“TC alemão ameaça criar duas ordens jurídicas diferentes na UE”, avisa Vítor Constâncio
Relevando que este aspeto "constitui uma grande preocupação para o futuro", o antigo vice-presidente do BCE defende que "a autoridade máxima nessa matéria só pode ser a do Tribunal Europeu".
O antigo vice-presidente do Banco Central Europeu (BCE) Vítor Constâncio disse à Lusa que o Tribunal Constitucional (TC) alemão ameaça criar “ordens jurídicas diferentes na União Europeia”, depois de considerar “duvidosa” a recompra de dívida pública pela instituição.
“Ao declarar que o Tribunal Europeu de Justiça, que aprovou a legalidade da política do BCE, teria feito uma análise errada e não válida, o Tribunal Constitucional alemão ameaça criar duas ordens jurídicas diferentes na União Europeia no que respeita à interpretação da própria lei europeia”, afirmou Vítor Constâncio numa resposta por escrito a perguntas da Lusa.
Relevando que este aspeto “constitui uma grande preocupação para o futuro”, o também antigo governador do Banco de Portugal (BdP) defende que “a autoridade máxima nessa matéria só pode ser a do Tribunal Europeu, conforme a Comissão Europeia afirmou ontem [terça-feira]“.
“Caso contrário, por exemplo, o Tribunal Constitucional polaco ou húngaro poderiam ignorar o Tribunal Europeu no que tem sido a luta contra as decisões que não respeitam os valores democráticos fundamentais do Tratado e que têm sido tomadas nesses países”, alerta Vítor Constâncio.
O Tribunal Constitucional alemão exigiu na terça-feira ao BCE que no prazo de três meses justifique a conformidade do seu mandato para as vastas compras de dívida, numa sentença com implicações incertas.
O tribunal alemão declarou que o programa de compra de dívida do BCE, adotado em 2015, é parcialmente contrário à Constituição da Alemanha, excedendo os seus poderes sem considerar a proporcionalidade da medida como uma ferramenta para aumentar a taxa de inflação para cerca de 2%, e considerou “duvidosa” a competência para recomprar massivamente a dívida pública.
“O não esclarecimento deste conflito de ordens legais, poderá continuar a ameaçar o futuro da política monetária europeia, para além do que representa em geral no contexto de uma União em que os países membros atribuíram um conjunto explícito de competências às instâncias europeias”, sustentou.
O antigo vice-presidente do BCE defende que, ao contrário do que foi pedido pelos juízes de Karlsruhe (cidade sede do Tribunal Constitucional Federal alemão), o banco central já tinha as suas ações justificadas.
“A decisão do Tribunal Constitucional Alemão pode ser superada demonstrando que o BCE considerou nas suas decisões de 2015 todas as consequências do programa de compra de obrigações soberanas“, diz Constâncio, relembrando que “qualquer cidadão, aliás, poderia ter lido que essa avaliação foi feita nas publicações do BCE no seu sítio na internet, a começar pelas atas das reuniões em que essa decisão foi tomada”.
Vítor Constâncio afirma ainda que Karlsruhe fez uma “estranha interpretação” dos Tratados europeus, dado que no artigo 5.º do Tratado da União Europeia está escrito que, “em virtude do princípio da proporcionalidade, o conteúdo e a forma da ação da União não devem exceder o necessário para alcançar os objetivos dos Tratados”.
“Ora, o BCE teve que tomar medidas extraordinárias para tentar atingir o objetivo de uma inflação perto de 2% e mesmo assim não o tem conseguido. Nada do que fez, portanto, pode ser considerado como desproporcionado”, defende o economista português.
O antigo governador do BdP disse ainda que os juízes alemães utilizaram “um conceito diferente de proporcionalidade”, significando “um equilíbrio entre os objetivos da política monetária e outros objetivos económicos”, algo que entende ser uma negação do artigo 127.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, “que fixa como prioridade absoluta da política do BCE exclusivamente a estabilidade de preços”, ou seja, “a inflação abaixo mas perto de 2%”.
“É estranho, para dizer o mínimo, que esta prioridade seja contestada na própria Alemanha que a quis no Tratado“, destaca Vítor Constâncio, que considera ainda que Karlsruhe fez uma lista de objetivos que deveriam ser balanceados com o objetivo prioritário “de forma muito seletiva”.
Como exemplos, Constâncio refere que a decisão do Constitucional alemão “fala dos interesses dos aforradores mas ignora o dos tomadores de crédito, assinala o risco de sobrevivência de más empresas mas ignora as boas empresas que podem investir mais com um custo mais baixo do financiamento”.
“O risco persistirá, aliás, sobre o futuro das políticas de compra de títulos públicos e provados que sejam necessárias nos próximos anos, como penso que será indispensável. Este problema deveria ser resolvido de forma permanente pelas autoridades europeias e alemãs”, considera Vítor Constâncio, lembrando que podem ser postos novos casos em Tribunal relativos ao programa de compra de ativos anunciado na sequência da pandemia de covid-19.
Relativamente a uma eventual transposição da decisão alemã para Portugal, o antigo governador do BdP disse não acreditar que possa acontecer, “porque Portugal é um dos muitos países que claramente aceitam a supremacia do Direito Europeu e do Tribunal Europeu de Justiça“.
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