Juristas consideram “abusivo” jornalistas serem assistentes em processos
Segundo a lei, qualquer um pode constituir-se assistente num processo penal, salvo exceções, mas o acesso a jornalistas tem gerado dúvidas no meio. Juristas e Comissão para a Carteira convergem.
Quem pode constituir-se assistente num processo criminal? Como? E existem exceções para jornalistas e/ou outros profissionais por incompatibilidades?
Segundo o artigo 68.º do código do processo penal, podem constituir-se assistentes no processo penal, os ofendidos do caso, as pessoas de cuja queixa ou acusação particular depender o procedimento e, entre outras salvaguardas, ainda “qualquer pessoa nos crimes contra a paz e a humanidade, bem como nos crimes de tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionários, denegação de justiça, prevaricação, corrupção, peculato, participação económica em negócio, abuso de poder e de fraude na obtenção ou desvio de subsídio ou subvenção”.
Esta definição genérica tem merecido discussão, mas, como em praticamente todos os debates no cerne da justiça, aqui a doutrina também diverge. A questão já é antiga, mas voltou a ser recentemente discutida entre o meio depois de se saber que a fase de instrução da Operação Marquês seria à porta fechada e, por isso, a entrada a jornalistas estaria impedida. Porém, há assistentes deste processo de dois órgãos de comunicação social.
Ou seja, dois jornalistas que podem estar presentes nas várias audições e que têm acesso a informação deste processo. Do lado dos advogados que lidam com processos mediáticos existe alguma reticência perante esta figura, com alguns dos mais conhecidos a mostrarem-se pouco favoráveis à constituição de jornalistas como assistentes. Fomos falar com seis deles para perceber porquê.
"Um correto entendimento do conceito e da lei evitariam as situações de abuso que se têm verificado por única responsabilidade dos aplicadores de Direito.”
Uma figura “atípica” com uma má interpretação
Em dezembro de 2015, num artigo de opinião no jornal i, já Paulo Saragoça da Matta escrevia que embora a definição desta figura esteja presente na lei portuguesa, “o que a lei nunca sequer imaginou é que o estatuto fosse dado a quem, por definição, nunca pode “colaborar” com o MP senão na difusão pública daquilo que, estando no processo, para bem de uma sã justiça aí devia ficar”.
Em declarações à Advocatus, o mesmo advogado diz que concorda com os moldes desta figura no Código Penal Português (CPP), que, aliás, “é única nos vários processos penais europeus que nos são vizinhos”. Mas não deixa de considerar este um problema que, em Portugal, “não emerge da lei, mas de alguma doutrina infeliz” e daquilo que apelida de “má prática” por parte das magistraturas na determinação do conceito de assistente.
"Não concordo com o sistema atual, que permite desvios das finalidades que o sistema legal pressupõe e abre a porta a espontâneos.”
Embora a lei permita a qualquer pessoa constituir-se assistente, há outros aspetos a ter em conta, como frisa o advogado. “O CPP é claro e inequívoco quando estatui no artigo 68.º quem pode constituir-se assistente no processo, mas o sentido da norma só se obtém após a interpretação sistemática e conjugada com o disposto no artigo 69.º, quando estabelece qual a posição processual e atribuições do assistente”. Isto é, segundo explica, só poderá ser assistente “quem o possa ser materialmente”.
José António Barreiros considera esta figura “atípica” no direito comparado, porém acha que se deve manter no nosso contexto. “Quem tiver memória histórica lembra, porém, que foi graças à sua existência que processos arquivados pelo Ministério Público conseguiram conhecer a oportunidade de um julgamento. E ainda assim sucede”, comenta à Advocatus.
Já João Medeiros não concorda com a forma como esta figura está designada no CPP. Nomeadamente, a alínea que concede a qualquer pessoa poder ser assistente, uma formulação legal que classifica de “infeliz” e por cuja prática se “em vindo a observar a concessão ilegítima de meios legais para a prossecução de finalidades ilegais”, classifica o jurista.
"[Dentro desta lei do CPP] tem-se vindo a observar a concessão ilegítima de meios legais para a prossecução de finalidades ilegais.”
Contudo, pode ser-se assistente “quem não tenha legitimação por relação direta com o crime em causa, o que permite desvios das finalidades que o sistema legal pressupõe e abre a porta a ‘espontâneos’, que nem se sabe ao que vêm nem quem os sustenta nos encargos do processo”, diz José António Barreiros, que discorda do sistema atual em que esta figura é aplicada.
Também o advogado da PLMJ considera que não se pode interpretar “que o preceito permita a constituição como assistente de todos, sem mais”. No seu entender, a redação do texto da lei deveria ser alterada para que fosse mais claro que apenas deverá ser admitida a constituição como assistente de “pessoas que não estejam diretamente ligadas aos crimes objeto do processo, quando as mesmas demonstrem algum interesse em agir num determinado caso concreto”.
Jornalistas assistentes? Parecer da Comissão da Carteira desaprova
Em setembro de 2017, também Rui Patrício abordava o assunto, referindo o caso específico do jornalismo, numa opinião do Jornal de Negócios. Dizia o advogado da Morais Leitão que “quanto mais se generaliza e rende a constituição dos jornalistas como assistentes, maior é a erosão do verdadeiro jornalismo de investigação, figura fundamental numa sociedade democrática e no combate à criminalidade”.
E continua: “é que esse jornalismo significa investigar por si, e não “vampirizar” a investigação dos processos, e ainda menos noticiá-la sem neutralidade, fazendo eco sistemático de (apenas) uma versão das coisas”.
"Suscitam-me reservas a amplitude legal, e sobretudo a «generosidade» prática quanto à possibilidade de qualquer cidadão se constituir assistente em processos relativos a certos tipos de crime.”
À Advocatus este jurista explica que, na verdade, até concorda com a figura do assistente em processo penal da maneira como está prevista nos moldes legais, mas é a sua amplitude que lhe suscitam reservas. “Sobretudo a ‘generosidade’ prática quanto à possibilidade de qualquer cidadão se constituir assistente em processos relativos a certos tipos de crime, o que se liga também, muito diretamente, ao problema da constituição de jornalistas como assistentes”, realça.
De acordo com uma decisão da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ), de novembro de 2015, o plenário desta comissão considerou “incompatível” o exercício da profissão de jornalista com a “constituição como assistente em processos penais sobre os quais [se] desenvolva trabalho”, uma vez que “a natureza e a função desse sujeito processual, tal como legalmente definidas, comprometem a independência, integridade profissional e dever de imparcialidade desses jornalistas”.
"Estes assistentes [jornalistas] têm sido muito convenientes, apenas e só, para a difusão pública das teses do MP e talvez por isso continuem a ser tão tolerados.”
Eurico Reis, juiz desembargador e ex-presidente da CCPJ, já muito antes contestou tal prática quando, em 2009, disse ao Diário de Notícias que “ao constituir-se como assistente, o jornalista torna-se auxiliar do Ministério Público quando, deontologicamente, está obrigado a uma posição de imparcialidade em relação ao objecto do processo”.
Segredo de justiça pode ficar comprometido
À Advocatus, Francisco Proença de Carvalho diz que a constituição de jornalistas como assistentes em processos tem sido uma porta aberta para a “permanente” violação do segredo de justiça e para o “esmagamento público dos arguidos”. A seu ver, o que se tem verificado nos processos mediáticos são “manifestos abusos” e a “deturpação total desta figura processual, para o qual muito têm contribuído os jornalistas assistentes”.
“Estes assistentes têm sido muito convenientes, apenas e só, para a difusão pública das teses do Ministério Público e talvez por isso continuem a ser tão tolerados”, acrescenta.
Paulo de Sá e Cunha considera que o vasto acesso à figura de assistente cria uma espécie de “ação popular penal”. Isto porque legitima quem não tenha interesse pessoal e direto a intervir como assistente nestes processos, o que “possibilita o recurso abusivo a esta categoria, para prossecução de finalidades que são absolutamente alheias à sua essência”.
"Esta prática [de jornalista assistente] tem vindo a generalizar-se entre nós é, a meu ver, abusiva.”
O advogado da Cuatrecasas refere que há muitos jornalistas que se constituem assistentes em processos de modo a “poderem aceder a informação e a meios de prova constantes dos autos, que depois divulgam publicamente”, o que muitas vezes acontecem quando ainda vigora o segredo externo do processo, o que pode configurar manifestamente a prática de crimes de violação de segredo de justiça.
“Por legítimo que seja o direito de informar, esta prática, que tem vindo a generalizar-se entre nós, é, a meu ver, abusiva”, remata.
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