Covid-19: Estado de emergência e contratos de arrendamento comercial. Pagar ou não pagar a renda? Eis a questão
Uma decisão intempestiva dos inquilinos ou a falta de flexibilidade dos senhorios levará certamente a um aumento significativo dos litígios em tribunais.
Na sequência da declaração do estado de emergência, em vigor desde o passado dia 19 de março de 2020 e que permanecerá, pelo menos, até ao dia 9 de abril de 2020 (sendo o mais provável, quase certo, diria, que venha a ter sucessivas prorrogações nos próximos dois a três meses), o Governo português aprovou um conjunto de medidas excecionais e temporárias para fazer face à atual situação e enquanto permanecer o risco de contágio e propagação do Covid-19.
De entre essas medidas contam-se o encerramento dos estabelecimentos comerciais abertos ao público, desde a meia-noite de domingo, dia 22 de março, salvo quando estejam em causa serviços essenciais, por exemplo, farmácias, supermercados.
Prevê-se ainda que o encerramento dos estabelecimentos comerciais não possa ser invocado como fundamento de resolução, denúncia ou outra forma de extinção de contratos de arrendamento, nem como fundamento de obrigação de desocupação dos imóveis (artigo 10.º do Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de março).
Foram também aprovadas outras medidas de proteção dos arrendatários, como é o caso da suspensão da produção de efeitos das denúncias de contratos de arrendamento (habitacional e não habitacional), efetuadas pelo senhorio (artigo 8.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março), bem como da suspensão das ações de despejo (nos arrendamentos habitacionais), quando o inquilino possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria (artigo 7.º, n.º 10 da Lei n.º 1-A/2020).
Espera-se que, durante esta semana, venham a ser aprovadas medidas adicionais de proteção dos inquilinos, o que foi anunciado em comunicado do Conselho de Ministros, o qual aprovou uma proposta de lei que prevê, para os arrendamentos comercias, um regime de mora no pagamento das rendas e, para os arrendamentos habitacionais, habilita o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) a conceder empréstimos a inquilinos que tenham sofrido quebras de rendimentos. Esta proposta de lei será submetida a aprovação da Assembleia da República nos próximos dias.
Não conhecemos ainda o teor integral da proposta de lei e, nomeadamente, quais os requisitos de elegibilidade para a referida “moratória”, mas uma coisa nos parece certa: é necessário distinguir os contratos de arrendamento habitacional dos contratos de arrendamento comerciais, pois as razões subjacentes à dificuldade no pagamentos de rendas não são as mesmas para uns e outros inquilinos.
Neste artigo, referimo-nos exclusivamente aos contratos de arrendamento comerciais, em relação aos quais, face ao atual contexto, uma das questões (entre outras) que se coloca é se os estabelecimentos comerciais encerrados que operem em imóveis arrendados poderão deixar de pagar rendas ou ter direito a uma redução das rendas durante o período de estado de emergência.
Procuremos, então, a resposta no contrato e na lei.
Antes de mais, importa verificar se o contrato de arrendamento comercial contém uma cláusula específica, nomeadamente, uma cláusula para acontecimentos que impeçam a fruição do imóvel, que possa estipular os direitos e obrigações das partes em caso de ocorrência de uma situação extraordinária, como uma pandemia. O mais provável é que a grande maioria dos contratos não tenha uma cláusula deste género, ou, se a tiver, que se aplique a outro tipo de eventos, como cheias, terramotos ou incêndios.
Não havendo cláusula que regule esta situação, é necessário recorrer à lei, começando pelas normas especiais aplicáveis aos contratos de arrendamento e de seguida pelas normas gerais do Código Civil.
Há uma norma específica, no regime da locação, prevista no Código Civil, que estabelece a possibilidade de redução da renda: o artigo 1401.º do Código Civil, no qual se pode ler que “Se, por motivo não atinente à sua pessoa ou à dos seus familiares, o locatário sofrer privação ou diminuição do gozo da coisa locada, haverá lugar a uma redução da renda ou aluguer proporcional ao tempo da privação ou diminuição e à extensão desta (…)” e no seu número 2 que “Mas, se a privação ou diminuição não for imputável ao locador nem aos seus familiares, a redução só terá lugar no caso de uma ou outra exceder um sexto da duração do contrato”.
Isto significa que numa situação como a atual, cuja privação ou diminuição do uso do estabelecimento comercial não é imputável ao inquilino nem ao senhorio, uma redução da renda ao abrigo da referida norma não valeria para todas as situações, mas apenas para aquelas em que o tempo de privação ou diminuição do uso do imóvel excedesse um sexto da duração do contrato, nomeadamente quando estejam em causa contratos de arrendamento comercial que tenham uma duração inferior ou igual a um ano (partindo do pressuposto que a situação de emergência se irá manter pelos próximos dois a três meses). Esta norma encontrará ainda alguns “obstáculos” em termos de interpretação e aplicação, nomeadamente, quanto a saber o que se considera por “duração do contrato” – a duração efetiva do contrato, a duração acordada pelas partes? E quando estejam em causa contratos de duração indeterminada?
Não obstante o referido, porque aqui se vê que uma redução da renda não será de todo desprovida de razão, quando se verifique uma privação do uso do imóvel, o que acontece atualmente com os estabelecimentos comerciais que operam em imóveis arrendados.
Diferentemente, nos arrendamentos habitacionais, não resulta do atual contexto uma privação do uso do imóvel, que possa justificar uma redução da renda por essa razão, ainda que não ignoremos que as famílias, face à atual situação, precisarão certamente de incentivos em caso de dificuldade económica, como, por exemplo, a concessão de empréstimos para pagamento de renda aos arrendatários prevista na proposta que irá a discussão.
Voltemos, no entanto, aos contratos de arrendamento comercial. Nos casos em que não seja possível aplicar a referida norma de redução da renda (artigo 1401.º do Código Civil), importa perceber se a lei, em particular, as regras gerais conferem uma outra solução.
A resposta está no regime da alteração das circunstâncias previsto no número 1 do artigo 437.º do Código Civil, embora a sua aplicação não deixe de levantar dúvidas e controvérsias que muitas vezes acabarão por cair nos tribunais.
O número 1 do artigo 437.º do Código Civil estabelece que “Se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à resolução do contrato, ou à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afete gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato”.
Como se vê, trata-se de uma norma que recorre a conceitos propositadamente de ordem geral, que só podem ser concretizados caso a caso, e que os tribunais têm reconduzido à verificação dos seguintes pressupostos (cumulativos):
- A existência de uma alteração das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar, pelo que as circunstâncias sobre as quais recai a alteração têm de se reconduzir às circunstâncias existentes à data da celebração do contrato e às que tenham sido causais em relação à sua celebração pelas partes. Ou seja, se a atual situação de estado de emergência e encerramento dos estabelecimentos comerciais tivesse ocorrido à data da celebração do contrato, as partes teriam celebrado o contrato como o fizeram;
- O caráter anormal dessa alteração, no sentido de ser imprevisível para as partes a sua verificação. Situações excecionais como uma revolução ou o deflagrar de um estado de guerra, bem como alterações legislativas completamente inesperadas são, em regra, os exemplos clássicos dados para uma alteração anormal;
- Que essa alteração provoque uma lesão para uma das partes, isto é, se dela resultar uma modificação no equilíbrio contratual estabelecido pelas partes. Se a alteração não provocar danos significativos para uma das partes, não se justifica aplicar este instituto, devendo ser o contrato cumprido nos termos gerais;
- Que a lesão seja de tal ordem que se apresente como contrária à boa fé que a parte beneficiada venha a exigir o cumprimento do contrato, isto é, que seja ilegítimo exigir a prestação numa situação em que os limites relativos ao equilíbrio das prestações no contrato se encontram ultrapassados; e
- Que a lesão causada não se encontre coberta pelos riscos próprios do contrato. O mesmo é dizer: se a atual situação se traduz num risco com que as partes deveriam contar quando celebraram o contrato. Em caso afirmativo, a lesão está coberta pelos riscos do contrato; em caso negativo, não.
Na prática, a questão que se coloca é a de saber se a declaração de estado de emergência e a ordem de encerramento dos estabelecimentos comerciais constitui uma alteração anormal das circunstâncias (no sentido de imprevisível), que causa uma lesão grave ao inquilino em relação ao senhorio, no quadro do equilíbrio das obrigações assumidas pelas partes, e se está ou não coberta pelos riscos próprios do contrato de arrendamento comercial.
Face à atual situação, ainda que nos inclinemos a responder que os pressupostos acima estariam preenchidos, o que poderia justificar uma redução das rendas (mas dificilmente uma suspensão de pagamento do seu valor integral), não se pode cair no risco de seguir este caminho sem equacionar as suas possíveis consequências – incumprimento do contrato, risco de despejo após a atual situação, direito do senhorio a exigir, a título de compensação, o pagamento das rendas até à data prevista para o final do contrato, entre outras.
Por isso, antes de as empresas enveredarem para uma solução como a da alteração das circunstâncias, o melhor caminho será mesmo a negociação. Uma decisão intempestiva dos inquilinos ou a falta de flexibilidade dos senhorios levará certamente a um aumento significativo dos litígios em tribunais.
Em nossa opinião, uma solução equilibrada seria uma redução parcial da renda durante o tempo de duração do encerramento dos estabelecimentos comerciais, provavelmente não menos de 20%, mas nunca superior a 40%, porque ainda que a atual situação seja provocada por causas externas a senhorios e inquilinos, a verdade é que em situações de incêndio ou terramoto a regra é que o senhorio perde a totalidade da renda, sem que ninguém obrigue o inquilino a compensar o senhorio pela sua perda financeira. Isto porque o risco dos danos do imóvel correm por conta do senhorio e os riscos do negócio correm por conta do inquilino. No caso, a pandemia está mais próxima dos riscos do negócio do inquilino, embora não totalmente, do que dos riscos do imóvel. Justifica-se por isso uma redução da renda, mas não a sua suspensão. Daí sugerirmos que seja entre 20 e 40%.
É verdade que uma tal solução não reunirá consenso; deverá, no entanto, procurar-se o maior equilíbrio possível face aos interesses de ambas as partes.
Não há soluções perfeitas; só há soluções possíveis.
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