas”. Uma breve pesquisa aos últimos relatórios disponíveis nas comarcas de Lisboa e do Porto prova que esses dados também não são revelados.
Facto é que, por ano, a justiça distribui milhões de euros por diversas IPSS. Só entre 2015 e 2017 foram distribuídos 29 milhões de euros por estas instituições, segundo o último relatório disponível na Procuradoria-Geral da República (PGR), referente a 2017. Já quanto à quantia entregue ao Estado — proveniente de arguidos que que queiram, assim, evitar uma acusação ou suspender uma pena de prisão — nos últimos três anos chegou quase aos 113 milhões de euros (ver tabela).
Questionada pela Advocatus, a PGR fala numa lista de IPSS elegíveis a que recorrem os magistrados para designar a instituição.
Esta elegibilidade é “sempre efetuada após confirmação da natureza de Instituição privada de solidariedade social, como impõe o artigo 281º nº 2, al. c) do Código de Processo Penal, do objeto da sua atividade social e comunitária, dos projetos que desenvolveu e desenvolve, dos contributos que presta em prol da defesa dos interesses sociais e públicos e, nos limites do que é possível conhecer, da sua idoneidade social”.
As IPSS são selecionadas, preferencialmente, de entre as que desenvolvam atividade relacionada com o tipo de factos praticados pelo arguido, com as suas consequências ou com o apoio às vítimas de crimes.
É ainda citada a diretiva 1/2014, que explicita que “com vista à seleção das entidades beneficiárias de contribuições monetárias, a efetuar em concreto de acordo com os critérios enunciados e as exigências legais respeitantes à sua natureza jurídica, importa que os Procuradores Coordenadores, em articulação com os demais magistrados, diligenciem pela identificação das entidades ou instituições suscetíveis de serem beneficiárias, e pela divulgação, designadamente através do SIMP, das respetivas listas e posteriores atualizações”.
Portanto, pena suspensa ou injunção aplicada, e caráter social uma vez definido, as IPSS “serão selecionadas, preferencialmente, de entre as que desenvolvam atividade relacionada com o tipo de factos praticados pelo arguido, com as suas consequências ou com o apoio às vítimas de crimes”, continua a PGR.
Por exemplo, no caso dos arguidos por violência doméstica, as contribuições devem reverter a favor de organizações que apoiem mulheres em risco. “A seleção é, pois, efetuada com base em critérios objetivos”, afirma a procuradoria.
Quanto ao valor a designar, o órgão do Ministério Público diz ainda que “o valor das injunções a atribuir é igualmente fixado de acordo com critérios objetivos, sujeitos aos princípios da adequação, proporcionalidade e suficiência, tendo-se em conta, designadamente, a gravidade do crime e das suas consequências, o valor dos danos patrimoniais e/ou morais causados, a situação económica do arguido, as exigências de prevenção concretamente verificadas”.
Contas feitas, tudo depende do crime cometido e da falta ou não de cadastro do arguido. Uma realidade que parece ser difícil de traduzir para números redondos.
Em fevereiro, segundo declarações ao Jornal de Notícias, o presidente da comarca de Castelo Branco, José Avelino Gonçalves, disse considerar que o atual sistema de justiça é “um bocado casuístico”, ao deixar a distribuição do dinheiro “ao critério e razoabilidade de cada magistrado”.
O juiz chegou a admitir que pode haver dinheiro que esteja a ser “canalizado para quem possa não merecer” e, ainda, que é a favor de “uma alteração legislativa”.
Em média, os arguidos pagaram às IPSS e ao Estado cerca de 47 milhões de euros por ano, entre 2015 e 2017. Os crimes em que mais injunções consistiram em entregar ao Estado ou a uma IPSS uma certa quantia de dinheiro foram: condução sob o efeito de álcool (a registar 8692 injunções em 2017), condução sem carta (3728 ocorrências em 2017) e desobediência (2318).
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