Absentismo ou presentismo, fraca produtividade e burnout. Quem gere deve observar, ouvir, procurar e criar soluções. É que saúde há só uma. E é fundamental.
Síria, Líbia, Camboja, Sudão do Sul, Moçambique. Se há, no mundo, um contexto de crise, a psicóloga Maria Palha provavelmente andou por lá. A experiência em todos eles, contada na primeira pessoa pela psicóloga no livro “Uma caixa de primeiros socorros das emoções”, é uma espécie de manual de como gerir aquilo que nos ocupa a cabeça, afeta a nossa saúde mental e o nosso bem-estar. E essas aprendizagens de base servem tanto para situações extremas – a pandemia que vivemos, por exemplo – como para o dia a dia comum.
“Independentemente da situação, o que permitia que as pessoas se ajustassem melhor durante e no pós eram essas práticas”, assegura a psicóloga, em conversa com a Pessoas. “Saber como agir e reagir passa por identificar os sinais de alerta, quais as estratégias úteis para integrar – por exemplo, neste momento, em que estou a sofrer o impacto da pandemia – e o que posso fazer em técnicas de autoajuda para prevenir ou conseguir ver o momento em que preciso de ajuda. Quando assim é, as pessoas acabam por não adoecer”, acrescenta a especialista.
A saúde organizacional está associada a um desempenho financeiro cerca de 2,2 vezes superior à média e estudos científicos demonstram que os benefícios gerados por programas de promoção de saúde psicológica no trabalho, durante um ano, podem variar entre os 81 cêntimos e os 13 euros, por cada euro gasto nestes programas. No entanto, “Portugal é um país, europeu, com taxa de mal-estar muito alta. Temos a maior taxa de consumo de medicamentos. Há ainda um estigma muito grande em relação a este assunto, ou não sabem cuidar de si ou têm muita dificuldade em admitir”, assegura Maria Palha, alertando para uma probabilidade de 80% da população em risco de desenvolver burnout num cenário normal.
“Sintomas de burnout são muito semelhantes aos de um elevado nível de stress. Afeta todas as áreas e dimensões de um colaborador, ou de um ser humano, desde a produtividade à concentração, passando pela família e pela comunidade. Uma empresa que não cuida do bem-estar do seu colaborador coloca em risco a sua comunidade”, alerta a especialista.
"Estamos a falar de milhares de milhões de euros por ano que se perdem devido a problemas de redução de produtividade, só devidas ao absentismo e ao presentismo.
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Linhas de apoio psicológico e emocional, formações, workshops, sessões de ioga e mindfulness são algumas das medidas mais comuns implementadas para promover o bem-estar e a saúde mental nas empresas, nos mais variados setores. O stress ou o burnout são precursores do absentismo, da falta de produtividade e são, a longo prazo, causadores da alta rotatividade de trabalhadores e, em última instância, do desemprego.
Desde 2014, a Ordem dos Psicólogos intervém no âmbito da saúde mental e bem-estar no local de trabalho, junto do Governo, de decisores políticos, parceiros sociais, empresas e da sociedade em geral. Um dos projetos de maior destaque são os prémios Healthy Workplaces, uma campanha para micro, PME e grandes empresas que, desde 2014 permite às organizações fazerem uma autoavaliação das práticas internas de promoção do bem-estar e saúde mental. “É uma forma de dar visibilidade às boas práticas baseadas na evidência científica que contribuem para que o local de trabalho não seja só seguro fisicamente, mas seja seguro emocionalmente e, portanto, saudável”, explica Teresa Espassandim, psicóloga e membro da direção da Ordem dos Psicólogos.
Saúde mental: um investimento com retorno real
A ausência de literacia sobre o tema, a falta de acesso a evidência científica e a gestão pouco profissional podem estar na origem da pouca sensibilidade para o tema da saúde mental dentro das organizações.
A solução? Teresa Espassandim defende que é urgente reforçar a avaliação dos riscos psicossociais, de forma sistemática, profissional e coerente e com ferramentas baseadas na ciência. No fundo, acompanhar, saber o que se passa com a saúde física e psicológica dos trabalhadores e criar soluções ajustadas às necessidades.
“Há muitas empresas que vão tendo algumas atividades que entendem como geradoras de bem-estar, mas são atividades avulsas e desconectadas. Posso achar muito interessante que haja um espaço próprio para técnicas de relaxamento mas isso é paradoxal se o problema na minha empresa é a carga de trabalho”, exemplifica a psicóloga.
O papel da Ordem dos Psicólogos tem sido tentar mitigar o “desconhecimento” que ainda existe e combater a “dicotomia” entre a saúde física e mental.
Quando estás exposto a uma situação de stress permanente, o pensamento fica mais lento, a forma como tomas decisões é um bocadinho mais toldada, a comunicação falha e cometes mais erros de distração, mesmo a nível cognitivo.
A globalização e a mudança do paradigma laboral trouxeram horários e ritmos de trabalho mais intensos, que conduzem a um maior desgaste cognitivo. “É desconhecido que o stress pode ter esta expressão física sem queixas emocionais”, explica Teresa Espassandim, que acredita ser necessário eliminar as diferenças entre a saúde física e mental e, para isso, o empregador deve saber exatamente qual o impacto que os problemas de saúde mental podem ter nos seus trabalhadores, ajudando-os a ser autónomos no reconhecimento precoce dos sinais para encontrarem estratégias de os atenuar, reduzir ou até prevenir.
No entanto, no caso do tecido empresarial português – constituído em 98% por micro e pequenas empresas – a saúde mental ainda tem obstáculos fortes. Neste tipo de negócios, trabalha-se na “lógica do imediato”, principalmente no que diz respeito ao investimento. Contudo, alerta Teresa Espassandim, “é exatamente porque precisam de todos os poucos trabalhadores que têm, que é realmente necessário de cuidar deles. Acaba por ser paradoxal. (…) estamos a falar de milhares de milhões de euros por ano que se perdem devido a problemas de redução de produtividade, só devidas ao absentismo e ao presentismo”, ressalva.
Sinais que não se podem ignorar
“Quando estás exposto a uma situação de stress permanente, o pensamento fica mais lento, a forma como tomas decisões é um bocadinho mais toldada, a comunicação falha e cometes mais erros de distração, mesmo a nível cognitivo”, conta André Carvalho, neuropsicólogo no grupo Lusíadas Saúde e no Hospital Amadora Sintra. As ausências repetidas (absentismo) ou o facto de estar presente fisicamente sem conseguir cumprir os objetivos que são propostos (presentismo) são alguns sinais de alerta que não podem ser ignorados pelas chefias.
Os estudos demonstram que os empregadores estão preocupados com esta matéria, mas 90% diz que só implementará estas medidas se for obrigado a isso. “[Um problema de saúde mental] é, muitas vezes, considerado pelas equipas e pelas lideranças como um problema do indivíduo e não como um problema da cultura da empresa, de como o trabalho está a organizado”, lembra Teresa Espassandim.
Este momento é de grande reviravolta e, se há coisas para onde podemos olhar é para a oportunidade de pararmos para pensar neste assunto, porque a mudança vem depois de lhe darmos atenção.
Por isso, as “lideranças tóxicas” também podem impedir a implementação de mais medidas para promover a saúde mental, aumentando a probabilidade de os trabalhadores adoecerem, pois “para as chefias que não confiavam nos seus trabalhadores, que não lhes davam os instrumentos para se desenvolverem em termos profissionais, podem gerar muito desconforto”, refere a psicóloga.
“Este levar a adoecer pode ser um bocadinho estranho para quem tem responsabilidade, porque as pessoas estão lá, então não é visível. Como não é concreto, vai-se forçando os limites, e é isso que faz com que os locais de trabalho sejam pouco saudáveis”, acrescenta.
Pandemia reforça importância da saúde mental
Devido aos constrangimentos causados pela pandemia, muitas empresas começam a aumentar os canais de comunicação com os trabalhadores e, também, o número de soluções para promover o bem-estar e a saúde mental. Será o contexto de pandemia o primeiro passo para a saúde mental ser considerada como a saúde física e deixar de ser considerado como um “benefício extra? Para André Carvalho, algumas medidas como as linhas de apoio psicológico e emocional, criadas para os profissionais de saúde, são uma verdadeira “ode à saúde mental”.
Maria Palha acredita que tratar da mente dos trabalhadores é um fator de atração na hora de captar e fixar talento. “Uma empresa que não presta atenção à saúde mental neste contexto vai ter dificuldades em termos de retenção do staff, produtividade (é precisa adaptação) e depois adaptar-se a uma nova fase. Técnicas de bem-estar, cultura de cuidado dos colaboradores, partilha dos sinais de alerta, abrir para diálogo com o que as pessoas estão a sentir, lives em grupo nas quais se fala do que cada pessoa pode fazer e quais os sinais de alerta a que deve estar atento devem ser reforçadas como novas técnicas de rotina”.
Também Teresa Espassandim considera fundamental mudar o paradigma dos métodos de trabalho e passar de uma lógica de monitorização e controlo para uma lógica de confiança e autonomia das pessoas, com o devido suporte e apoio. Há hoje milhares de pessoas em trabalho remoto e, se alguns problemas não eram visíveis, muitos estão agora ainda mais longe da vista de quem gere. O trabalho à distância vai implicar uma comunicação mais próxima e reuniões regulares “que permitam saber como é que a pessoa está a lidar com os seus objetivos de trabalho, quais são as suas dificuldades”, exemplifica.
"Posso achar muito interessante que haja um espaço próprio para se fazer técnicas de relaxamento, mas isso é paradoxal se o problema na minha empresa é a carga de trabalho.
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Para Teresa Espassandim, a pandemia veio colocar “a nu essa imensa necessidade de comunicação próxima”. No caso do contexto pós-Covid, a psicóloga é otimista: “É incontornável. As empresas que agora estão a implementar esses instrumentos dificilmente poderão prescindir deles, porque verão necessariamente o impacto positivo que isso tem nas equipas”.
Já Maria Palha acredita que a pandemia vem reforçar o que já existe, de bom ou de mau, e que a garantia de uma reação à altura pode ser, sempre, antecipada. “Este momento é de grande reviravolta e, se há coisas para onde podemos olhar é para a oportunidade de pararmos para pensar neste assunto, porque a mudança vem depois de lhe darmos atenção. A ideia é fazer uma ‘conta poupança’ de emoções prazerosas que podem ser úteis numa situação de crise. Se já for uma pessoa propensa à depressão, ansiosa, essa situação agrava-se. Criar essa caixa permite uma melhor capacidade para gerir uma situação de crise”.
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Bem-estar e saúde mental: o “benefício” fundamental
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