Scones com Brexit

O Governo comporta-se como um condutor que vai em rota de colisão com um automóvel que vem na direcção contrária e apressa-se a deitar o volante pela janela.

A suspensão do Parlamento no Reino Unido é a maior desde 1945. O objectivo próximo e imediato é limitar a discussão e o debate sobre o infinito impasse do Brexit. Com a limitação do Parlamento, a aceleração política em direcção a uma saída sem acordo é imparável. O Governo comporta-se como um condutor que vai em rota de colisão com um automóvel que vem na direcção contrária e apressa-se a deitar o volante pela janela. Politicamente a mensagem de Boris Johnson é óbvia – O Brexit a 31 de Outubro só pode ser evitado com a destruição do Governo. A divisão no seio da Oposição, a opção pela via legal, nada consegue fazer para desviar a obstinação política de um Primeiro-Ministro que não foi escolhido em Eleições Gerais e que lidera um Governo praticamente minoritário. É a política britânica em modo de guerra.

No entanto, a estratégia política pode ter algum sentido, embora pareça uma corrida em desespero contra um muro. A estratégia envia um sinal óbvio para Bruxelas de que não existe Parlamento que consiga colocar-se ao lado da Europa e que possa evitar uma saída sem acordo. Da perspectiva da política interna, a ideia pode ter associada a convocação de Eleições Gerais logo após a concretização do Brexit, baseando-se a campanha do Partido Conservador, primeiro, na figura superior de Boris Johnson, depois, na oposição entre o Povo e o Parlamento, com Boris a encarnar o espírito britânico do herói habituado a garantir o impossível.

Aliás, com Boris o Brexit entra definitivamente na fase da acção, após os instintos freudianos de Theresa May e a sua capacidade para se esconder dos factos. Mas com Boris Johnson o Governo entra no domínio da insanidade mais absoluta. Centrado compulsivamente no Brexit, o Reino Unido comporta-se como um excêntrico indivíduo que, porque tem um problema no dedo, manda amputar a perna. E porque sem perna fica desequilibrado, dá ordem para amputar a outra perna. É a política do absurdo com a máscara da coragem e do sentido histórico.

E por falar em sentido histórico, é impossível não observar em Boris Johnson uma peculiar e extravagante fixação na figura de Winston Churchill. A propaganda conservadora faz constar que Boris, aos cinco anos de idade, queria ser “Rei do Mundo”. Uma pretensão compreensível nas aventuras de James Bond e onde todos os vilões querem ser Reis do Mundo. Existe o clássico tropo do alienado que vive num hospício e que afirma ser Napoleão, que se veste como Napoleão, que age como Napoleão. Por vezes dá a sensação de que Boris Johnson transformou o Governo de sua Majestade num enorme cenário onde o Primeiro-Ministro vive como Churchill, pensa como Churchill e age como Churchill. O enredo tem a marca da tragédia disfarçada de comédia, uma farsa em que o Governo e a Nação estão cativos das fantasias de um ego descomunal. Não é Churchill quem quer, especialmente quando alguém se comporta como um verdadeiro “Jack the Ripper”.

O que é de referir é a incapacidade do sistema político britânico em concretizar a decisão do Referendo através da via Parlamentar. Com uma prática política estranha a Constituições escritas, centrada no Parlamento e na fluidez de uma “common law” inscrita no tempo e numa tradição de comportamento político, a figura homérica do Primeiro-Ministro ganha uma importância decisiva em virtude da flexibilidade da fábrica política. O que se observa neste momento crítico para o Reino Unido é precisamente a flexibilidade do sistema político a provocar, não a proverbial estabilidade e consenso britânicos, mas a produzir uma perturbação disfuncional e a revelar a completa ausência de um poder ou instituição que mantenha o equilíbrio da regulação política. Para além de todos os discursos ainda falta o discurso da rua.

Neste ponto convém uma palavra para a figura da Rainha. A Soberana não se envolve na política. Em reciprocidade, a Monarca tem a expectativa de que o seu Governo siga a prática estabelecida de não a expor a decisões controversas. Em teoria, a Rainha continua a usufruir da “Prerrogativa Real” expressa na capacidade de exercer o seu critério e o seu arbítrio em determinadas questões. No entanto, séculos de Monarquia Constitucional transformaram esta Prerrogativa numa ficção. A Soberana atende ao precedente e observa a convenção estabelecida de que o Monarca segue e deve seguir o conselho formal do Primeiro-Ministro. O facto de a Rainha não aceitar o parecer do Primeiro-Ministro representa uma ingerência nos assuntos políticos e provoca imediatamente uma crise constitucional. Com o conselho para suspender o Parlamento, o Primeiro-Ministro Boris Johnson opta por envolver a Monarca numa decisão controversa e numa decisão que divide o Reino Unido.

A honestidade do Primeiro-Ministro não é assim tão evidente que chegue para impressionar pela qualidade moral. A política britânica está em estado de sítio e em guerra aberta – estado de sítio no Parlamento e guerra aberta contra a Europa. Ao contrário do que se pensa, Eton e Oxford não servem apenas para decorar os salões com boas maneiras e ditos inteligentes. O charme britânico pode ser politicamente mortal.

Nota: o autor escreve segundo o antigo acordo ortográfico.

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