Uma Nação sem défice num Estado com serviços mínimos

Um politólogo, um demógrafo e dois economistas partilharam com o ECO sobre a forma como veem Portugal no momento atual. O Parlamento debate hoje o Estado da Nação.

Bem no défice, no PIB e no desemprego. Mal nos serviços públicos, principalmente na saúde. O Governo e os partidos debatem o Estado da Nação esta quarta-feira à tarde no Parlamento durante quase cinco horas. Mas antes o ECO ouviu um politólogo, um demógrafo e dois economistas e o retrato tirado aponta para as falhas no Estado enquanto prestador de serviços públicos que afeta todos no seu dia-a-dia.

“Os indicadores macroeconómicos têm sido o lado positivo. A economia começou a crescer, o défice baixou e a taxa de desemprego reduziu-se. Mas precisamos de ir além dos indicadores macroeconómicos“, diz Manuela Arcanjo, antiga secretária de Estado do Orçamento de António Guterres, lembrando que mesmo no domínio orçamental nem tudo está bem. “Temos a terceira dívida pública mais elevada na União Europeia”, exemplifica a economista

Ano após ano, o Governo tem conseguido défices melhores que o previsto, este ano pode ficar em 0,2% do PIB e para 2020 há já a previsão de um excedente orçamental.

Evolução do défice orçamental (em % do PIB)

A também ex-ministra da Saúde nos governos de António Guterres acrescenta, porém, que “não vale a pena fingir que está tudo bem”, destacando como principais problemas em Portugal atualmente o estado do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e dos transportes públicos.

“Só o efeito de envelhecimento da população faz muita pressão sobre a despesa”, diz, ressalvando que há “falta de material, não há instalações e há degradação” dos serviços públicos na área da saúde. Nos transportes públicos, Arcanjo destaca que o desinvestimento já vem de governos anteriores e continuou. “O estado dos transportes públicos não é digno de um país que se orgulha de ter um saldo orçamental histórico.”

SNS, a crise que todos une

O debate do Estado da Nação será o último da legislatura e acontece a menos de três meses da ida às urnas. O contexto será determinante para os 226 minutos reservados para o debate do Estado da Nação. “Haverá uma demarcação política face ao PS”, diz o politólogo António Costa Pinto. As sondagens sobre as intenções de voto para as eleições de 6 de outubro dão a vitória ao PS, mas sem maioria absoluta o que obrigará Costa a negociar para formar Governo.

O politólogo antecipa que tanto à esquerda como à direita a estratégia para o debate será a de “tentar diminuir o resultado do PS”, já que o que se discute é “a margem de manobra que o PS terá em outubro de 2019”.

A escolha dos temas tentará assim obedecer a este plano. O investigador do Instituto de Ciências Sociais (ICS) acredita que o debate andará à volta da Lei de Bases da Saúde, dos serviços públicos e da ortodoxia orçamental.

Costa Pinto sublinha o facto de o debate sobre o estado do SNS acontecer “como se a clivagem entre esquerda e direita tivesse deixado de existir”. Além de unir a esquerda do PS e a direita, a situação do SNS tem ainda outra característica que torna a sua presença no debate público incontornável. “A crise no SNS une interior e áreas metropolitanas”, explica António Costa Pinto. “Bebés e seniores”, acrescenta Manuela Arcanjo.

Utentes do SNS Inscritos em cirurgia fora de tempo (% face ao total de inscritos)

O Governo tem destacado o reforço do investimento na saúde – mais médicos, mais enfermeiros e mais despesa – mas há indicadores de acesso ao SNS que mostram que para a população o estado do SNS não está melhor. Um deles é a percentagem de utentes do SNS à espera de uma cirurgia e que já está fora dos tempos considerados normais para a operação. Em março de 2019, segundo números da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), 18,5% dos utentes inscritos na lista de espera para a cirurgia estavam fora dos tempos regulamentares, enquanto em 2015 eram 12,2%.

Costa Pinto resume que o debate marcado para quarta-feira é a “prova do relativo sucesso da governação PS que manteve a ortodoxia orçamental e satisfez as reivindicações“. Neste último ponto há outro indicador que mostra que o início da legislatura foi marcado por um ambiente de paz social maior, embora as reivindicações tenham voltado a aumentar na reta final.

Em 2018, os sindicatos entregaram 733 pré-avisos de greve, bem acima dos 488 que entregaram em 2016, o primeiro ano completo de governação.

Evolução do número de pré-avisos de greve

Além da saúde — que “tem défices que não estão resolvidos” — Jorge Malheiros aponta outros problemas que são ilustrativos do estado da nação, nomeadamente na área da demografia. Embora tenham sido introduzidas algumas alterações legislativas que “são favoráveis à estabilização e à melhoria da qualidade de vida dos imigrantes”, há ainda uma questão de “justiça fiscal” para resolver no tratamento fiscal dos residentes não habituais e nos vistos gold que “dificultaram o acesso à habitação nos grandes centros urbanos”. Nesta frente houve portanto avanços.

O investigador do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa, especialista em demografia e assimetrias regionais, acrescenta que “na natalidade, saúde e idosos evoluiu-se menos”. “Usa-se muito a palavra demografia, mas fez-se pouco”, diz o demógrafo, avisando ser necessária uma “política sistematizada” e não medidas avulsas.

Malheiros destaca ainda outras duas áreas como essenciais para fazer o raio-x à nação: a habitação e os desequilíbrios regionais. No que respeita à habitação, o professor da Universidade de Lisboa acredita que as políticas desenvolvidas — como a Lei de Bases da Habitação ou os programas de renda acessível — trazem “um capital de esperança”, mas destaca que ainda um “caminho grande para fazer”. “É preciso criar mecanismos para ver se e como foram implementadas estas mudanças”, defende.

No que respeita aos desequilíbrios regionais, a questão “esteve mais elevada na agenda política no início da legislatura”, mas “ainda temos de ver se saem daqui resultados positivos”. “Sem um cadastro que permita identificar os proprietários dos terrenos, as políticas de ordenamento do território perdem eficácia”, avisa este investigador.

Fase pós-crise esgotou-se

Com um olhar no futuro e outro no presente, o professor de economia da Universidade do Minho, João Cerejeira, defende que os níveis de investimento “ainda estão baixos”. Cerejeira destaca que a quantidade de capital e a tecnologia disponíveis para o fator trabalho é baixa e que Portugal “continua a ter uma economia de baixos salários”.

“A questão da falta de investimento que seria produtivo e que gere valor é determinante para aumentar a capacidade de crescimento da economia”, avisa Cerejeira.

Evolução do investimento total e do investimento público (taxas de variação em %)

O economista admite que houve progressos no emprego, na taxa de desemprego e até na evolução do saldo migratório. Mas avisa que “esta fase pós-crise já se esgotou” e que o mercado de trabalho dá “indícios de se ter chegado à sua capacidade de pleno emprego”. Uma perceção confirmada pelos empresários ouvidos pelo ECO. Manuel Violas, do grupo Solverde, e Luís Guimarães, da Polopique, é esse o retrato que fazem do mercado de trabalho. “Baixar a taxa de desemprego é impossível”, diz Luís Guimarães. “Para mim isto já é pleno emprego em Portugal”, acrescenta o industrial.

João Cerejeira deixa uma receita para quem governa Portugal. Por um lado deve simplificar um conjunto de regulamentos para a criação de empresas, já que a “carga fiscal e parafiscal ainda é elevada”, e desenvolver “uma política de formação profissional mais direcionada para quem está já no mercado de trabalho, que permita mobilidade entre profissões e entre empresas”.

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