Carne feita de plantas, pó inteligente, fragilidade digital. Eis um olhar sobre algumas das tendências tecnológicas para 2017, com base no relatório da especialista Amy Webb. Bem-vindos ao futuro!
Há dez anos que a história se repete. Com a chegada de um novo ano, é também publicado o “Relatório de Tendências Tecnológicas”. Trata-se de um vasto documento sobre o que esperar da ciência e da tecnologia para a próxima temporada, e que se tornou de leitura obrigatória para muitos decisores que não querem ser apanhados na curva. Diz-se que “pessoa prevenida vale por duas” e o certo é que, todos os anos, o relatório é aguardado com bastante expectativa.
Para o entender, é preciso conhecer quem está por trás dele: Amy Webb, de Chicago, nascida em 1977 e que é… futurista. Longe, muito longe de uma qualquer vidente pouco credível, o que Webb fez foi desenvolver uma metodologia que, ao longo de uma década, lhe permitiu identificar temas tecnológicos que serão relevantes no decorrer de cada ano. O de 2017 foi apresentado esta terça-feira e publicado pelo Future Today Institute, ex-Webbmedia Group, organização que Webb fundou e lidera.
"Uma tendência é uma manifestação de mudança sustentada num setor industrial, na sociedade ou no comportamento humano.”
No total, foram identificadas 159 tendências para o próximo ano, que “prometem mudar para sempre” a forma como vivemos e trabalhamos. No ano anterior, a futurista deixou um alerta sobre o perigo de se evoluir rápido demais, em que se recorrem a tecnologias antes mesmo de se discutir os potenciais efeitos. Desta vez, o alerta é outro: “A tecnologia está a evoluir mais rápido do que a capacidade de os governos a legislarem e regularem”, frisa o documento, que acrescenta que muita da inovação começa agora a convergir em “inteligência artificial”.
Mas já lá vamos. Das 159 tendências enumeradas por Amy Webb, o ECO selecionou seis. São “tecnologias emergentes que estão numa trajetória de crescimento” e que podem ter impacto no nosso mundo já em 2017. Algumas são repetentes, muitas aparecem pela primeira vez. Recomendamos que não olhe aos nomes: “As tendências que merecem a sua atenção não têm nomes inteligentes”, lê-se no relatório. Que é como quem diz, não têm nomes atraentes, sexy. Ora veja por si.
Agora, mais do que nunca, as organizações devem analisar o impacto potencial das tendências tecnológicas. Falhar em acompanhá-las de forma significativa vai pôr em risco o seu crescimento e a sua vantagem competitiva.
6. Pó inteligente
Smart dust é o nome que se dá aos computadores tão minúsculos quanto o pó — e tão pequenos e tão leves que até podem ficar suspensos no ar. São fruto dos esforços que têm sido feitos para minimizar o tamanho da eletrónica e, segundo Amy Webb, cada partícula é composta “por circuitos e sensores capazes de monitorizar o ambiente” envolvente.
Várias academias têm explorado este “pó inteligente”, aponta o relatório. Por exemplo, a Universidade da Califórnia em Berkeley desenvolveu a neural dust, que não é mais do que minúsculos computadores que se alojam no cérebro e que podem receber e enviar informação sobre o órgão vital. Estamos a falar de tecnologia com potencial para revolucionar certos setores, onde a medicina, por exemplo, é uma forte candidata a esta transformação.
Mas não é tudo: as propriedades destes computadores poderão vir a permitir que se libertem livremente no ar para medirem os níveis de poluição ou para tirarem fotografias. Noutro patamar, mais preocupante, alguém, ao inalar um destes computadores, poderá ficar sujeito à monitorização sorrateira de alguma pessoa ou entidade mal-intencionada.
Veja-se o que tem sido feito na Universidade de Stargardt, na Alemanha. Investigadores conseguiram imprimir a três dimensões pequenas lentes do tamanho de grãos de areia, ou menores. São capazes de capturar imagens com muita precisão e a grandes definições. O trabalho foi publicado na revista científica Nature Photonics e além de provar que estes dispositivos funcionam, provou que podem ser facilmente impressos numa impressora 3D — a cereja no topo do bolo.
5. Rendimento básico incondicional
A ideia de que todos os cidadãos devem receber do Estado um rendimento incondicional e garantido é tudo menos nova. Na verdade, o Rendimento Básico Incondicional (RBI) provoca ódios e amores, mas foi defendido por várias frentes, do presidente norte-americano Richard Nixon ao economista Milton Friedman.
Aliás, em 1967 já Martin Luther King Jr. defendia o termo cunhado por Thomas Paine, na obra Where Do We Go from Here: Chaos or Community?. Aí, escreveu: “Independentemente do quão dinâmico seja o desenvolvimento e a expansão da economia, sabemos que não elimina toda a pobreza. Temos de criar pleno emprego ou temos de oferecer rendimentos. É preciso criar consumidores, quer através de um método, quer através do outro.”
O que tem isto a ver com tecnologia? Tudo. Esta ideia dos anos sessenta, que chegou a ser testada durante algum tempo, voltou à ordem do dia em 2016. Uma nova corrente de pensamento acredita que o advento da automatização e da inteligência artificial, que resultará na substituição de humanos por robôs em certos empregos, levará a uma implosão do mercado de trabalho. A posição defendida por Luther King há quase 50 anos volta a ser atual.
Veja-se: a Finlândia vai testar a ideia e garantir um rendimento de 560 euros mensais a um grupo de mais de 2.000 finlandeses escolhidos ao acaso. Em junho, a Suíça referendou um projeto de lei para dar a todos os cidadãos um rendimento mensal equivalente a cerca de 2.200 euros — mas foi rejeitado por 76,9% dos eleitores. E em Portugal? Por cá, sob a tutela do deputado André Silva, o PAN quer levar o tema a debate no Parlamento.
Aos poucos, o RBI deverá entrar novamente no debate público e é, por isso, uma tendência para 2017. De um lado, os que defendem que é necessária esta transição devido à evolução da robótica e da inteligência artificial. Do outro, os críticos que alertam que um rendimento universal, sem condições, resultará numa sociedade menos inclinada para o trabalho. Qual dos lados defende?
Temos de criar pleno emprego ou temos de oferecer rendimentos. É preciso criar consumidores, quer através de um método, quer através do outro.
4. Inteligência artificial na contratação
A internet é uma fonte inesgotável de dados. Estima-se que 3,4 mil milhões de pessoas tenham acesso a ela. Mais de um terço terá conta no Facebook, onde muita gente insiste em publicar informação privada. O mesmo acontece no Twitter, Instagram e por aí em diante. Daqui para a frente, essa informação começará a ser usada por empregadores para decidirem quem contratar.
Segundo Amy Webb, a inteligência artificial está a tornar-se um componente central de muitas das tendências tecnológicas. Meter algoritmos a escrutinarem publicações nas redes sociais poderá ser parte integrante do processo de contratação num futuro não muito longínquo. Isto numa altura em que a tecnologia começa a traçar perfis de forma mais objetiva do que os humanos.
Hoje existem programas de computador capazes de fazer esse trabalho. Detetam emoções e motivações, avaliam a empatia e a consideração pelos outros. Uma pessoa demasiado tóxica nas redes sociais poderá dar problemas ao patrão no futuro. Identificando padrões, como só os computadores sabem fazer, os empregadores poderão usar esses dados para otimizar a seleção dos candidatos.
O relatório das tendências tecnológicas aponta duas empresas especializadas neste tipo de avaliações com inteligência artificial: a RoundPegg a Interviewed. Na carteira destas há clientes como a Xerox, a ExxonMobil e a Razorfish. Não deverá faltar muito para este tipo de contratação começar a popularizar-se. Mas a especialista Amy Webb deixa um recado: “Há que garantir que nem os dados nem os algoritmos estão sujeitos a enviesamentos. Afinal de contas, estes sistemas foram originalmente imaginados, arquitetados e programados por humanos.”
3. Fragilidade digital
Tudo o que é posto na internet, não mais desaparece. Com alguma verdade, é o que se costuma dizer. No entanto, a experiência diz-nos também que, em certas ocasiões extraordinárias, uma publicação ou mesmo um site e todo o seu conteúdo podem simplesmente desaparecer da rede. O assunto é particularmente sensível no setor dos media. O The Independent já só publica na internet e praticamente todos os títulos internacionais de referência têm acelerado a transição para o digital. Algumas publicações nascem mesmo na internet e para a internet, como é o caso do The Intercept, do recém-lançado The Outline e, em Portugal, do Observador (em 2014) e mais recentemente do ECO.
No entanto, as páginas na internet são efémeras. Se uma empresa falir, é provável que o servidor que lhe aloja o site deixe de ser gerido e fique offline. Há um exemplo disso em Portugal: com a insolvência da empresa responsável pelo Diário Económico, o site do jornal foi fechado e todas as notícias, reportagens e artigos de opinião publicados online deixaram de estar acessíveis. Outro caso, menos conhecido, aconteceu quando o jornal i procedeu a alterações na plataforma do site: a migração não terá sido feita, pelo que os conteúdos publicados online até então deixaram de estar disponíveis.
É também interessante olhar para a corrida presidencial à Casa Branca que Amy Webb assume ter influenciado o relatório de tendências deste ano: “Muitos tweets controversos publicados pelos candidatos foram apagados pelos responsáveis das campanhas”, indica Webb no relatório. E “se a temporada eleitoral nos ensinou alguma coisa, foi que o Twitter ajudou a moldar a opinião pública e o resultado da eleição”, defende. Ou seja, perderam-se os originais de mensagens com interesse público.
A especialista ilustra ainda com outro exemplo. Em 2006, a Microsoft e a NBC juntaram-se e foi criado um premiado projeto de jornalismo digital chamado Rising From Ruin. Contava a história da reconstrução e reabilitação de duas pequenas aldeias no Mississípi devastadas pelo furacão Katrina, com vídeos, gravações de áudio, mapas, elementos interativos e com um fórum para os residentes. Mais tarde, a parceria terminou e o site deixou de existir. Recentemente, foi disponibilizado de novo por representar um projeto de interesse público, mas o caso ilustra bem o quão frágil pode ser um meio de comunicação digital.
E quem se lembra do ataque informático ocorrido em meados de outubro, que deixou inacessíveis alguns dos maiores e mais importantes sites do mundo? A fragilidade da internet é, pois, uma tendência e um problema que deve ser minorado. Talvez fizesse sentido a criação de um repositório central para todos os conteúdos digitais que produzimos, aponta o relatório. Para já, há uma ferramenta que guarda muito do conteúdo digital que é produzido — embora não todo. O projeto chama-se Internet Archive e, com a Wayback Machine, é possível espreitar um site num determinado dia do passado. Mas até quando? Isso custa dinheiro e a instituição não tem fins lucrativos.
As bibliotecas arquivam o material impresso, mas não há um repositório central para o conteúdo digital que estamos a produzir.
2. Comida (e bebida) cultivada
Não é de esperar que a comida cultivada chegue aos nossos pratos em 2017, mas a futurista Amy Webb prevê que dentro de dez a 15 anos, possamos… imprimir um hambúrguer em casa. Seria o extremo, claro. Até lá ainda há muito trabalho e investigação por fazer, mas os cientistas estão perto de conseguir cultivar carne em laboratório sem recurso a produtos animais.
Exatamente: a simples criação de carne em laboratório já é uma realidade. Em 2013 foi apresentado o primeiro hambúrguer de carne cultivada. O problema? Custou 330 mil dólares a fazer, indica o relatório das tendências tecnológicas. Foi criado pela Universidade de Maastricht, na Holanda, e os investigadores usaram células de vaca para o produzir. Depois de cozinhado, o hambúrguer foi provado por especialistas gastronómicos, conta a BBC: as opiniões dividiram-se, com alguns a garantirem ter o mesmo sabor do que um hambúrguer real e outros a dizerem não ser tão suculento como a carne de verdade.
Existem outras empresas a trabalhar na criação de carne sem recurso a animais. A Impossible Foods, por exemplo, é uma startup que está a fazer hambúrgueres a partir de plantas. É carne desenvolvida em laboratório, mas feita de matéria orgânica vegetal. A ideia é tão disruptiva que até mereceu a atenção — e o investimento — da Google Ventures, uma das capitais de risco da Alphabet (Google).
No entanto, a ideia de comida e bebida cultivada vai muito além dos hambúrgueres. A Ava Winery é uma empresa que descobriu como transformar moléculas em vinho. E para quê? Para poder fazer vinho sem uvas, pois claro. De acordo com o site Tech Chrunch, a empresa já conseguiu colunar um champanhe italiano e um francês: o Moscato d’Asti e o Dom Perignon, respetivamente.
A comida cultivada em laboratório é apontada com uma solução para mitigar a enorme pegada ambiental dos meios de produção atuais. No caso da carne, o desafio para os próximos anos é desenvolver em conjunto o tecido muscular e a gordura, componentes que, atualmente, os cientistas têm de criar em separado. A longo prazo, produzir carne em quantidades industriais será o principal objetivo, mas não vai ser pera doce.
1. Fact checking em tempo real
Há uma clara epidemia de notícias falsas veiculada pelas redes sociais. Mais: a desinformação propagada durante a campanha das presidenciais norte-americanas foi tanta (e tão flagrante) que até já se fala numa nova era, a era da pós-verdade. Mas se toda a gente tem o direito a dizer o que quer e o que pensa, o que não tem é o direito a não se sujeitar a escrutínio. Principalmente quando se tratam de pessoas de interesse público, titulares de cargos políticos… ou até candidatos a eles.
Muitos órgãos de comunicação social já incluem a arte de verificar informação nos respetivos planos. O ECO também o faz. Os factos são extraídos de uma tese inicial, a informação é explicada por pontos e chega-se a uma conclusão: verdade ou mentira. No entanto, apesar de útil, é um serviço que só pode ser feito após a ocorrência dos factos. Num futuro próximo, a verificação dos factos e a contextualização deverá passar a ser feita em tempo real, de forma automática.
Impulsionada pelas novas tecnologias e pelo recente ciclo eleitoral, a verificação de factos em tempo real vai ser uma prioridade em 2017.
Ver um debate político com o trigo a ser imediatamente separado do joio será uma grande evolução dos atuais métodos de verificação, e uma tendência para o próximo ano. Tornar tudo automático vai ser possível graças à tecnologia da computação cognitiva, outra grande tendência e que, no fundo, são computadores que não precisam de ser programados. Aprendem por eles próprios, com o tempo e com a experiência. Um desses computadores é o Watson, da IBM, que já está a transformar a medicina e a hotelaria e que também pode ter aplicações práticas no jornalismo.
Isso é o futuro. Porque, para entender o presente, importa estudar os comportamentos da CNN e da MSNBC em várias intervenções do presidente norte-americano eleito, Donald Trump, durante a campanha. Títulos arrebatadores, com informação contextual entre parênteses, foram comuns nestes canais ao longo do ciclo eleitoral, com tiras como “Trump: Eu nunca disse que o Japão deveria ter mísseis nucleares (ele disse)” ou “Trump disse ter visto um vídeo (não existente) do Irão a receber dinheiro”. Para já, a evolução da verificação dos factos vai-se fazendo em duas grandes frentes: a da inteligência artificial e a do reconhecimento de discurso, que não é mais do que algoritmos capazes de reconhecer a voz humana e de transcrevê-la para texto.
Outras tendências
Aqui, tratámos seis tendências de um universo de 159. São muitas. Talvez seja prudente descarregar o relatório completo e procurar por aquelas que digam diretamente respeito às áreas que são do seu interesse. Mas faça-o com uma coisa em mente — e, aqui, o melhor é recorrer a um exemplo dado pela própria Amy Webb: porque é que uma empresa de entregas como a UPS ou o gerente de uma cadeia de supermercados deve prestar atenção a uma tendência como a edição genética?
Como explica a investigadora, os avanços nessa tecnologia estão a permitir que se criem sementes que germinam em plantas para hiperprodução, isto é, não precisam de muito espaço e quase não precisam de água. Algumas dessas sementes podem ser plantadas em áreas de grande densidade urbana, o que deverá reduzir a dependência em cadeias de supermercado no que toca a certo tipo de produtos. Isso vai ter impacto indireto (e negativo) nos comerciantes, importadores e responsáveis pela distribuição — em último caso, até nas agências de marketing.
No relatório, há tendências para todos os gostos e setores. Do financeiro à agricultura, das infraestruturas ao ensino, da defesa à filantropia. Algumas são transversais, outras focam-se em áreas muito específicas. Há tecnologias com potencial — como os drones, os robôs e os hologramas — e coisas tão negativas e preocupantes como as darknets, os trolls e a pornografia vingativa (revenge porn).
"É um documento robusto. Não o tente ler de uma vez.”
Ah, e reparou nesta reportagem em formato de lista? É que isso também é, por si só, uma tendência digital. Organizar ideias e artigos por pontos permite serem facilmente reconhecidos pelos chat bots, algoritmos que servem funções através de conversas. E por falar em chat bots… sim, adivinhou: é outra tendência que vai abalar o ano que aí vem.
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Pó inteligente e outras tech trends que vão abalar 2017
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