Foi isto que Costa deu à Função Pública. O que falta dar?

Em mais de três anos de Governo, António Costa reverteu os cortes salariais da Função Pública, repôs as 35 horas e até subiu a base remuneratória. O que ficou por fazer, segundo os sindicatos?

Antes de mais, é preciso separar “ganhos” de “reposição”; e o que os últimos três anos provam é que o Executivo de António Costa “nada deu” aos funcionários do Estado, só “devolveu”. Quem o diz é Orlando Gonçalves, dirigente da Frente Comum, um dos sindicatos que escolheram o final desta segunda semana de fevereiro para marcar uma greve geral da Administração Pública. Que balanço é já possível fazer deste Governo? A Frente Comum dá-lhe nota negativa e a Federação de Sindicatos da Administração Pública (FESAP) salienta que a geringonça ficou “aquém” das muitas expectativas que tinham sido criadas.

Esta quinta-feira, os funcionários públicos associados à FESAP, ao Sindicato dos Trabalhadores da Administração Pública e das Entidades com Fins Públicos (SINTAP), à Federação Nacional da Educação (FNE) e à Federação Nacional de Professores (FENPROF) iniciam uma greve de dois dias. Na sexta, somam-se a estes os trabalhadores do Estado associados à Frente Comum.

O motor desta paralisação nacional é sobretudo a subida da base remuneratória da Função Pública (para 635,07 euros mensais) sem que tenha sido feita a atualização da Tabela Remuneratória Única (TRU) e sem que tenha sido proposta uma valorização salarial para os cerca de “600 mil trabalhadores” que desde 2009 não têm aumentos.

Foi no início de dezembro do ano passado que o Ministério das Finanças anunciou que os 50 milhões de euros reservados no Orçamento do Estado para 2019 para valorizações salariais na Função Pública iriam chegar, afinal, apenas aos que ganhavam menos, subindo-se a base remuneratória para os tais 635,07 euros (valor correspondente à atual quarta posição da TRU).

De imediato, os sindicatos criticaram a proposta, pedindo o alargamento desses aumentos a todos os trabalhadores. Várias reuniões depois e sem um consenso à vista, o Governo colocou um “ponto final” nas negociações. Seguiu caminho o aumento da base remuneratória sem que esteja previsto qualquer outro aumento este ano.

O Executivo de António Costa deverá, assim, chegar ao fim sem ter satisfeito uma das principais reivindicações das estruturas sindicais da Função Pública: Aumentos salariais para todos os trabalhadores do Estado.

A par deste, não faltam pedidos dos funcionários públicos que acabaram por não ser atendidos pela geringonça. Há, por outro lado, algumas conquistas a apontar, nos últimos três anos. Os sindicatos rejeitam a ideia de que se tenham registado “ganhos”, mas dão nota positiva às “reposições” que foram feitas.

“Temos que fazer uma separação entre ganhos e reposição. O Governo não deu absolutamente nada, devolveu”, sublinha Orlando Gonçalves, em conversa com o ECO. O dirigente da Frente Comum destaca como positivo o regresso às 35 horas semanais e o descongelamento das progressões.

Do lado da FESAP, José Abraão faz questão de enfatizar a reversão dos “cortes salariais do tempo da Troika” e o descongelamento das carreiras. Elogia também o aumento da base remuneratória, embora teça algumas críticas à proposta que acabou por ser aprovada em Conselho de Ministros.

  • Reversão dos cortes salariais

Foi no final de 2015 que o Governo começou a reverter de forma gradual os cortes salariais que marcaram o período de austeridade. Os primeiros 20% desses cortes foram apagados ainda em 2015, seguindo a reversão de mais 20% (ou seja, 40%) em janeiro de 2016, mais 20% (ou seja, 60%) a partir de abril de 2016 e mais 20% (ou seja 80%) em julho desse ano. Em outubro de 2016, deu-se assim a eliminação completa da redução remuneratória.

Segundo indicou a Unidade Técnica de Apoio Orçamental, esta reversão custaria 447 milhões de euros.

  • Descongelamento das carreiras

Conforme o acordo feito entre o Governo de António Costa e os seus parceiros sentados à esquerda no Parlamento, o descongelamento das carreiras está a ser feito em quatro fases. A 1 de janeiro de 2018, os funcionários com dez pontos passaram a receber 25% do acréscimo salarial a que tinham direito por via da progressão. A 1 de setembro de 2018, somaram-se a esses 25% mais 25%. A 1 de maio e a 1 de dezembro de 2019 estão previstas as duas outras fases em falta, chegando estes trabalhadores do Estado ao fim do ano com a valorização salarial que lhes é devida completa.

Para os funcionários que estavam a progredir da terceira posição da TRU para a quarta, essas duas últimas fases serão antecipadas, isto é, passam a receber os 635,07 euros mensais já no início do ano. Isto porque o Governo decidiu aumentar a base remuneratória da Função Pública, fazendo desse valor o salário mínimo do Estado.

Sobre este processo e em declarações ao ECO, o dirigente da FESAP sublinha que as mudanças de posição remuneratória foram entretanto “absorvidas pela inflação”, não tendo efetivamente sido sentidas pelos funcionários.

  • 35 horas para todos

Em causa está a reversão de uma das medidas tomadas durante o período da troika. Em julho de 2016, foram repostas as 35 horas semanais na Função Pública, deixando-se de fora, contudo, os trabalhadores com contrato individual de trabalho.

Só em 2018 é que esses funcionários conseguiram garantir a redução horária da sua semana de trabalho, uma medida que acabou por gerar alguma confusão nos hospitais. Na altura, os representante do setor da saúde chegaram mesmo a avisar que essa passagem das 40 para as 35 horas iria provocar o “caos”. O então ministro da Saúde respondeu: “Contrataremos os recursos que forem necessários contratar. Mas objetivamente os que estiverem disponíveis e os que fizerem falta”.

  • Integração dos precários

De acordo com o Ministro do Trabalho e da Segurança Social, já cerca de 14,5 mil precários receberam luz para a entrada nos quadros da Administração Pública, num total de mais de 30 mil candidatos. Ao nível da Administração Local, contam-se atualmente nove mil candidatos admitidos. “É evidente que existem lacunas, atrasos e problemas”, disse Vieira da Silva, no Parlamento. Segundo o Governo, este processo de integração deverá estar concluído este ano.

“O Programa de Regularização Extraordinária de Vínculos Precários da Administração Pública é um sistema tão burocrático”, critica a Frente Comum, referindo que o Governo não fez um esforço real para combater esta situação. Apenas “deu continuidade” às políticas anteriores.

  • Admissão de mais trabalhadores

No que diz respeito às áreas que têm estado mais “fechadas” à admissão de funcionários, o primeiro-ministro já anunciou um concurso de recrutamento para os quadros do Estado de mil jovens com formação superior. Isto de modo a reforçar os centros de competências e as áreas estratégicas de conceção e planeamento de políticas públicas e de digitalização da administração. “Esta operação de recrutamento será complementada com o programa de capacitação avançada para trabalhadores em funções públicas“, explicou ainda o Ministério de Mário Centeno, em comunicado.

À parte destes processos, é importante notar que há mais 10.600 funcionários públicos desde o início do Executivo de António Costa. Os dados referidos fazem parte do Boletim Estatísticos do Emprego Público mais recente e dizem respeito ao período entre 2015 e 2017.

  • Subida da base remuneratória

Em 2019, o Governo reservou 50 milhões de euros para valorizar as remunerações da Função Pública, tendo decidido concentrar essa verba nos escalões remuneratórios mais baixos. Assim, a partir deste ano, o salário mais baixo do Estado passa a ser 635,07 euros, valor equivalente à quarta posição da TRU e que contrasta com os 600 euros da remuneração mínima garantida nacional.

Aos jornalistas, o Ministério das Finanças explicou que desses 50 milhões de euros, 20 milhões de euros serão gastos apenas com a subida em linha com o salário mínimo nacional. Os restantes 30 milhões servirão, por isso, para o aumento de 35 euros referido, que será conseguido tanto pela via administrativa como pela via das progressões (para os funcionários que estavam na 3ª posição da TRU e já reuniam as condições de antiguidade necessárias para chegar à 4ª).

De notar que por ambas as vias, e para preservar a “hierarquia das carreiras”, os pontos que tinham sido acumulados pelos funcionários para avançarem na carreira serão eliminados. “Os únicos que vão realmente usufruir dessa medida são os mais novos [porque não tinham muitos pontos para perder]. São pouquíssimos porque as admissões estiveram congeladas”, sublinha o dirigente da Frente Comum ouvido pelo ECO.

“[Com esta medida] o Governo acaba por empurrar para 2029 a próxima mudança de escalão remuneratório“, acrescenta, por sua vez, José Abraão, da FESAP.

Os quatro anos de geringonça ainda não chegaram ao fim, mas os sindicatos já conseguem antecipar que reivindicações ficarão por satisfazer. A principal diz respeito aos aumentos salariais de toda a Função Pública, mas a revisão das carreiras não lhe fica muito atrás em importância. Há ainda a questão da contabilização do tempo de serviço dos professores, cujas negociações ainda não foram retomadas.

A FESAP nota também que ficam por fazer as “novas convenções” da ADSE que iriam melhorar este serviço. E a Frente Comum faz questão de notar que o trabalho extraordinário continua a valer “metade” do que no privado, mas reforça que esta não é uma prioridade.

  • Aumentos para todos os funcionários públicos

Este ano, apenas são alvo de aumentos remuneratórios os funcionários públicos que ganhavam menos de 635 euros, ou seja, que ocupavam os escalões mais baixos da TRU. Ficam assim por valorizar os salários dos “600 mil trabalhadores” que há dez anos não têm aumentos. Em 2009, esses funcionários tiveram um aumento de 2,9%, mas desde então os seus salários não têm crescido.

Pior, diz José Abraão ao ECO, “o salário mínimo transformou-se no salário médio” da Função Pública, o que torna difícil “reter talento”. Orlando Gonçalves, da Frente Comum, corrobora esse argumento e acrescenta: “Qualquer funcionários público ganha hoje menos do que ganhava em 2009, em termos líquidos, por causa do peso do IRS e da ADSE”.

  • Revisão das carreiras

“Há cerca de 80 carreiras que não são revistas desde 2009”, identifica José Abraão. Entre essas carreiras, estão a dos informáticos, a dos vigilantes da natureza, a dos veterinários e até a dos polícias municipais. “Neste ponto, o Governo foi manifestamente insuficiente”, sublinha o dirigente da FESAP.

“É necessário rever os conteúdos funcionais das carreiras especiais e os seus salários”, salienta, por sua vez, a Frente Comum, referindo que esta matéria deveria ter sido tratada, por lei, em 2009, mas acabou por se arrastar. “Este Governo só reviu três carreiras”, enfatiza, declarando haver ainda muito por fazer neste campo.

  • 9 anos, 4 meses e 2 dias dos professores

Continua por resolver a questão da contabilização do tempo congelado dos professores. Em causa estão nove anos, quatro meses e dois dias, mas o Executivo insiste em contar apenas cerca de dois anos.

A proposta chegou mesmo às mãos do Presidente da República, que a vetou e obrigou o Governo a regressar às negociações, o que ainda não aconteceu. António Costa tem defendido que essa reunião não deve ser marcada até que haja realmente novas propostas para serem discutidas. Os professores estão assim num impasse e, por isso, juntam-se também esta quinta e sexta à greve.

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