Em entrevista ao ECO/Capital Verde, António Comprido, secretário-geral da Apetro, garante que "os consumidores não estão dispostos a pagar muito mais por um combustível só por razões ambientais".
O caminho está traçado. Até 2050, a indústria europeia de refinação vai investir até 650 mil milhões de euros para alcançar a neutralidade climática e criar os chamados combustíveis líquidos de baixo carbono, aparentemente semelhantes aos atuais, de origem fóssil, mas sem emissões poluentes. A estratégia está espelhada do documento “Combustíveis limpos para todos” apresentado pela FuelsEurope, a associação que representa a indústria de refinação da União Europeia e com a qual a portuguesa Apetro – Associação Portuguesa de Empresas Petrolíferas colabora ativamente.
As “refinarias do futuro” poderão começar a operar “o mais tardar já em 2025″, garante a FuelsEurope (da qual faz parte a petrolífera portuguesa Galp). Mas em vez de transformarem crude, utilizarão novas matérias-primas de base para os combustíveis do futuro, como biomassa, energias renováveis, resíduos e CO2 capturado, transformadas depois em hidrocarbonetos na sua forma líquida, através de novas tecnologias
Em entrevista ao ECO/Capital Verde, António Comprido, secretário-geral da Associação Portuguesa de Empresas Petrolíferas – APETRO, não esconde que no início os combustíveis do futuro serão inevitavelmente mais caros, mas quando a sua produção estiver massificada poderão ser competitivos em termos de preço. Até porque, garante, “os consumidores não estão dispostos a pagar muito mais por um combustível só por razões ambientais”.
A indústria europeia de refinação não quer ficar fora da transição energética em curso e vai gastar 650 mil milhões de euros para tornar limpos os seus combustíveis. Vai ser fácil?
Esta via que propomos não é uma autoestrada limpinha, é um caminho onde vão surgir muitos obstáculos, que podem começar na tecnologia e ir até à recetividade dos consumidores. Mas temos a convicção que sem os combustíveis líquidos de baixo carbono é impossível descarbonizar a economia até 2050. A Comissão Europeia já reconheceu isso. Não se vai lá só fechando as centrais a carvão, eletrificando os consumos — há limites para a eletrificação –, não se vai lá só com o hidrogénio. Vai-se lá por captura e sequestro de carbono, combustíveis sintéticos, biocombustíveis avançados. Queremos fazer parte da descarbonização. E rejeitamos qualquer carimbo, ou estigma, que nos diga: vocês não são elegíveis para terem acesso a financiamento porque são da indústria petrolífera.
Daqui a dez ou 30 anos continuaremos a abastecer gasolina e gasóleo?
Não sei se continuará a ser gasolina e gasóleo. Mas há um estudo feito em dez países europeus, no qual foi perguntado aos consumidores como viam a sua mobilidade no futuro, e ficou claro que há espaço para os novos combustíveis líquidos de baixo teor de carbono. O consumidor quer ter poder e liberdade de escolha. Não quer estar afunilado numa única tecnologia. Muitas pessoas vão optar por um carro elétrico, outras vão querer um carro a hidrogénio e outras vão manter a gasolina e o gasóleo, ou o que quer que se chamem no futuro.
Vamos pagar mais pelos combustíveis para poluir menos?
Inicialmente serão mais caros que os combustíveis fósseis, como os próprios biocombustíveis ainda hoje são mais caros, mas acreditamos que com a massificação da sua produção eles acabarão por ser competitivos. Obviamente com o enquadramento fiscal adequado, porque hoje em dia 50 a 60% do preço dos combustíveis são impostos. Se no futuro forem taxados da mesma maneira que os fósseis, dificilmente conseguirão competir. Mas acreditamos que ao longo destas três décadas será possível ter uma produção a preços competitivos com os atuais. Não acreditamos que os consumidores estejam dispostos a pagar muito mais por um combustível só por razões ambientais. Quanto se pergunta se estão de acordo com a redução das emissões dizem todos sim, mas se for para pagar mais, a adesão às soluções descarbonizadas é marginal.
Se formos à bomba, em 2030 ou 2050, vamos abastecer o quê?
A própria oferta de energia a retalho para a mobilidade está já a sofrer uma transformação: há cada vez mais pontos de carregamento elétrico nos postos de combustível, já se acrescentou também GPL, o gás natural começa a aparecer. E futuramente podem ser acrescentadas ilhas para fornecer hidrogénio. A bomba vai ser multiproduto. Os combustíveis líquidos propriamente ditos terão uma composição diferente da que têm hoje, mais descarbonizada. Hoje, 6 ou 7% da energia no gasóleo e na gasolina já é de origem não fóssil, e esta percentagem vai aumentar gradualmente. Em 2050 vou chegar com o meu carro a um posto e vou continuar a abastecer da mesma forma que hoje, mas a gasolina ou gasóleo já não terão quase nada de origem fóssil, porque serão produzidos a partir de biomassa, plástico, resíduos urbanos, CO2, hidrogénio.
Não acreditamos que os consumidores estejam dispostos a pagar muito mais por um combustível só por razões ambientais. Quanto se pergunta se estão de acordo com a redução das emissões dizem todos sim, mas se for para pagar mais, a adesão às soluções descarbonizadas é marginal.
O diesel vai desaparecer ou não?
O fóssil desaparece, mas o combustível de baixo carbono equivalente ao gasóleo não. Resta saber se vai continuar a chamar-se gasóleo ou outra coisa qualquer. Estamos a fazer substitutos para os combustíveis atuais, sem alterar os veículos e o aparelho logístico. A transformação vai ser progressiva. O que muda é a matéria-prima (deixa de ser o crude), o que sai na bomba será igual mas descarbonizado.
Então quem tem um carro a diesel vai poder mantê-lo, ao contrário do que disse o ministro do Ambiente?
O ministro, ao fazer essa afirmação, quis criar uma caricatura dizendo e reforçando que na altura a eletrificação era o único caminho que o Estado português estava a percorrer: compre um carro elétrico que é o único que vai valer dinheiro no futuro. Obviamente que não partilhamos dessa leitura e achamos que um carro a diesel ou a gasolina tem toda a viabilidade de continuar a existir, se surgirem combustíveis que em termos de emissões são tão neutros quanto a utilização de eletricidade ou hidrogénio verde, numa lógica de ciclo de vida completa. Em cidades com graves problemas de poluição (que não é o caso de Lisboa) os carros elétricos serão a única solução possível, porque são os únicos que à saída do tubo de escape não emitem nada. As emissões dos combustíveis líquidos de baixo carbono vão depender muito também da evolução dos motores de combustão interna e da sua hibridização. À medida que forem mais eficientes, reduzem o consumo e poluem menos. A indústria automóvel tem de continuar a inovar na tecnologia. Quando se reduz consumo, reduzem-se as emissões.
Nas cidades, vão continuar a coexistir vários tipos de de veículos, mais e menos poluentes?
Não se pode reduzir a questão da mobilidade aos transportes ligeiros de passageiros. Mesmo que eletrificássemos a 100% a frota de ligeiros de passageiros, continuava a ser necessário ter fontes de energia alternativas para outros meios de transporte e para a indústria petroquímica. Não podemos confundir a eletrificação dos ligeiros de passageiros para percorrer distâncias curtas, com pontos de carregamento de acesso fácil, com uma solução universal para todos os meios de transporte. Parece que tudo se resume, em termos de mobilidade, ao meu carrinho pessoal. Uma coisa é a mobilidade urbana, que tem questões especiais, sobretudo ao nível da qualidade do ar, outra coisa é o setor dos transportes na sua globalidade. Vamos dar soluções para setores onde a eletrificação dificilmente vai chegar. Por muito que se queira, não se vai dotar a Europa toda de um enxame de pontos de carregamento equivalente à rede atual de postos de combustível.
Vê o futuro com vários tipos de combustíveis a coexistirem pacificamente?
O que propomos É uma via possível, não é a única via para a neutralidade carbónica. A eletrificação dos veículos ligeiros também vai dar o seu contributo, como dará o hidrogénio e até o gás natural. No entanto, os combustíveis líquidos continuam a ser insubstituíveis porque têm vantagens. Vão ser necessários se quisermos continuara a transportar as pessoas pelo mundo. Com a Covid-19 a indústria sofreu uma grande queda, mas quando os transportes recuperarem vão voltar a precisar de combustíveis líquidos. A indústria propõe-se a fornecer combustíveis que do ponto de vista de emissões líquidas serão neutros, apostando em toda a linha de transportes e abastecendo a indústria petroquímica, com matérias-primas descarbonizadas. Daí a importância de encontrar para as refinarias uma vocação diferente.
Em 2050 vou chegar com o meu carro a um posto e vou continuar a abastecer da mesma forma que hoje, mas a gasolina ou gasóleo já não terão quase nada de origem fóssil, porque serão produzidos a partir de biomassa, plástico, resíduos urbanos, CO2, hidrogénio.
Que vantagens identifica?
Os combustíveis líquidos garantem segurança no abastecimento e não exigem cuidados especiais no seu manuseamento e armazenamento. Além disso permitem utilizar toda uma infraestrutura que já existe, evitando que esses ativos fiquem ociosos. Ou seja, vamos manter o aparelho refinador, a armazenagem, os postos de abastecimento, os pipeline, as cadeias de transporte, e vamos poder usar a frota atual de veículos. Outras formas de energia, como a elétrica, obriga a comprar carros completamente diferentes, com motores elétricos em vez de combustão interna, com uma rede de abastecimento também nova, com pontos de carregamento. Não estamos a dizer que a eletrificação não deva existir, mas não precisa ser generalizada nem avançar com tanta velocidade. Não é preciso uma revolução, é preciso uma evolução, sem deitarmos fora tudo o que já existe.
Mas as petrolíferas e as elétricas continuam a disputar o domínio futuro dos transportes.
Não pretende ser um confronto direto com as outras fontes de energia, nomeadamente a elétrica. Vai deixar de haver um domínio absoluto dos combustíveis líquidos e haverá outras formas de energia a concorrer entre si. Preservamos a liberdade de escolha do consumidor. Esta é mais uma via e não a única via. Os combustíveis de baixo carbono são um chapéu geral onde se engloba muita coisa. Numa lógica do ciclo de vida completo, desde a produção à utilização, são combustíveis com emissões zero e não têm origem petrolífera. A matéria-prima deixa de ser o crude e passa a ser biomassa, resíduos, hidrogénio verde, CO2 capturado.
Quem investirá para criar os combustíveis do futuro?
A indústria já tem um plano traçado com a existência de matérias-primas suficientes para a sua produção, os investimentos necessários, as quantidades de produção. Para isto ser uma realidade, os investimentos poderão ir até cerca de 650 milhões de euros até 2050 e 40 mil milhões até 2030, para uma quantidade razoável que permitirá uma redução significativa das emissões. Estes investimentos serão feitos pela indústria, por investidores, desde que sejam criadas as condições do ponto de vista de previsibilidade fiscal, regulação do setor, que permita criar condições estáveis e previsíveis para os investidores avançarem. É preciso descarbonizar de uma maneira que seja economicamente sustentável. Sem criar um mercado significativamente grande para estes combustíveis não vai ser possível produzi-los. Para criar escala vamos ter de atacar todos os setores dos transportes. Para cumprir o desígnio do Green Deal europeu, o crude tem de sair de cena como matéria-prima nos combustíveis, até ser totalmente banido. Haverá uma quebra do consumo de petróleo na Europa nos próximos 30 anos.
Compete à Galp traçar o seu próprio destino para a transformação da sua refinaria, que é a única em Portugal. Portugal tem condições para ser um ator importante na produção de combustíveis de baixo carbono, como mais uma forma de descarbonizar a economia.
Como será a refinaria do futuro?
As refinarias já estão a evoluir para se tornarem biorrefinarias. Daqui para a frente, o aparelho refinador vai evoluir para usar cada vez mais o CO2, capturado, hidrogénio verde, para fabricar os combustíveis com baixo teor de carbono e emissões zero. O grosso do investimento será aqui. As refinarias que existem serão transformadas para receberem novas matérias-primas. O resto será igual: os tanques de armazenamento, os pipelines, os postos de abastecimento, serão os mesmos.
É isso que acontecerá à refinaria de Sines?
Compete à Galp traçar o seu próprio destino para a transformação da sua refinaria, que é a única em Portugal. O país já tem a produção de biocombustíveis de primeira geração (a partir de óleos alimentares usados) e biocombustíveis avançados, com várias empresas especializadas. Temos uma fábrica que é a Nerfuel, no complexo de Sines, que produz biodiesel a partir de carcaças de animais e resíduos vegetais. O facto de Portugal ter anunciado uma estratégia nacional para o hidrogénio, e ao ambicionar ser um grande produtor e consumidor, permite que a indústria de refinação se associe a esses projetos e possa tirar partido deles. Portugal tem condições para ser um ator importante na produção de combustíveis de baixo carbono, como mais uma forma de descarbonizar a economia.
O que falta para os combustíveis do futuro serem realidade?
Precisamos que o nosso setor não seja marginalizado nem esquecido. Precisamos da criação de um mercado de carbono que valorize as emissões e um valor único a pagar por cada tonelada de CO2 que se emite. Só assim as diferentes alternativas podem competir de maneira justa e equilibrada. Além disso é preciso considerar o padrão de intensidade carbónica em ciclo de vida completo e não apenas à saída do consumo (veículo ou fábrica). Não pode ser considerado indiferente, como é hoje, que eu esteja a usar combustível fóssil ou biocombustíveis. Só se contam as emissões à saída do tubo de escape. Daí o setor automóvel estar a ser empurrado para soluções de eletrificação. Os combustíveis líquidos de baixo carbono terão sempre emissões à saída do tubo de escape, mas no seu ciclo de vida completo serão neutros. Com a legislação atual isso não é valorizado. A Comissão Europeia tem como objetivo rever essa legislação, indispensável para estes combustíveis poderem concorrer. Queremos também um novo sistema fiscal; devem ser tributadas a as emissões e não a energia utilizada. É a maneira de incentivar fiscalmente o investimento em combustíveis de baixo carbono. E permitir que todas as novas tecnologias tenham acesso a fundos de financiamento públicos e privados.
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