O diretor-geral de Desenvolvimento e Cooperação da OCDE, Jorge Moreira da Silva, revela que, por ano, 4.000 milhões de dólares de ajuda ainda vão para projetos de combustíveis fósseis.
De passagem por Portugal para participar na conferência anual Via Bolsa (organizada pela Euronext em parceria com o ECO), o diretor-geral de Desenvolvimento e Cooperação da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) e ex-ministro do Ambiente no governo de Passos Coelho, Jorge Moreira da Silva, disse em entrevista ao ECO que é urgente “remover o apoio aos combustíveis fósseis em países em vias de desenvolvimento”.
Na sua visão, é “chocante” que ainda se inaugurem centrais a carvão em países como a Índia, por exemplo, pagas pelos países do Norte. Por ano são 4.000 milhões de dólares de ajuda concessional, que inclui bancos de desenvolvimento, ainda direcionados para projetos de combustíveis fósseis — nomeadamente carvão — em países em vias de desenvolvimento.
“O que está previsto de carvão para os próximos anos é 300% superior àquilo que é aceitável para atingir apenas 1,5 graus centígrados de aumento da temperatura global. Podemos estar com esta conversa de finanças sustentáveis, mas se não houver um compromisso político ao nível de regras internacionais ao nível do que cada país deve fazer não é suficiente. A política aqui é muito importante”, frisou o número dois da OCDE, que reporta diretamente ao secretário-geral da organização, José Ángel Gurría.
A emergência climática é um desafio mundial, mas os países estão em pontos de partida e velocidades muito diferentes. Como se pode ultrapassar isto?
Essa é uma questão crucial. Mesmo que em Portugal, nos Estados Unidos ou no Reino Unido se possam ter determinadas políticas públicas para reduzir as emissões em casa e para financiar essas políticas, de pouco servirá se não apoiarmos os países em vias de desenvolvimento. Os pobres serão os mais afetados no combate às alterações climáticas. Teremos 100 milhões de novos pobres até 2030 só por causa das alterações climáticas, além dos 730 milhões que já temos no mundo. Estamos no fundo a dizer que só se pode combater as alterações climáticas à escala global se dois terços do investimento for feito nesses países mais vulneráveis, que não são os que mais emitem, mas que são os que mais consequências enfrentarão.
É possível fazer uma verdadeira transição energética sem os Estados Unidos a bordo?
Eu distingo muito o plano formal e institucional do plano prático e empresarial. Hoje nos Estados Unidos existe uma mudança em curso na direção da descarbonização na grande parte dos estados, ao nível local e empresarial. Ainda que os Estados Unidos não tenham aderido ao Acordo de Paris, a mudança está em curso porque é inevitável. É como travar o vento com as mãos. O pior sinal que se pode dar é a ideia que estamos ainda dependentes das cimeiras internacionais. Já não precisamos de mais nada. Sabemos o que fazer e o que custa não fazer. Os benefícios de agir e as consequências que enfrentaremos se não agirmos.
Dizer às pessoas que a cimeira de Madrid não foi suficiente e temos de esperar pela próxima COP é uma forma de desculpabilizar a inação. Temos 10 anos para reduzir as emissões em 50%, depois é necessário reduzir mais 50% e neutralidade carbónica em 2050. Se não apoiarmos os países mais pobres, nada disto será bem-sucedido. A evolução demográfica é tal que de 7.000 milhões passaremos para 10 mil milhões nas próximas décadas. Os países mais ameaçados pelas mudanças climáticas estão concentrados nos 20 países mais pobres. É preciso remover o apoio aos combustíveis fósseis em países em vias de desenvolvimento. É chocante. Temos esta narrativa do clima e isto continua a acontecer.
E continuam a ser inauguradas centrais a carvão na Índia.
Pior do que isso: com linhas concessionais que vêm da ajuda ao desenvolvimento do Norte. Temos vindo a denunciar isso. Hoje temos 4.000 milhões de dólares de ajuda concessional, que inclui bancos de desenvolvimento, para projetos de combustíveis fósseis — nomeadamente carvão — em países em vias de desenvolvimento. O que está previsto de carvão para os próximos anos é 300% superior àquilo que é aceitável para atingir apenas 1,5 graus centígrados de aumento da temperatura global. Podemos estar com esta conversa de finanças sustentáveis, mas se não houver um compromisso político ao nível de regras internacionais ao nível do que cada país deve fazer não é suficiente. A política aqui é muito importante.
Se sabemos há anos que não falta liquidez financeira para a transição energética, porque não acontece nada?
Mas está a acontecer. Deixe-me olhar para o copo meio cheio. Neste momento, 50% de todo o investimento mundial em energia vai para as renováveis. Temos a economia verde a crescer. O petróleo já não está a entrar na eletricidade. Ainda que o carvão e o gás sim, apesar de serem combustíveis fósseis. Mas já estamos a falar de 50% de todo o investimento global anual dedicado às renováveis. Além disso, o custo da tecnologia está a cair de forma brutal na mobilidade elétrica, na eficiência energética, na iluminação, nas renováveis. Há, do lado da tecnologia e do investimento, a noção que estamos a criar uma oportunidade. Começa a crescer a ideia que quem não investe verde não está apenas a perder uma oportunidade, está a investir em ativos tóxicos. Estamos a mudar o paradigma. O que há uns anos era visto como: vamos lá esverdear porque fica bem e um dia pode ser rentável, já estamos hoje numa fase em que o que dizem os players institucionais é que se não investimos no verde corremos sérios riscos a médio, longo prazo.
Ainda que os Estados Unidos não tenham aderido ao Acordo de Paris, a mudança está em curso porque é inevitável. É como travar o vento com as mãos
Então porque continua o financiamento a seguir para esses ativos tóxicos?
O custo da tecnologia está a baixar nas renováveis de forma tão intensa que investir em carvão não é apenas mau negócio ambiental. É péssimo negócio em termos de remuneração dos ativos porque esses investimentos no não renovável deixam de ser rentáveis. A grande questão é a mobilidade urbana, para onde vai ainda grande parte dos combustíveis petrolíferos. A mobilidade precisa de respostas mais ambiciosas. Nenhum investidor dará o passo de gigante na direção do investimento se não tiver noção de que existe previsibilidade e estabilidade. E procura. Gostava de sublinhar esta enorme dinâmica que se assiste do lado do setor privado e financeiro. Esta era a mudança que faltava. Já tínhamos visto isto do lado dos Estados e dos especialistas, do lado dos cidadãos e da juventude, e hoje assiste-se do lado do setor financeiro e do mercado de capitais, nos investidores, uma abordagem que é massificada. E isso é um desafio.
Da visão global que tem do mundo, que avaliação faz de Portugal? É um país que compara bem com os restantes países da OCDE?
Se há área onde Portugal tem de uma forma consistente assumido ao longo dos anos uma posição de referência é a Economia verde. Espero que não se perca a vantagem de pioneiro. Se Portugal, numa altura em que ainda não era moda, assumiu que o crescimento sustentável devia ser um elemento estruturante da competitividade do país — lembro-me que enquanto membro do governo fiz o compromisso para o crescimento verde e um conjunto de reformas — reforço que não basta ter razão antes de tempo. É necessário que, agora que existe mais competição à escala global, não se deixe de acelerar estes processos.
Neste momento, 50% de todo o investimento mundial em energia vai para as renováveis. Temos a economia verde a crescer. O petróleo já não está a entrar na eletricidade. Ainda que o carvão e o gás sim, apesar de serem combustíveis fósseis. Mas já estamos a falar de 50% de todo o investimento global anual dedicado às renováveis.
Deixou a pasta do Ambiente no anterior Governo do PSD para ir para a OCDE. A área tem estado bem entregue nas últimas legislaturas?
Eu vejo sempre com bons olhos a ideia de haver um consenso cada vez maior em Portugal quanto a estas matérias. Mas tudo depende de reformas estruturais. Não quero estar a falar de mim, porque fui o ministro do Ambiente anterior ao atual ministro, mas teria gostado que em temas como a Fiscalidade verde se tivesse dado sequência, assim como o tema das interligações energéticas, que nos permitissem ser um exportador verde e não apenas um bom aluno. Por outro lado temos uma vantagem única à escala global.
Temos hoje a confiança dos investidores, mas deve ser colocada ao serviço da internacionalização da economia e das exportações. Só podemos crescer se olharmos para fora. A sustentabilidade e as finanças sustentáveis pode ser uma força motriz do processo de internacionalização e exportação. Quando hoje sabemos que falta financiamento, que é necessário ter 94 biliões de dólares de financiamento às infraestruturas nos próximos 30 anos aos países em vias de desenvolvimento, vale a pena olhar para os países que têm competências próprias, que tiveram razão antes do tempo, que possam criar condições para, através de cooperação para o desenvolvimento e investimento privado, tirarmos vantagem desta procura verde. Há uma procura verde à escala global, há uma procura pelo desenvolvimento sustentável e acho que não vale a pena olharmos apenas para o nosso território. À escala global comparamos bem. Portugal tem um conjunto de atributos e experiência que pode ser muito útil para outros países que se estão a desenvolver.
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