O desassossego dos direitos humanos em tempos de pandemia

  • Catarina Santos Botelho
  • 28 Agosto 2020

Se a doença ataca os direitos à vida e à saúde da população mundial, por outro lado, a resposta à pandemia restringe os direitos de deslocação, reunião, manifestação, liberdade pessoal, entre outros.

A pandemia da Covid-19 provocou um claríssimo desassossego na promoção dos direitos humanos, mais agudizado, claro está, em países não democráticos, mas que também perturba os países democráticos. Com efeito, se, por um lado, a doença ataca os direitos à vida e à saúde da população mundial, por outro lado, a resposta à pandemia, que se tem traduzido em medidas drásticas de distanciamento social, restringe os direitos de deslocação, reunião, manifestação, liberdade pessoal, pleno acesso a cuidados de saúde não relacionados com a Covid-19, entre outros.

No passado dia 31 de julho, foi proferida a primeira decisão do Tribunal Constitucional português (TC) relativa a afetações de direitos fundamentais em tempos de pandemia. Em causa estava a imposição de confinamento obrigatório de 14 dias pelas autoridades de saúde da Região Autónoma dos Açores, após terminado o estado de emergência constitucional (que vigorou entre 19 de março e 2 de maio). Apesar do recorrido não ter apresentado sintomas da Covid-19, mal aterrou nos Açores, foi imediatamente confinado numa unidade hoteleira indicada pelo executivo açoriano, sem poder sair e sujeito a vigilância policial permanente. Na sequência de um pedido de habeas corpus, o Tribunal de Instrução Criminal de Ponta Delgada determinou a restituição da liberdade do requerente, com fundamento na inconstitucionalidade da legislação regional. Tendo o Ministério Público interposto recurso desta decisão para o TC, este decidiu, por unanimidade, julgar organicamente inconstitucionais as normas regionais que impunham o confinamento obrigatório, por violação da reserva de competência legislativa da Assembleia da República.

Muito sucintamente, a decisão do TC contém duas asserções relevantes. Em primeiro lugar, quanto à identificação do direito fundamental em causa numa situação de confinamento obrigatório, o Tribunal entendeu que configura uma privação total do direito de liberdade, nos termos do artigo 27.º da Constituição. Aqui, o TC assumiu uma posição coincidente com a de Jorge Reis Novais, que, aquando do Decreto do Presidente da República que declarou o estado de emergência, entendera que o confinamento obrigatório não implicava a suspensão do direito de deslocação (artigo 44.º), mas sim do direito de liberdade (artigo 27.º).

Em segundo lugar, uma vez que a legislação sobre liberdades fundamentais está reservada à Assembleia da República (ou ao Governo, mediante autorização desta), esta matéria apenas poderá ser legislada por lei da Assembleia da República ou por Decreto-Lei autorizado do Governo. Tendo sido legislada mediante Resolução do Conselho do Governo Regional dos Açores, o Tribunal Constitucional entendeu, e bem, que a legislação está viciada de inconstitucionalidade orgânica, por violação da al. b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição.

Em tempos de emergência, seja constitucional, seja administrativa, é um lugar-comum afirmar-se que os parlamentos deverão estar particularmente vigilantes. Sem prejuízo, não devemos menosprezar a relevância que deverão assumir os tribunais, enquanto órgãos de soberania de cariz jurisdicional, e que estarão – dentro dos limites das competências que lhes estão atribuídas – especialmente vocacionados para aferir da inconstitucionalidade e da ilegalidade das medidas adotadas. Em geral, o controlo Assembleia da República, do Presidente da República e dos tribunais (com especial enfoque no controlo de necessidade e proporcionalidade de eventuais medidas restritivas) deverá procurar contrariar a tendência de algum apagamento do Parlamento e ser eficazmente vigilante.

Os principais perigos que podem advir de executivos musculados e de parlamentos diminuídos (ou sem uma oposição convincente) estão já documentados em estudos académicos. À cabeça, existe o risco de o Governo ser tentado a prolongar os seus poderes de emergência após a situação de exceção ter terminado, transformando o estado constitucional de emergência num estado de emergência “soft” (Vital Moreira), por via administrativa. Ironicamente, e virando-se o feitiço contra o feiticeiro, o estado de emergência sairia do sindicável contexto de direito (de jure) para o insindicável e imprevisível contexto de facto.

Como compaginar a defesa dos direitos fundamentais da comunidade com as apertadas exigências sanitárias e de segurança no controlo da pandemia? Penso que a resposta estará no delicado equilíbrio entre assegurar a saúde pública, procurando minimizar as afetações de direitos fundamentais, e entre controlar a propagação da epidemia, sem cair no extremo de um “estado higiénico fascistoide-histérico”. Acima de tudo, importará não ceder à ingenuidade de perspetivar o período de exceção como lapidarmente transitório e magicamente esvanecido com o retomar da normalidade constitucional.

  • Catarina Santos Botelho
  • Coordenadora do Mestrado em Direito da Escola do Porto da Faculdade de Direito da Universidade Católica

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