A diretiva europeia de proteção de denunciantes: desconstrução de um ou dois mitos
Leia aqui o artigo de opinião do advogado da Vieira de Almeida, Rui Costa Pereira, sobre a diretiva europeia de proteção de denunciantes.
A recentemente publicada Diretiva do Conselho e do Parlamento Europeu pretende assegurar proteção aos chamados whistleblowers, aqui entre nós simplesmente denunciante, ou soprador de apitos ou assobios, numa tradução mais literal e figurativa.
Porém, a propósito desta Diretiva estão a enraizar-se alguns mitos quanto à suposta proteção que dela decorreria para os hackers que assaltam dados indiscriminadamente para venda.
Procurarei por este meio, procurar pôr os pontos nos is a respeito de alguns desses mitos.
E o primeiro mito a desconstruir respeita ao incorreto foco que se tem concretizado sobre a informação revelada pelo denunciante. Não é a qualidade, importância, dimensão ou interesse público – por vezes apenas mediático – da informação a revelar que irá permitir a alguém assumir, ou não, o estatuto de denunciante, mas sim a concreta situação em que se encontra a pessoa que revela a informação.
Dito de outro modo, por muito aliciante que seja – para a investigação criminal ou mero voyeurismo – a informação em causa, se aquele que a revela não se encontrar numa determinada situação – já lá irei –, pode estar a soprar muita coisa, mas apitos não serão certamente.
Precisamente porque a Diretiva tem como principal objetivo proteger os denunciantes e não, por exemplo, dotar a investigação criminal de novas ferramentas ou permitir aos Estados aquilo que não lhes é permitido pelos canais normais, é que é a situação da pessoa – carente de proteção – que dirá se a proteção é devida, ou não.
A relevância da informação para a investigação criminal ou para a defesa de interesses coletivos é um dado adquirido. Não faria sentido nenhum estar a discutir a necessidade de conferir uma proteção especial a quem revela informação que é banal, insignificante ou cujo conhecimento alargado não representa qualquer ganho coletivo.
Assim, logo no primeiro Considerando dessa Diretiva, as primeiras palavras que aí se escreveram são dirigidas às “pessoas que trabalham numa organização pública ou privada ou que com ela estão em contacto no contexto de atividades profissionais”. Daí para a frente, não há qualquer outro contexto ou situação reportada aos denunciantes, sendo a definição aí prevista a de “pessoa singular que comunique ou divulgue publicamente informações sobre violações, obtidas no âmbito das suas atividades profissionais”.
São, portanto, duas as situações que podem fazer incluir alguém na categoria de denunciante: por um lado, os trabalhadores de uma organização (contra a qual a informação é veiculada) e, por outro, pessoas que com essa organização contactarem no âmbito da sua atividade profissional (p. ex., fornecedores de bens ou serviços). O ponto comum de ambas é a existência de uma relação profissional – em sentido estrito ou lato – com determinada organização.
É fácil, por conseguinte, imaginar o whistleblower como alguém que a partir do contacto profissional que mantém com uma organização, de forma mais ou menos estridente – em jeito mais ou menos próximo de um assobio ou do uso de um apito –, sopra para fora da organização informações relevantes que, à partida, não poderiam ser divulgadas por essa pessoa, em face do respetivo contexto profissional em que obteve acesso às mesmas.
O simples bom senso leva-nos a compreender a razão de uma cada vez mais emergente necessidade de proteção dos denunciantes: em face da relação profissional mantida com a organização a partir da qual a informação partiu, é previsível o surgimento das mais diversas formas de retaliação, as quais poderão colocar inclusivamente em risco os meios de subsistência dos denunciantes e de quem dos mesmos depende. Daí a necessidade de proteção, que só a partir daí surge.
Ou seja, a proteção dos denunciantes é pensada porque denunciaram, e não para denunciarem. Defender o contrário é defender a incapacidade dos Estados de exercerem eficazmente, pelos seus meios próprios, as suas atribuições, nomeadamente de investigação criminal.
O segundo mito a desconstruir respeita à pretensa ilimitada utilizabilidade da informação veiculada pelo denunciante.
A este respeito, convém deixar claro que as instituições comunitárias previram expressamente a exclusão da aplicação da Diretiva aos casos em que a informação divulgada respeite a “violações das regras de contratação que envolvam aspetos de defesa ou de segurança” dos Estados.
De modo semelhante, e por exemplo, a aplicação da Diretiva não pode representar uma afetação das regras relativas à proteção do segredo profissional de médicos e advogados.
Portanto, não vale tudo…
A terminar: a Diretiva define o contexto profissional, como sendo “as atividades profissionais atuais ou passadas, exercidas no setor público ou privado, independentemente da natureza dessas atividades, através das quais as pessoas obtêm informações sobre violações e no âmbito das quais essas pessoas possam ser alvo de atos de retaliação se comunicaram essas informações”.
Em face da clareza dos conceitos empregues pelas instituições europeias, são inaceitáveis quaisquer tentativas de incluir na proteção própria – e devida – de quem carece dessa proteção, em razão do contexto profissional a partir do qual acedeu à informação divulgada e onde poderá ser alvo de retaliação, pessoas que, dissociadas de qualquer contexto profissional, criminosamente obtêm e divulgam informação titulada pelas mais diversas pessoas e organizações, inclusivamente protegida por segredo profissional.
A única explicação que encontro para essa tentativa de inclusão é a de que quem defenda essa solução saiba mais que muitos outros (eu incluído), nomeadamente a existência de um contexto profissional que ainda se não revelou, como seja a ligação a uma organização a partir da qual é alcançada a informação recolhida de outras organizações.
Assim, à luz da Diretiva europeia de proteção de denunciantes e daquilo que é conhecido do público, Rui Pinto não é nem deverá ser considerado denunciante, não havendo razão alguma – técnica ou de princípio – que justifique passar a considerá-lo nesses termos.
*Rui Costa Pereira é advogado na área de prática contraordenacional & penal da VdA e membro do Fórum Penal – Associação de Advogados Penalistas.
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
A diretiva europeia de proteção de denunciantes: desconstrução de um ou dois mitos
{{ noCommentsLabel }}